Madrugada de 4 de Fevereiro de 1961, sábado. As horas quentes em que tudo mudou e se transfigurou. A informação era precária, havia os jornais, a rádio oficial, os rádio-clubes e a Rádio Ecclesia - Emissora Católica de Angola, toda a comunicação social sujeita à censura prévia. A sociedade estava dividida entre uma comunidade minoritária que detinha o poder, mas que também estava estratificada, e uma maioria negra muito pobre, que vivia nos “musseques” e nas sanzalas. Entre elas, uma minoria “mestiça” que balançava de um lado para o outro.
Num total de 4.362.271 habitantes
em 1960, existiam apenas 56 mil assimilados e 179 mil brancos. A minoria branca
detinha o poder a todos os níveis, sem o partilhar. Os negros eram chamados
"rapazes” durante toda a sua vida e quando as senhoras brancas chamavam
"rapariga” a senhoras negras, muitas vezes a resposta era atirada entre
dentes, medrosa de represálias: "rapariga é peixeira!”
Levava já sete anos o "Estatuto dos Indígenas portugueses das províncias
da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39.668, de 20 de
Maio de 1954. No seu artigo 23, rezava que se consideram indígenas "os
indivíduos de raça negra ou seus descendentes que possuíam ainda a ilustração e
os hábitos individuais e sociais, pressupostos para a integral aplicação do direito
público e privado dos cidadãos portugueses”. E o artigo 23 continuava:
"Não são concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a
instituições não indígenas.”
Sobre a perda da condição de indígena pregava o artigo 56, que previa a
necessidade de requerimento para a aquisição da nacionalidade portuguesa:
"Pode perder a condição de indígena e adquirir a cidadania o
indivíduo que prove satisfazer cumulativamente os requisitos seguintes : a) Ter
mais de 18 anos; b) Falar correctamente a Língua Portuguesa; c) Exercer
profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento
próprio e das pessoas da família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para
o mesmo fim; d) Ter bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos
pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos
cidadãos portugueses; e) Não ter sido notado como refractário ao serviço
militar, nem dado como desertor.”
E até à concessão de Bilhete de identidade de cidadão nacional está legislada
neste estatuto do indigenato: Art. 60: "0 bilhete de identidade será
passado a quem apresente documento comprovativo de alguma das seguintes
circunstâncias: a) Exercer ou ter exercido cargo público, por provimento ou
contrato; b) Fazer ou ter feito parte de corpos administrativos; c) Possuir o
1.0 ciclo dos liceus ou habilitação literária equivalente d) Ser comerciante
matriculado, sócio de sociedade comercial, exceptuadas as anónimas e em
comandita por acções, ou proprietário de estabelecimento industrial que
funcione legalmente.”
A sociedade colonial estava, assim, estratificada primariamente em cidadãos
nacionais portugueses, todos os brancos, os chamados assimilados "a
civilização”, em especial os mestiços e negros que reuniam uma série de pressupostos
inspeccionados e aprovados pela Inspecção Superior dos Negócios Indígenas e
pela Administração, entre eles ser cristãos, possuir a 4ª classe, comer com
garfo e faca à mesa, falar a Língua Portuguesa... e no extremo mais baixo da
sociedade a população negra, "incivilizada”, cujo dever era trabalhar e
pagar o imposto indígena. Em suma: uma minoria detentora do poder
automaticamente cidadã e uma maioria afastada da cidadania, mas que a ela podia
aceder se "assumisse” ou "copiasse” os hábitos e costumes da minoria.
E havia, recordo, um desequilíbrio nos salários e no trabalho. Um negro não
podia usufruir de salário igual ao de um colega branco, mas o termo
"colega” que uso é falacioso, porque um branco era sempre chefe de um
negro e um negro nunca passava de "ajudante” de um branco, mesmo que
tivesse excelentes qualificações. A sociedade branca defendia-se assim do
perigo da "contaminação”.
