quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Angola | LUANDA TEVE LUZ NUM PARTO DIFÍCIL

Artur Queiroz*, Luanda

A população da capital sofreu sempre muito por causa da luz eléctrica. Mesmo quando esforçados engenheiros e outros técnicos da Luz e Água de Luanda (LAL) assumiram a responsabilidade de iluminar as casas das e dos luandenses. Mas a partir de 1930, a cidade estava bem iluminada e quem tinha dinheiro, podia acender a luz com um simples toque nos interruptores. Adeus candeeiros a pitrol e os revolucionários “petromax” que iluminavam à pressão. Até este ano luminoso, muito caminho foi necessário percorrer e muito pedregulho partir.

Em 1904, o governo português decidiu fazer o aproveitamento da energia das águas correntes do rio Dange (ou Dande) no sobado das Mabubas. O projecto teve como base estudos do Engenheiro Miranda Guedes. E foi atribuída uma concessão de exploração à Companhia Agrícola do Dande, mais tarde Companhia de Açúcar de Angola, proprietária da majestática Fazenda Tentativa, mais tarde Heróis de Caxito. Tudo domínios do magnata Sousa Lara, o rei do açúcar entre Caxito e Catumbela. 

O objectivo primário era electrificar a refinaria da Fazenda Tentativa. O segundo, era abastecer Luanda, bem perto das Mabubas. Estava muito dinheiro em jogo. A I Guerra Mundial fez adormecer o ousado projecto.

Em 1920, três capitalistas não identificados, pediram uma licença para novos estudos. Falharam. Em 1923, um grupo de empresários e engenheiros luandenses obteve nova licença. Caducou porque ao fim de seis anos, nada apresentaram. Em 1942, 19 anos depois, a Sociedade Técnica de Engenharia, obteve uma nova concessão. Pretendia fabricar energia eléctrica nas Mabubas para inundar Luanda de luz. Desta vez não falhou porque o Governo-Geral de Angola, no mandato de Vasco Lopes Alves, adquiriu o projecto e assumiu as obras e equipamento da barragem das Mabubas.

Mesmo assim andava tudo a passo de camaleão. As obras arrancaram em força no início de 1949, já no mandato do governador Agapito (José Agapito da Silva Carvalho). A primeira fase entrou em produção no começo de Abril de 1954. O presidente da República Portuguesa, Francisco Higino Craveiro Lopes, inaugurou a obra. Luanda estava em vias de ser uma cidade iluminada. Mas vamos ao primeiro passo.

A vereação da Câmara Municipal de Loanda decidiu, em 1922, há cem anos, fornecer energia eléctrica à cidade e avançar com o sistema de iluminação pública. Decidir foi fácil mas concretizar a empreitada tornou-se um martírio. Muita burocracia, falta de dinheiro, obstáculos legais, contravapor do Governo-Geral, tudo aconteceu antes de chegar a luz eléctrica. Em 1928, finalmente foi aberto um concurso público.

A vereação decidiu, em reuniões extraordinárias de 17 de Maio e 15 de Junho de 1928, contrair um empréstimo na Caixa Económica Postal (banco dos CTT) de 1.600 contos (1.600.000$00) para pagar as primeiras obras de iluminação da cidade. A solução adoptada, inicialmente passava pela constituição de uma empresa municipal para construir o sistema e explorar o fornecimento de energia. 

O alto-comissário, António Vicente Ferreira, reprovou a proposta. Algum tempo depois regressou a Portugal. O governador interino, António Damas Mora, manteve a mesma posição.

O historiador Alberto de Lemos era nesta altura o presidente em exercício da vereação. Num ofício dirigido ao presidente do Conselho do Distrito de Loanda (antepassado do governador provincial) informava que a Câmara Municipal de Loanda ficava com “o exclusivo da exploração da luz e energia eléctricas, para o consumo público e particular da cidade”.

Para respeitar a decisão do alto-comissário, os vereadores da Câmara Municipal de Loanda decidiram atribuir “a adjudicação desta concessão a uma empresa ou entidade particular que explore, mediante uma renda a fixar, e a comparticipação da Câmara nos lucros da mesma empresa ou entidade”. 

