Afonso Camões* | Diário de Notícias | opinião
A moral e a ética que inventámos dependem muito do exato lugar que cada um ocupa. Por vezes, até, falamos de ricos e pobres com as mesmas letrinhas, quando um mora na rua do meio e o outro no meio da rua. Vinte meses e 4,5 milhões de mortes depois do maior desafio global que enfrentámos, a pandemia, a resposta à crise revela que aprendemos pouco: em vez de um mundo mais coeso e solidário, vemo-lo mais orientado por interesses nacionais e em que as desigualdades entre os países se acentuam e consolidam.
O debate agora aberto sobre a necessidade de uma terceira dose da vacina anticovid em países mais ricos representa não só um enorme fracasso moral para o Ocidente, mas também a confirmação de que não existe uma visão global para mitigar as desigualdades agravadas pela pandemia. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), enquanto menos de 2% da população dos países mais pobres está protegida contra a doença, vários países entre os mais ricos preparam-se para destinar centenas de milhões de vacinas a uma terceira dose.
Israel e os Estados Unidos já anunciaram a terceira inoculação para os seus adultos, enquanto França e Alemanha se preparam para fazer o mesmo, para "os mais vulneráveis e os acima de 65 anos". Nestes casos, não se trata apenas da falta de uma visão ética do mundo, por ausência de solidariedade, já que ninguém deveria morrer de um vírus que pode ser erradicado pela única razão de viver num país sem recursos para produzir ou comprar vacinas. Mais do que egoísta, o que esta intenção revela é também uma visão autodestrutiva e de curto prazo do Ocidente, difícil de entender. Aliás, nem é preciso falar em igualdade para perceber o enorme risco que adviria de só os países ricos vacinarem os seus cidadãos - mesmo considerando a opção de uma terceira dose - quando o vírus pode continuar a alastrar pelos outros três quartos do planeta. Além de não parecer muito inteligente pretender reanimar as economias de uns, mantendo confinadas as populações de parceiros comerciais noutras partes do mundo que não têm o mesmo acesso à vacina.
O sistema Covax, participado pela OMS (e liderado pelo português José Manuel Durão Barroso), para garantir vacinas para pelo menos um quinto da população dos países participantes do programa, foi a chave encontrada pelos países ricos para apaziguar o mundo. Acontece que a iniciativa está longe de funcionar ao ritmo esperado. E agora, quando era possível antever um aumento de frascos disponíveis, a anunciada intenção de alguns de avançarem com a terceira dose ameaça reduzi-los. Dos 640 milhões de vacinas que o Covax já deveria ter recebido até hoje chegaram apenas 160 milhões.
O resultado, desolador, é um mundo transformado numa autêntica feira de vacinas. Nalguns casos, países que compraram várias vezes a quantidade de que precisavam acabam a revendê-las. A Polónia, por exemplo. Outros optaram por doá-las, como é o caso de Portugal em relação a alguns países da lusofonia. Ora, se o coronavírus nos ensinou alguma coisa, é que os desafios globais - e este, repito, é o maior que conhecemos - devem ser enfrentados numa perspetiva global, e que para superar a pandemia a ameaça da doença deve ser eliminada em todos os cantos do mundo. Fazer da vacina mais um indicador de desigualdade é, além de obsceno, a confirmação definitiva de que estamos bem longe de ter aprendido a distinguir entre a rua do meio e o meio da rua.
*Jornalista
Sem comentários:
Enviar um comentário