Nacionalistas
Viriato Cruz, um intelectual muito activo e poeta, pontificava nos meios anticoloniais em Luanda, por meio de uma intensa actividade cultural semi-clandestina, um movimento que se designou "Vamos Descobrir Angola”, que se propunha conhecer Angola a fundo, repudiando o exotismo. Ele escreveu, no início dos anos 1950:
"O nosso movimento ataca o respeito dado aos valores culturais do ocidente, na maior parte antiquados e varridos pelo vento, incita a mocidade a voltar a descobrir Angola, sob todos os aspectos e por esforço organizado e colectivo. As orientações modernas da cultura estrangeira devem ser estudadas, mas para repensar e nacionalizar a sua faculdade criadora, positiva e válida, em favor das situações africanas. Os poetas devem escrever acerca dos interesses reais dos africanos, e da natureza real da vida africana, sem nada conceder à sede de exotismo colonial, ao turismo intelectual e emocional do prurido e curiosidade europeus.”
Em Dezembro de 1956, Viriato da Cruz redigiu um manifesto que ficou para a História como o manifesto fundador do MPLA. As ideias fundamentais do nacionalismo angolano de inspiração marxista estavam presentes, propondo uma estratégia de combate ao colonialismo português, um "amplo movimento popular de libertação de Angola” e uma frente anti-imperialista.
Em 1960, o MPLA organiza-se sobretudo em Conacri, capital da Guiné, e mantém contactos assíduos com Agostinho Neto, que militava no MINA, e que acabaria por ser desterrado para o Tarrafal e "Portugal metropolitano”, de onde se evadiu, já na condição de presidente de honra do MPLA, uma homenagem ao seu percurso político e que levou a que fosse escolhido como prisioneiro político do ano pela Amnistia Internacional em 1957.
Neto viajou para Coimbra em 1947, para frequentar o curso de Medicina com uma bolsa de estudos da Igreja Metodista Americana. Preso pela segunda vez em
Neto foi novamente preso, desta vez em Luanda, em Junho em 1960, e exilado, sendo encarcerado no Aljube, em Lisboa, de onde é libertado em 1962, para fugir, logo a seguir, com a família, para atingir o Congo-Leopoldville, onde se junta ao MPLA, dirigido nessa altura por um Comité Director, liderado por Mário Pinto de Andrade. Este abdica no ano seguinte, para permitir que Neto seja presidente do MPLA. Em Dezembro de 1961, o jornal do MPLA, Unidade Angolana fala de Neto como "Líder de Angola”.
O grito
De repente, ouviu-se um grito: "Ivuenu, ivuenu, twala boba!”, "oiçam, oiçam, estamos aqui”. Era um aviso de que a ordem colonial estava a ser subvertida.
As prisões políticas estavam cheias, o ideal nacionalista crescia sem parar. Em escassa meia dúzia de anos, Luanda organizava-se clandestinamente em grupos e subgrupos nacionalistas, com um objectivo comum, a independência de Angola, a sua separação de Portugal.
A polícia política PIDE instalara-se e sem perda de tempo organizou redes de informadores nos "musseques”, nos serviços e até nas ruas. Centenas de nacionalistas são então atirados para a Casa da Reclusão ou para a Cadeia de S. Paulo. Do Congo, vinham proclamações anticoloniais, Patrice Lumumba era o herói. Sim, era possível, a escravatura colonial não era eterna. No ar, havia um odor de urgência e imperativo de mudança. Mas os desconfiados colonos diziam entre dentes: "aqui eles não são capazes de fazer o mesmo que no Congo, o nosso preto é fiel...”
Mas esse "vento do Congo” parecia varrer Angola, transformando-se num tufão. Em Malanje, Kalandula, a missão católica transbordava de ideais nacionalistas entre os seus padres.
No Huambo, muito antes do 4 de Fevereiro, ainda era 1950, grupos de nacionalistas, mulheres e homens, organizavam-se, animados pelos ideais de Lumumba, e teceram uma enorme bandeira, vermelha, branca e preta com uma enorme águia no centro, o símbolo da liberdade.
