Escravos dos tempos modernos em Portugal
Joana Amaral Dias* | Diário do Notícias | opinião
Já uns meses, meio país chorava Odemira. Lembram-se? Como era possível esta epidemia de exploração de pessoas vindas do Bangladesh, Índia e Nepal para fugir à pobreza, contratadas a granel para campos agrícolas? A nação política batia no peito e jurava nunca mais, os espectadores emocionavam-se: escravos dos tempos modernos amontoados no nosso Alentejo, esmifrados até à ossada, empilhados em contentores, aldeolas de metal, campo/cama, cama/campo, a pagar para dormitar em beliches e levar três euros/ hora de sol a sol em redomas plastificadas. Lembram-se? Certo é que esta semana, os patrões da restauração e hotelaria também andaram a lacrimejar por, dizem, terem que ir buscar trabalhadores a Cabo Verde, Filipinas e Brasil porque o português, pobre e mal agradecido, recusa-se a sair da sua zona de conforto e trabalhar 996, 12 horas por dia, seis dia por semana a ganhar o salário mínimo no máximo, folgar quando calha, terminar quando dá, sobrando-lhe muito pouco ou nada no final do mês, ficar sem dinheiro, sem tempo, sem futuro, sem vida. O carpir e o lamento parte também dos empresários da construção civil que, dizem, assim não conseguem manter o seu negócio. Pois é. E a coisa até chega a outros níveis de formação - o IEFP tem dezenas e dezenas de ofertas de colocação para engenheiros com salários entre os 700 e os 1000 euros brutos. Ninguém lhes pega. Pudera.
Estes patrões queixam-se como se, realmente, os nossos trabalhadores fossem indolentes e ingratos, como se devessem aceitar o "mais vale pouco que nada" (ainda dizem que não há trabalho, repetem) e como se fosse muito natural declarar com ligeireza que então vão captar estrangeiros que se deixem explorar e vilipendiar. A insustentável leveza do ser com que se declara o recrutamento de carne para canhão, o capturar de mercadoria humana descartável, de usar e deitar fora, é extraordinária. Afinal, a vítima é este tipo de donos e de chefias, coitados, que não conseguem recrutar lusos desesperados. O presidente da Associação de Hotelaria de Portugal, por exemplo, não se refere à necessidade de valorizar salários e condições sociais, ou a horários decentes, tão pouco ao cavar das desigualdades que urge combater. A sua fala é impante; estes tugas já não se sujeitam, logo busca-se quem aceite servidão. Discursa, discursa, mas ninguém lhe pergunta o que dará em troca a estes seres humanos. Um prato de feijão?
Pelo meio, António Costa deu uma entrevista à estação pública onde garantiu não poder aumentar o salário mínimo pois não seria viável sujeitar as empresas a tal sacrifício depois da crise económica consequente à sua própria gestão da covid. Sem contraditório ou confronto, o primeiro-ministro alinha-se com a tal fala possidente de empresas lucrativas que não aceitam distribuir riqueza, esquecendo-se que a melhoria do poder de compra dos portugueses também acrescenta à facturação das empresas; a catadupa de subsídios pesa na segurança social; que também paga mal no Estado (levando a tantas greves e demissões) e assim não pode garantir serviços públicos de qualidade; que o país do salário mínimo também é o país da fuga de cérebros e do salto de milhares de jovens; que o Portugal do défice e da divida também precisa de boas receitas fiscais. Odemira? Foi só uma miragem.
*Psicóloga clínica. Escreve de acordo com a antiga ortografia
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