Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
Se António Costa conta e o Governo confere, o PS duvida. Num regime presidencialista, não haveria contas a fazer, quando muito a ajustar.
A opinião, num regime que tudo centra no carácter pessoal e intransmissível da decisão, não deixa larga margem à discussão e alternativa, encerra-se no debate estéril e condenado à sentença final do seu presidente ou chefe-maior de Estado. Para o primeiro-ministro de um regime semipresidencialista como o português, os equilíbrios de governação fazem-se tanto a olhar para Belém como para o Largo do Rato. Melhor dizendo, há um país que pode estar suspenso por um primeiro-ministro que analisa o poder como uma circunstância do momento e não como o dever de serviço de que está incumbido. Ao promover abertamente o impasse nas negociações do Orçamento do Estado para 2022 (OE22), António Costa pode pensar que eleições a curto prazo (como Marcelo já prometeu em caso de crise política-orçamental) são mais benéficas para o poder socialista do que eleições antes de uma crise orçamental para 2023 (essa, provavelmente inevitável) ou do que eleições no fim do tempo da legislatura. Este julgamento pressupõe que o primeiro-ministro conta com um país nas mãos quando, no entretanto, o país lhe escorrega entre os dedos, alado a combustível fixado a preço "gourmet".
Muito se tem debatido sobre a relação de proximidade do país com António Costa e com a sua governação. Após uma vitória algo tímida nas autárquicas, onde a perda de autarquias simbólicas afectou a moral socialista e acrescentou pontos às dúvidas, Costa parece ainda viver numa zona de conforto muito sua. As sondagens na noite eleitoral assim o indicavam: se as eleições fossem legislativas, a vitória do PS poderia ser esmagadora. Mas a percepção de que algumas autarquias foram perdidas pelo PS à custa da soberba da governação de Costa instalou-se. Há uma parte do país que não lhe perdoou não ter tido a humildade de remodelar o Governo. Há muita gente que se afrontou pela falta de ética na utilização abusiva da argumentação do PRR em campanha e pelo pensamento de que as favas estavam contadas. Por estranho que pareça, António Costa continua sem contar as favas, dando um país por adquirido em caso de eleições imediatas. Daí a tentação de as promover, antecipadamente, através de uma crise política. Sem compreender que há uma parte substancial do país que já percebeu que, como em alguns momentos do passado recente, Costa só não negoceia porque não quer.
É demasiado evidente a sua falta de vontade, pelo que já não consegue passar o odioso para o BE e PCP por uma eventual não aprovação do OE22. Mas Costa tem a ideia imaginária de um país amigo que não lhe faltará quando tem tantos euros para distribuir do PRR. Contudo, o país já percebeu que esse dinheiro não lhe pertence nem pertence ao PS. E a questão que se coloca é se o PS que suporta esta governação quer tanto ir a eleições como António Costa aparentemente deseja. Se mesmo no Governo encontra contestação e não unanimidade, imagine-se nas bases de um país cor de rosa que construiu, sonhou ou continua a acreditar que existe.
O autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico e jurista
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