No Lobito, em Luanda, grupos e subgrupos de nacionalistas brotavam por todo o lado, até o ditador Oliveira Salazar se viu forçado a dizer "têm muitos nomes para aparecer que são muitos...”
Aquele grupo de corajosos heróis clandestinos fez a mais simples recruta militar, nas noites silenciosas de Cacuaco e depois do Cazenga, que foi religiosamente guardado em segredo, um êxito para a altura. A polícia política não os conseguiu descobrir. O importante é que os nacionalistas fizeram, sem desculpas de dificuldades, o que a consciência lhes ditou que deviam fazer, o "poder branco” tornava, há séculos, insuportável a vivência da maioria negra. Tudo, na verdade, era referido aos valores brancos. Os negros só podiam chegar até onde os brancos permitissem e só podiam fazer o que os brancos lhes mandassem fazer. Os negros existiam para, desde o seu nascimento, servir os brancos.
Na confusão anárquica que se gerou, após o assalto nacionalista, era difícil contabilizar os mortos da madrugada. Fala-se em 40 nacionalistas, seis agentes da Polícia e um cabo do exército português. Mas estes números podem ser certos ou só estar próximos da verdade. As rusgas, nos anos 1950-60, eram constantes. Os homens negros apanhados na cidade de asfalto sem o "cartão de trabalho” diariamente assinado pelo patrão branco eram considerados "vadios” e imediatamente levados para a Prisão Indígena, ali na Alameda, a que hoje chamam Zé Pirão.
Sim, ali havia uma grande prisão, exclusiva para homens e rapazes negros "indígenas”. Se nenhum branco o fosse resgatar, ou se nenhum branco aparecesse para o escolher para os serviços domésticos 24h por dia, o prisioneiro era direccionado para as obras públicas, nomeadamente, para a construção de estradas.
Curioso, eu, rapaz branco, protegi um bom número de rapazes negros nas ruas. Eles não tinham cartão de trabalho e chamavam-me para os acompanhar, para que não fossem apanhados na rusga, dirigida nessa altura pelo chefe do posto Poeira, o terror dos indígenas. Se um rapaz branco acompnahesse um rapaz negro na rua, este estava protegido, não era rusgado.
A desconfiança instalou-se no seio dos colonos, mas eles não queriam acreditar que "os pretos” se revoltassem. Diziam em surdina que "os pretos” eram ingratos para com os brancos, que lhes proporcionavam o "acesso à civilização”, mas incapazes de se revoltarem, porque só conseguiam fazer o que quer que fosse se dirigidos por brancos. Mas agora, de repente, aqueles párias, aquelas "não pessoas”, sem quaisquer direitos”, atreveram-se, ousaram, violar as "regras do colonialismo”, o poder absoluto do branco sobre o negro.
Mais de uma centena de homens corajosos
Neves Bendinha, Paiva Domingos da Silva, Domingos Manuel Mateus, Imperial Santana, Virgílio Sotto Mayor, mais cem corajosos nacionalistas trajados de negro atiram-se para o desconhecido, conscientes de que as suas vidas podiam ter chegado ao fim. Repentinamente, o ar quente e húmido daquela madrugada de sábado encheu-se de um cântico: "Ivuenu, ivuenu, twala boba! Jinjangu pe ku maku ny jimbangala we, anangola, balumukenu!, twolo vutuka dii…”, "oiçam, oiçam, estamos aqui, com catanas e paus nas mãos, filhos de Angola, levantem-se, voltaremos aqui...”
Era um aviso de que a ordem colonial acabava de ser subvertida. No ar havia um odor de urgência. Mas os desconfiados colonos diziam entre dentes "aqui não são capazes de fazer o mesmo do que no Congo, o nosso preto é fiel...”