O governo aceitou a proposta e o empréstimo foi concedido. Mas impondo estas condições: O capital deve ser amortizado anualmente e ser liquidado em dez anos. Como na época os cofres públicos e bancários estavam vazios, foi imposto que a Caixa Económica Postal tinha que entregar a totalidade da verba em três fracções, num período máximo de 18 meses. O juro era de oito por cento ao ano, o que dava um encargo de 238.447$18, quase 239 contos anuais. Na época era uma fortuna.

A vereação pediu um orçamento à Casa AEG (1.500 contos) e outro à Casa Simens (1.650 contos). Mas se a Câmara Municipal quisesse iluminar apenas a parte da cidade que acabava na Rua Brito Godins (hoje Lenine) e desistir da potência para a energia industrial, o custo da instalação descia para mil contos (1.000.00000). Estas foram as referências para o pedido de empréstimo à Caixa Económica Postal.

Em 1928, a Câmara previa arrecadar 3.200.000$00 (3.200 contos). Esta estimativa assentava nas receitas dos anos anteriores: 1924-1925, as receitas foram de 1.728.915$86. Em 1925-1926 entraram nos cofres 2.600.97160. Em 1926-1927 as receitas chegaram aos 2.702.703$53. 

A vereação que deu luz à cidade era assim constituída: Presidente, Vergílio Monteiro e os vereadores Alberto de Lemos, Manuel da Costa Correia Nunes, Augusto Correia de Freitas (um dos proprietários do jornal Província de Angola hoje Jornal de Angola), Francisco das Necessidades Ribeiro Castelbranco, Joaquim da Silva Pinho e Alberto do Vale Serra. Manuel Velasco Galiano era o secretário da Câmara.

O alto-comissário António Vicente Ferreira recomendou que o projecto da iluminação da cidade e fornecimento de energia eléctrica aos domicílios e empresas fosse entregue a uma empresa privada. Os Vereadores não aceitaram a recomendação e optaram por adjudicar a concessão, ficando com o exclusivo da exploração. Vale a pena ler os argumentos apresentados ao Governo-Geral: “Não basta instalar-se a luz eléctrica para o problema ficar satisfatoriamente resolvido, pois muito importa que essa luz seja abundante e barata para os munícipes, para o Estado e para a Câmara. Não é possível realizar-se este grande e quase único objectivo conjugando-o com os interesses de uma companhia particular, a qual se não pode alhear da finalidade dos grandes lucros”.

A empresa que instalou a iluminação pública em Luanda (Casa AEG) e o sistema de fornecimento de energia eléctrica aos domicílios e empresas teve 240 dias para concluir a empreitada. Cumpriu. A rede pública ficou com 616 candeeiros e postes em ferro dispostos em 26 quilómetros. As ruas da cidade foram agrupadas por categorias. 

Na primeira categoria ficaram instalados 264 candeeiros. Os postes, em ferro fundido, tinham cinco metros de altura, um globo em vidro e lâmpadas de 150 velas. Nas ruas de segunda categoria foram instalados 123 candeeiros. Os postes tinham quatro metros de altura com um globo em forma de tulipa e lâmpadas de 75 velas. Nas ruas de terceira categoria foram aproveitados os postes da iluminação a gás ou óleo de jinguba, com lâmpadas de 50 velas. Era a cidade dos pobres, mas dentro do asfalto. A rede para os domicílios, comércio e indústria era independente. 

As indústrias da cidade (poucas) tinham garantida energia com um mínimo de 130 cavalos. Mas a empresa concessionária tinha uma reserva permanente de 160 a 180 HP, distribuídos em dois ou três grupos geradores.

