Jorge C.* | AbrilAbril | opinião
A ideia de que há pessoas boas e más na política, de que a bússola política é moral, serve para nos distrair do essencial: a política é as opções que resultam naquilo que se materializa à nossa volta.
No meio da rua, entre o fugir e o disparar, ele opta pela modalidade disparar-em-fuga: são todos iguais, eu já não acredito, querem é poleiro. Ao cinismo destas observações, por norma, respondemos com diálogo e esclarecimento ou desistimos, entregando o descontentamento a quem dele mais se sabe aproveitar. As tensões criadas numa destas conversas de rua são desconfortáveis, mas fundamentais.
Há muito que se consolidou a ideia de que a política é o resultado de um processo de ambição pessoal e que reflete as características morais dos indivíduos. Nas autarquias, o fenómeno manifesta-se de forma mais evidente, apoiado no velho lugar-comum «eu, nas eleições autárquicas, voto nas pessoas». Em boa verdade, nós votamos sempre em pessoas, mas talvez seja um equívoco que o façamos pelas suas características individuais (ou a aparência dessas características) e não pelas suas opções políticas e pelo historial da organização partidária que integram, que são aquelas características que afetam o nosso quotidiano e que, muitas vezes, condicionam o nosso futuro, as nossas expectativas e os nossos horizontes.
A ideia de que há pessoas boas e más na política, de que a bússola política é moral, serve para nos distrair do essencial: a política são as opções que resultam naquilo que se materializa à nossa volta. Isto significa que eu posso ser um tipo sem qualquer caráter e defender, ao mesmo tempo, a abolição das propinas; posso ser o vizinho do ano e, simultaneamente, propor o corte nas pensões. Não há nada em sermos bons ou maus que tenha implicações nas nossas opções políticas. Essas opções são um reflexo daquilo que consideramos a prioridade nos interesses – os nossos, egoístas, e os daqueles que achamos merecedores dessa prioridade. Também não é o facto de sermos boas ou más pessoas que vai definir as nossas escolhas políticas. Estas escolhas serão sempre um reflexo da nossa posição na ordem das prioridades e de que modo entendemos a solidariedade no plano coletivo. De que lado estás, perguntar-se-ia?
É por isso que parece ser tão importante manter a generalidade da população dependente de avaliações de caráter. Uma população esclarecida faria as suas escolhas com base nas opções políticas com impacto na sua vida: o salário, a saúde, a educação, a habitação, a energia, as pensões, a cultura, os transportes, etc. Porém, a avaliar pelo discurso mediático, por aquilo a que chamamos opinião dominante, e pelas inúmeras referências culturais que inspiram esse discurso (pensemos, por exemplo, em Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão ad nauseam) há uma certa tendência para salientar o caráter moral dos protagonistas políticos. Parece que, de certo modo, é mais fácil e confortável encontrar nas características de cada indivíduo a justificação para as nossas frustrações ou para as conquistas de que beneficiamos. Talvez seja por isso que, sempre que se sugere instabilidade no plano político-institucional e a possibilidade de um abalo no regime, surjam imediatamente ideias de governos de «salvação nacional». A esta ideia está quase sempre associado um discurso sobre homens que se distinguem dos seus pares pelas características morais, como as de um bom pai de família, por oposição à «bandalheira» que a comunicação social transmite.
Um exemplo recente da obsessão pelas características morais de um político foram as manifestações públicas a propósito da morte do antigo Presidente da República Jorge Sampaio. Assim que se soube da sua morte, não houve um único comentário que não referisse o fator «bom homem ou homem bom», variando apenas a posição do adjetivo, a dar ares de originalidade. Se os livros de História passassem a usar como fonte exclusiva o arquivo da internet, as futuras gerações achariam que nos séculos XX e XXI o percurso político das pessoas acontecia por pensamento mágico e que, provavelmente, Jorge Sampaio foi a votos contra um homem mau ou, no limite, não tão bom.
Por mais que se tente convencer as pessoas que quem se candidata a cargos políticos e quem os exerce faz opções políticas e que são as opções políticas – as suas consequências, as suas circunstâncias, os seus beneficiários – que definem estes indivíduos e não ajudar velhinhas a atravessar a passadeira ou tomarem café com os comunistas nos Passos Perdidos.
Se o populismo antipolítico tem ajudado ao recrudescimento da extrema-direita, o extremo-centro tem sido alimentado por este moralismo da moderação, da boa pessoa que é moderada, em oposição à má pessoa que é sectária ou «radical». O espectro da social-democracia em Portugal (que é amplo) tem absorvido bem esta dinâmica moral, até porque ajuda à narrativa do jovem irreverente que era um radical de esquerda e que cresceu um moderado por causa do pragmatismo e outras soft skills.
Este discurso é tão prejudicial à nossa consciência política quanto o do vizinho que acha que são todos iguais e querem é poleiro. Não há nenhuma diferença entre eles quanto à avaliação política, porque ambos são avaliações idealistas, morais, entre o bem e o mal. Como no Dragon Ball.
É por isso que é desgastante e desconfortável desmontar o papel da moral nas nossas conversas sobre opções políticas e facilmente ceder ao discurso dominante, porque esse desconforto obriga-nos a admitir que nós próprios seremos ali alvos de uma avaliação exclusivamente moral – e ninguém quer ser má pessoa. Em última análise, queremos todos acabar com o epitáfio do homem bom, independentemente do lado pelo qual escolhemos lutar e, se calhar, conquistar o nome de uma rua. Talvez a eternidade esqueça as escolhas que fizemos.
*O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)
Sem comentários:
Enviar um comentário