Agostinho Mendes de Carvalho, preso na Casa da Reclusão, ouvira dizer que os presos estavam na iminência de ser transferidos para o Tarrafal,
O cónego Manuel das Neves, que tinha sido pároco na Igreja da Missão de S. Paulo dos Musseques e posteriormente da Sé de Luanda (depois Igreja dos Remédios), é tido como o mentor dos acontecimentos de 4 de Fevereiro, juntamente com o padre Joaquim Pinto de Andrade. Preso no dia 21 de Março na sede da PIDE em Luanda, foi torturado e posteriormente enviado de avião, sob prisão, para a cadeia do Aljube, em Lisboa, onde permaneceu durante 4 meses sendo enviado com residência fixa para o Noviciado dos Padres da Companhia de Jesus,
Outros párocos angolanos foram igualmente reprimidos após o 4 de Fevereiro. Foram eles: Manuel Joaquim Mendes das Neves, Alexandre do Nascimento, Joaquim Pinto de Andrade, Manuel Franklin da Costa, Vicente José Rafael, Martinho Samba, Domingos António Gaspar, Lino Alves Guimarães e Alfredo Osório Gaspar, presos em Luanda e enviados sob prisão para Lisboa, sem nunca serem presentes a nenhum julgamento.
Joaquim Pinto de Andrade (1926-2008) foi um pároco licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, no ano de 1953. Participou, em 1956, no I Congresso dos Homens de Cultura Negra, realizado em Paris, e foi nomeado presidente de honra do MPLA em 1962. Em Julho de 1960 é enviado sob prisão num navio de carga para o desterro na Ilha do Príncipe. Regressa à cadeia do Aljube de Lisboa em 1961, fica com residência fixa e clausura no Mosteiro de Singeverga.
É novamente preso no Porto e transferido para as celas do Aljube. Em Janeiro de 1963, é libertado apenas para ser sujeito a nova prisão na cadeia de Caxias. Em 1971, com 44 anos, é julgado
A partir deste dia 5 de Fevereiro de
Adriano João Sebastião foi preso pela Pide antes mesmo do 4 de Fevereiro. Na Colónia Penal do Bié, foi maltratado e torturado. Seguiu para o "inferno” do Missombo, no Kuando Kubango. Na cadeia do Missombo, passou anos de sofrimento e privações. Quando Agostinho Neto chegou de Lisboa, em 1959, Adriano João Sebastião integrou o Grupo do MINA, que lhe foi pedir que conduzisse a luta
A madrugada de 3 para 4 de Fevereiro de 1961 transfigurou Luanda. A informação boca-a-boca imperava em todas as ruas, em todos os serviços, em todas as casas dos brancos, com uma população negra ainda incrédula e cheia de terror. E o abalo provocado por essa centena de nacionalistas foi tão grande que obrigou o governador-geral português, Álvaro Rodrigues da Silva Tavares, a ir à Emissora oficial de Angola no dia seguinte, às 23h15, ler uma inédita mensagem:
"Foi uma aventura louca de indivíduos influenciados por agentes comunistas estrangeiros, baseados no exterior, sem esperança de sucesso, excepto a de matar agentes da ordem. Os agitadores pretendem criar incidentes isolados dos quais esperam extrair o máximo efeito para maquinações internacionais.
Agradeço aos defensores da ordem, europeus e africanos, eu também enfatizo a tranquilidade demonstrada pela população. Eu asseguro a todos que todos os meios serão usados para garantir a paz e a ordem. Todos os que violarem a lei e provocarem incidentes serão punidos. Apelo para que todos mantenham um espírito de fraternal humanidade.”
Mas o governador não aqueceu o lugar. Nomeado a 15 de Janeiro de 1960, teve de lidar com o início impetuoso do nacionalismo angolano, com o levantamento dos camponeses da Baixa de Cassanje, com o 4 de Fevereiro e, um mês depois, com a revolta de 15 de Março. Foi exonerado, possivelmente pela "falta de firmeza”, a 23 de Junho de 1961. Foi antecedido por um general, Horácio José de Sá Viana Rebelo, e sucedido por outro general, Venâncio Augusto Deslandes.