A velha Luanda de há 100 anos tinha estas ruas de primeira categoria: Avenida Álvaro Ferreira (hoje Primeiro Congresso do MPLA), Avenida Brito Godins (Lenine), Praça de D. Pedro V (largo do Palácio da Cidade Alta), Avenida Salvador Correia (Rainha Jinga), Largo Diogo Cão (Porto de Luanda), Calçada de Santo António (Rádio Eclésia), Largo Almirante Baptista de Andrade (Mutamba), Avenida Paulo Dias de Novais (4 de Fevereiro, Marginal), Praça Pedro Alexandrino da Cunha (Largo dos Correios), Rua Guilherme Capelo. Esta artéria, até à Fortaleza de São Miguel também foi iluminada com materiais de primeira categoria.

As ruas de segunda categoria estavam integradas no Bairro da Maianga, estação da Cidade Alta e arredores. Via Largo Serpa Pinto ia até ao Bairro dos Coqueiros. Mais as ruas envolventes à igreja dos Remédios (Sé). Também faziam parte da segunda categoria as artérias entre a Rua Rainha Jinga e a Marginal, com destaque para a recém-baptizada Rua Alfredo Troni.

O maior número de ruas estava na terceira categoria. O Bairro Miramar faz parte deste grupo. Em 100 anos a evolução foi notável. Hoje é a zona das Embaixadas! E há nomes de artérias que hoje nos são familiares como Rua Vieira Dias, Rua Pinto de Andrade. O Bairro Operário também ficou iluminado. Toda a zona das Ingombotas a partir da Rua do Carmo estava igualmente na terceira categoria. 

Por curiosidade aqui ficam os nomes dos bairros da Luanda de há cem anos: Quipacas, Nazaré, Bungo (entre a Igreja da Nazaré e a Kaponte), Katomba, Mutamba, Mazuika (na zona das Igreja do Carmo), Kafaco (Calçada da Missão, Ingombotas, Maculusso, Sangandombe (Avenida do I Congresso do MPLA, território dos oleiros do barro negro), Quibando (onde está hoje o Cine Teatro Nacional), Katari (zona do Pelourinho), Remédios (Cidade Alta), Quitanda, Terreiro (Porto de Luanda) Misericórdia (Sé) e Maianga.

A energia eléctrica deu um grande impulso à capital de Angola, primeiro, produzida por geradores e depois na barragem da Mabubas. O salto foi extraordinário. Um pequeno aglomerado de “400 vizinhos”, em 1621, foi crescendo até se tornar, no início do século XIX, “o grande empório esclavagista ma costa ocidental de África” como a cidade foi definida pelo sábio angolano Ilídio Peres do Amaral. Angola fornecia permanentemente mão-de-obra escrava ao Brasil. Elias S. Corrêa dizia da Luanda do século XVIII: “O mais vezível e constante, hé, e tem sido, os direitos da escravaria”. A escravatura foi abolida em Dezembro de 1836, mas apenas no papel. Ainda continuou, de forma ilegal mas com a complacência das autoridades, por mais três décadas!

A Luanda comercial floresceu nas duas primeiras décadas do século XIX. Em 1816, foi construída a Quitanda Grande, perto do local onde está hoje o Banco Nacional de Angola. Documento da época dá conta que nesse mercado “trabalhavam 100 pretas que desapareciam ao pôr do sol e apareciam ao raiar a aurora”. Nesta altura a cidade tinha 4.518 habitantes. Impulsionada pelo comércio, Luanda cresceu de tal forma que em 1866 já tinha 11.555 residentes, quase o triplo de 50 anos antes. 

Em 1824, a cidade tinha 689 pessoas trabalhando nas artes e ofícios. Mas em 1846 os números revelavam uma grande cidade e 2.500 luandenses trabalhava no seu pujante comércio, assim distribuídas: 33 nas casas comerciais, 35 nas lojas de fazendas e outros tecidos, 107 nas casas de mercearia e molhados, 16 casas que vendiam água ao povo, sete padarias (o pão nunca pode faltar!), cinco boticas, cinco talhos, uma fábrica de charutos (os famosos Jacintos) e tabaco picado. Nas ruas de Luanda comerciavam 113 quitandeiras, algumas com lugar fixo nas quitandas. Eram e são ainda hoje a marca indelével da cidade, assim revelada ao mundo por Agostinho Neto:

A quitanda
Muito sol
a quitandeira à sombra
da mulemba

- Laranja, minha senhora
laranja boa!

