sábado, 24 de julho de 2021

Portugal | Requisição Civil e Hipocrisia

Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião

A greve dos trabalhadores da Groundforce, do passado fim de semana, causou inquietações nos portugueses que se preocupam com a recuperação da economia e o futuro do país.

Naturalmente, essas preocupações surgiram acentuadas no setor do turismo. Nesse contexto, compreende-se que o presidente da Confederação do Turismo de Portugal (CTP), Francisco Calheiros, tenha surgido a reclamar a resolução do problema. Já é mais difícil aceitar que tenha dito "esta greve não devia ter acontecido e a próxima não pode acontecer". E merecem reflexão outras afirmações que fez, pois, a democracia não sobrevive sem ética.

Instado por uma jornalista da SIC-N, no dia 20, a dizer se era "sensível aos argumentos dos trabalhadores", Francisco Calheiros assobiou para o lado e, depois de afirmar "não conhecer o que está em cima da mesa" e que "os trabalhadores argumentam que é a falta de pagamento de salários", passou a responsabilizar em pé de igualdade os sindicatos a empresa e o Governo. Ora, o presidente da CTP sabe que na Groundforce se vive uma instabilidade salarial insustentável, que o salário é um direito humano fundamental, e que é inqualificável exortar um governo a fazer uma requisição civil de trabalhadores a quem não se paga salários. Ele também sabe que os sindicatos têm, insistentemente, reclamado diálogo. E sabe ainda, que o acionista maioritário - Alfredo Casimiro, a quem foi oferecida a empresa no processo de privatização e desmantelamento da TAP - se está borrifando para o futuro da empresa e para o interesse nacional: só lhe interessa, sem qualquer merecimento, ter ganhos pessoais.

O Governo tem alguma responsabilidade no arrastamento do problema, mas a situação atual não resulta de "guerra pessoal" entre o ministro Pedro Nuno Santos e Alfredo Casimiro. As questões centrais que estão na origem do problema identificam-se numa pergunta dupla: como é possível o Estado oferecer empresas a um qualquer potencial bandalho e, como é que um governo não tem armas para enfrentar vigarices empresariais?

Esta semana, no Fórum para a Competitividade, esses comportamentos indecorosos, que contaminam negativamente a gestão das empresas (a maioria cumpridoras) e a economia nacional, não mereceram reflexão. O que se ouviu foi: a velha culpabilização e pedinchice ao Estado; um destacado gestor a afirmar irresponsavelmente "que só um louco investe em Portugal"; a desconfiança sobre as pequenas empresas; e meras declarações piedosas sobre condições de trabalho e salários.

Recentemente, num debate comigo num programa de uma rádio, um gestor de uma significativa empresa persistia na tese de que a "rigidez" das leis laborais trava o desenvolvimento da economia e apontava como alternativa (com perda de direitos laborais) as seguintes medidas: i) os trabalhadores terem "um representante nos conselhos de administração das empresas"; ii) as empresas passarem a "distribuir os seus lucros pelos acionistas e pelos trabalhadores"; iii) haver "condições para despedir os incompetentes".

Tão inovadoras sugestões nada têm a ver com o tecido empresarial do país, com as suas culturas organizacionais e práticas de poder. Na realidade, um problema do país é continuarmos a ter bastantes patrões e gestores que fingem desconhecer o trabalho digno e se atrevem a, unilateralmente, considerarem-se bons juízes da competência alheia. Estes sim, são difíceis de despedir.

*Investigador e professor universitário

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