A matança de sexta-feira, 10
No dia 5 de Fevereiro, em Conacry, o Comité Director do MPLA saúda não só a revolta de 4 de Fevereiro como reivindica a sua autoria. Um mês depois, a 10 de Março de
Holden Roberto, presidente da UPA, também reagiu ao 4 de Fevereiro,
alegando ter vindo a tentar conter os apoiantes da UPA dentro de Angola, que
pressionavam a favor do início de uma campanha activa de terrorismo contra as
autoridades portuguesas.
Holden Roberto afirmou não ter apoiado a tentativa de libertar presos políticos
em Luanda, disse que recusou comprometer a UPA com tal programa e que, embora
muitos dos envolvidos nas acções do 4 de Fevereiro fossem da UPA, a sua
organização não se envolveu nos ataques. (in Fábio Baqueiro Figueiredo: O 4
Fevereiro 1961 e a visão dos EUA).
A repressão que se instalou em Luanda logo nos dias seguintes ao 4 de
fevereiro foi indescritível. Dois dias depois, à tarde, aconteceu o funeral do
polícia morto nos ataques. Eram milhares as pessoas brancas presentes. À saída,
quase em frente ao Cemitério Novo (Santa Ana) ou Cemitério da Estrada de
Catete, do outro lado, havia uma fábrica de tratamento de mármores. Alguns
trabalhadores se associaram à parte da frente para ver a multidão branca e logo
se ouviram gritos "terroristas, terroristas, mata!”. E a matança imediata
aconteceu.
No dia 10, sexta-feira, no culminar de um ambiente de terror contra a população
negra, novo ataque é perpetrado contra uma cadeia, na tentativa de libertação
dos presos políticos, mas a acção não resultou e os seus integrantes foram
mortos.
Nas ruas da Luanda de asfalto, qualquer jovem negro visto de óculos ou com
livros na mão era sumariamente assssinado, pois a população branca, em grande
pavor, considerava que os óculos definiam o nacionalismo, porque Lumumba usava
óculos, era um "preto assimiliado, logo terrorista”.
Nas casas dos brancos, as patroas procuravam, nos anexos, roupa preta escondida
pelos criados, sobretudo calções e camisola, considerado o uniforme dos
"terroristas que assaltaram as cadeias”. Na rua de São Paulo, entre o
Bairro Operário e o Sambizanga, grupos de "pequenos colonos” andavam de um
lado para o outro, todos os dias, à procura de "terroristas”.
Vi o desgraçado de um miúdo negro ardina, correndo e apregoando o Diário
de Luanda, ser friamente assassinado com um tiro e ao som do grito
"terrorista!”.
Nacionalidade portuguesa
Por falar
Passo a explicar: o Cine Colonial era uma "caixa” quente e abafada onde se
exibiam filmes. Logo à frente do ecrã, havia a "geral”, exclusiva para
indígenas, com bancos de cimento corridos, sem costas. Um muro separava este
sector da "Superior”, bancos de madeira corridos com encosto, para
assimilados e pequenos brancos. Mais atrás, as "cadeiras”, individuais, de
madeira, para brancos, e, em cima, 8 "camarotes” para brancos. Havia
filmes para maiores de 13 anos proibidos a indígenas e havia filmes para
maiores de 6 anos e indígenas. Isto é, o indígena adulto era equiparado a uma
criança branca.
Nos dias seguintes ao 4 de Fevereiro, ouviam-se, por toda a Luanda, os
gritos das populações dos bairros do Marçal, Rangel, Sambizanga, Cazenga a
serem violentadas. A polícia política enviava os seus "informadores”, os
cipaios, invadiam os bairros à procura de "terroristas”, vizinhos denunciavam
vizinhos, o medo e o terror faziam parte do dia-a-dia, ninguém falava, tudo que
fosse dito era suspeito.
O Sambizanga foi incendiado numa noite e a "caça” era porta a porta.