A luz brinca na cidade
de claros
o seu quente jogo
e a vida brinca
em corações aflitos
o jogo da cabra-cega

A quitandeira
que vende fruta
vende-se

- Minha senhora
Laranja, laranjinha boa!

Compra laranjas doces
Compra-me também o amargo
desta tortura:
a vida a rastejar.

Compra-me a infância de espírito
este botão de rosa
que não abriu;
princípio impelido ainda para um início.

Ah!
Laranja, minha senhora!
Esgotaram-se os sorrisos
Com que chorava
Eu já não choro.

E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas,
enterrado nas roças
e o meu suor
embebido nos fios de algodão
que me cobrem;
como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas,
à beleza das ruas asfaltadas,
de prédios de vários andares
e à comodidade de senhores ricos.

À alegria dispersa por cidades

e eu
me fui
com os próprios problemas da existência.

Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.

Tudo tenho dado
até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
entreguei-a aos poetas.

Agora,
vendo-me eu própria.
- Compra laranjas,
minha senhora!

Leva-me para as quitandas da Vida.
O meu preço é único:
- sangue.

- Laranja, minha senhora
laranja boa!

Talvez vendendo-me
eu me possua.

- Compra laranjas!

A iluminação pública e a energia eléctrica para domicílios e empresas, em 1930, operaram uma autêntica revolução tecnológica. A indústria de transformação e montagem arrancou em grande. A energia fabricada no complexo hidroeléctrico das Mabubas deu o impulso final. Aa indústrias manufactureiras (tabacos e tecidos) deram emprego a milhares de luandenses, sobretudo a Textang que em 1952 (há 70 anos) produziu 1.773.485 metros de tecidos e empregava “673 indígenas”. 

As indústrias alimentares também se desenvolveram, bebidas (cerveja e refrigerantes) mais as massas alimentícias. Estamos no ano de 1952, quando foi inaugurada a fábrica de cervejas Cuca. Graças à energia das Mabubas! A título de curiosidade, a cervejeira fabricou em 1956, mais de quatro milhões de litros. 

A energia eléctrica também permitiu o desenvolvimento das indústrias gráficas e da construção civil. Assim a cidade com 20.000 habitantes em 1866, cresceu de tal maneira que no Censo de 1940 já tinha 61.028. No Censo de 1950 o registo da população era de 141.647 assim distribuídos: Negros 143.799. brancos 34.250 e mestiços 11.550. 

Ilídio Peres do Amaral, num trabalho intitulado “Aspectos Económicos da Cidade de Luanda” escreveu em 1957: “Num futuro próximo, o petróleo revolucionará o ambiente industrial da cidade de Luanda, cujo subsolo é rico em reservas petrolíferas. Pelo Governo-Geral já foi autorizada a montagem de uma refinaria na zona da Mulemba, de localização excelente quanto aos ventos dominantes, e as instalações portuárias correspondentes na Baía de Luanda”. 

Os luandenses nem imaginam que dormem por cima de biliões de barris de petróleo! Que dá muita luz, muita energia e muito dinheiro. Mas não chega para comprar um mês da História de uma cidade multisecular que é parte importante do fabuloso mosaico cultural angolano.

Há menos de cem anos (1926) Angola ainda não tinha o mapa que hoje tem. O Tratado de Loanda (Luso Belga) assinado nesse ano, só entrou em vigor no ano de 1928 através do Decreto 14.888 de 3 de Janeiro, que aprovou a Convenção Luso Belga de Loanda onde ficou definitiva a troca de territórios entre a Bélgica, que entregou a “Bota do Dilolo” (Lundas e saliente do Cazombo) e recebeu em troca o vale do rio Mpozo para construir o caminho-de-ferro de Matadi, ligando o interior do Estado Livre do Congo (Congo Belga) aos portos de Banana, Boma e Matadi. Cabinda ficou um enclave ainda mais encravado. 

Luanda nesse tempo já tinha iluminação pública a electricidade nos domicílios e empresas. Uma revolução!

* Jornalista

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