Um número incalculável de pessoas negras foi morta e presa. Já não havia lugar
nas cadeias e a Fortaleza de São Pedro da Barra foi aberta para albergar
milhares de "suspeitos”, que aí deixaram as suas vidas. A alimentação,
funje seco, era cozinhada com água do mar. Rapidamente, as milícias foram
organizadas para patrulhar Luanda de noite, dirigidas por um oficial do
exército português, e abertas à população branca e a um ou outro mestiço claro.
Da acção repressiva dos colonos nem os pastores americanos da Missão Metodista
escaparam. Numa tarde, logo a seguir ao 4 de Fevereiro, um grupo de colonos
assaltou a missão e levou as viaturas da igreja até à baía, onde as atiraram ao
mar, numa prova de força contra a suspeita de apoio dos norte-americanos aos
"terroristas”. A resposta de Salazar demora dois meses e teve de aguardar pela
revolta de 15 de Março. A 13 de Abril, Salazar vai à TV e proclama "Para
Angola rapidamente em força”.
O ministro do Ultramar, Adriano Moreira, de 40 anos, é enviado a Luanda,
logo em Maio, quase um mês após a revolta de 15 de Março, com pacotes de
reformas coloniais. Da varanda do Palácio do Governo, na Cidade Alta, ele
dirige-se a uma multidão de milhares de pessoas negras e brancas, que
empunhavam cartazes com dizeres do género "Salazar sim e sempre; Holden
Roberto não e nunca!”, "O povo dos musseques saúda o ministro do Ultramar”.
Adriano Moreira anuncia, então, o fim do sistema do indigenato e concede a
atribuição da nacionalidade portuguesa a quem anteriormente era
"indígena”, ou seja, a maioria da população. O jovem ministro Adriano
Moreira foi enviado a Luanda para ouvir as reclamações da "elite” branca,
que versavam sobre a descentralização da administração colonial, o reforço da
incorporação política das elites brancas na governação, a abertura da economia
angolana ao investimento estrangeiro, o reforço do investimento do Estado
Português em infra-estruturas necessárias ao desenvolvimento da colónia, a
resolução do problema das transferências monetárias e a autorização para a
instalação de indústrias
Adriano Moreira
Autodeterminação
Em 6 de Setembro de 1961, era abolido o Estatuto do Indigenato, a população
negra "ex-indígena” passava a ter direito a Bilhete de identidade mas, ao
contrário do que acontecia com a população branca, o documento era passado pela
Administração de posto e não pelos serviços de registo civil.
O MPLA, no seu "órgão de combate” "Unidade Angolana”, nº 1,
datado de Dezembro de 1961, saúda o 4 de Fevereiro, "A Revolta de 4 de
Fevereiro''. Diário de um Sobrevivente, em que se fala que a notícia da
transferência iminente dos presos políticos para destino incerto precipitou os
acontecimentos, que não estariam marcados para esse dia. Nessa edição, o MPLA
fala da necessidade da formação de uma Frente de Libertação de Angola, tendo já
iniciado contactos com os principais partidos angolanos no exílio,
Se os colonos, ou a sua "elite”, estavam descontentes com o evoluir
dos acontecimentos, por motivos de segurança em Portugal metropolitano a
situação política também se transfigurou, aparecendo quem, mesmo discretamente,
advogasse uma solução de autonomia progressiva para Angola.
A face visível deste movimento foi o general Júlio Botelho Moniz,
ministro da Defesa, que teria promovido uma tentativa de golpe, logo em Abril
de
Nos EUA, pontificava o democrata John Kennedy, que advogava uma
autodeterminação para as colónias portuguesas e mantinha uma aproximação
discreta a Holden Roberto, que, nessa altura, a partir de Leopoldville
(Kinshasa), desenvolvia uma intensa actividade diplomática em favor da
independência de Angola.
Portugal vê o cerco fechar-se
Abril de 1961 foi um mês de intensa actividade diplomática. Portugal estava
isolado internacionalmente, os seus aliados da OTAN continuavam indecisos, mas
nunca abandonando Salazar.
Em Casablanca, Marrocos, sob os auspícios do rei Hassan II, a Conferência das
Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), criada por
iniciativa do MPLA, do PAIGC e da Liga de Goa, reuniu-se pela primeira vez, de
Vento libertador
Na ONU, formava-se um extenso grupo de pressão, com os "afro-asiáticos”
apostados em isolar e condenar o colonialismo português. A repressão no
interior de Angola não parava nem enfraquecia; vagas de presos eram enviados
para campos de concentração, muitos foram mortos e uma parte exilados para o
Tarrafal. Mas já nada podia fazer parar o vento libertador. Em Junho de 1961,
um grupo de estudantes de Angola, Moçambique e Cabo Verde foge de Portugal,
para se juntar à luta de libertação. Alguns destes nacionalistas viriam a ser
presidentes, ministros, generais ou médicos e teriam um papel relevante na
condução do destino dos seus países.
Os ex-Presidentes de Cabo Verde, Pedro Pires, e de Moçambique, Joaquim
Chissano, faziam parte dos jovens que deixaram Lisboa, Coimbra e Porto, com o
apoio do Conselho Mundial das Igrejas. A fuga passa por Espanha, França e
Alemanha.
E logo no mês de Agosto de 1961, novo golpe para o colonialismo salazarista. O
recém-criado Daomé (Benin), antiga colónia francesa na África Ocidental, ocupa
a Fortaleza de São João Baptista de Ajudá, uma das colónias mais pequenas do
mundo. A fortaleza foi fundada em 1680, pelos portugueses, e serviu como
entreposto comercial, nomeadamente de escravos. Portugal só reconheceu a
soberania do Benim sobre a fortaleza em 1975. Foi o primeiro território
colonial em África que Portugal perdeu no século XX.
Angola nunca mais foi a mesma. Os colonos agiam em duas frentes, contra a
população negra, sempre suspeita de "terrorismo”, e contra a metrópole que
diziam travar o desenvolvimento da colónia, agora província ultramarina.
O novo governador-geral, general Venâncio Deslandes, inicia um mandato que vai
incomodar o poder central de Lisboa. Ele avança com a criação do Ensino
Superior, sem a autorização de Lisboa. Submete, em 21 de Abril de 1962, o
projecto de criação dos Centros de Estudos Universitários à aprovação do
Conselho Legislativo de Angola, que o aprovou, com 20 votos a favor, pondo
Lisboa perante um facto consumado. Mas Lisboa declarou inconstitucional a
criação dos Centros de Estudos Universitários e anulou o diploma em 17 de Julho
de 1962.
Foi nessa altura que se ouviu a população branca a gritar de novo contra o
poder metropolitano e por uma autonomia em direcção à independência dirigida
pela minoria branca. O poder de Lisboa e os grandes interesses económicos
reagiram contra Deslandes, que, em Setembro, é chamado a Lisboa e exonerado.
Bolsas de resistência
Em termos militares, Deslandes conseguiu conter e, depois, circunscrever a
guerrilha a algumas bolsas dispersas de resistência, recuperando-se a maior
parte do território perdido no primeiro semestre de 1961. Uma destas bolsas foi
sem dúvida a Primeira região do MPLA, na zona dos Dembos, onde se refugiaram
sobreviventes do 4 de Fevereiro, que se manteve, no meio das maiores
dificuldades logísticas, até ao 25 de Abril de 1974, muitas vezes cercada pelos
exército português, que utilizava grupos de militares locais para aniquilar a
região.
O governo de Lisboa retirou supostas pretensões do general Deslandes de fazer
uma evolução rumo a uma federação de Angola, Moçambique e Portugal. Houve
muitas demissões na administração e nas Forças Armadas, foram afastados os
elementos considerados mais próximos do general Deslandes. O Governo-geral
demitiu-se em bloco, assim como o chefe da PIDE e do CITA, bem como o
governador do Distrito de Luanda.
Mas Adriano Moreira não sobreviveu a Deslandes e demite-se de ministro do
Ultramar em Dezembro de 1962, sem ter tido êxito na sua acção.
Jovens nacionalistas ou novos resistentes
Em 1961 teriam 14-15 anos e sentiram nas famílias, nos vizinhos, a repressão
sem limites. Muitos eram estudantes. Em 1965, quatro anos depois do 4 de
Fevereiro, emergem formas de organização nacionalista clandestina em Luanda,
que vão perdurar. No seio dos recém-criados Estudos Gerais Universitários de
Angola, estudantes reforçam a sua consciência. Então, de forma quase autónoma,
em relação à Direcção do MPLA no exterior, organiza-se o Comité Regional de
Luanda, que dirige vários grupos por toda a Luanda.
Entre esses grupos sobressai, sem dúvida, o Comité de Acção Kimangwa, que devia
chamar-se Kimwanga, mas, como esta designação significava "separação”,
optou-se pela troca dos sons para não dar nas vistas à polícia política. O
Kimangwa desenvolveu intensa acção de mobilização, sobretudo entre os jovens,
sobrevivendo até Outubro de 1969, quando, devido a uma acção de pinchagem nas
ruas Luanda, de recusa de votar nas eleições portuguesas, a polícia política
alertou, levando à prisão de largas dezenas de militantes clandestinos, a maior
parte ainda sem ter completado 20 anos.
Em 1970 e 71, novas prisões massivas foram feitas entre os jovens luandenses
que receberam o facho da luta pela Independência Nacional dos seus companheiros
mais velhos.
A Casa da Reclusão
O Forte de São Francisco do Penedo, reedificado provavelmente em 1684 e ponto
de apoio ao comércio de pessoas escravizadas, transformou-se, no século XX, na
Casa de Reclusão Militar. Albergou presos militares e políticos e foi alvo de
ataque no dia 4 de Fevereiro.
Hoje, quase só restam escombros, mas lá podia ser edificado um Museu da Luta de
Libertação Nacional. Situa-se entre a Fortaleza de São Miguel e a Fortaleza de
São Pedro da Barra, a nascente, esta que também acolheu largas centenas de
presos após o 4 de Fevereiro. Em 1766, o Forte transformou-se num dos depósitos
de escravos de Luanda, sendo igualmente um lugar de controlo do porto de
Luanda. Em 933, passou a chamar-se Casa da Reclusão e ali estiveram presos os
nacionalistas do "Processo dos
A PIDE
Em 1954, foi criada a Delegação de Angola da Polícia Política portuguesa,
encarregada de vigiar e reprimir quaisquer actos "subversivos” contra o
poder estabelecido. Tinha sede em Luanda, mas os seus serviços só começaram a
funcionar em 1957, no aeroporto e no porto de Luanda. Foram, em seguida,
criados Postos e Subdelegações em Cabinda, no Huambo, na Huíla, no Uíge, no
Cuanza Norte, em Malanje, em Benguela, no Bié, no Cuando Cubango, no Moxico.
Em Luanda, foi criado em 1964 o Posto de Vigilância de Catete, localidade onde
a polícia política suspeitava ser um ninho importante de nacionalistas. A expansão
da Polícia política colonial foi rápida, porque os ideais e a organização
nacionalista clandestina se faziam sentir um pouco por toda a Angola.
Posteriormente, a PIDE expandiu os seus serviços para países vizinhos, aliados
de Portugal, como a África do Sul e Namíbia, e penetraram no Congo-Kinshasa e
na Zâmbia. Holden Roberto, já no início dos anos 1960, queixava-se da
"infiltração” de agentes da PIDE na UPA.
Foi a PIDE, que se juntou aos serviços de inteligência militar, a responsável
por centenas de prisões de nacionalistas, nomeadamente, a partir de 1958-59,
abrindo as cadeias de São Paulo, Casa da reclusão, campos de concentração do
Bié, Namibe e Cuando Cubango, para onde foram deportadas ondas de nacionalistas
e suas famílias.
Rapidamente, a PIDE organizou um serviço de recolha de informações, por via dos
"informadores” ou "bufos”, que recrutou não só entre a população
branca da cidade do asfalto e comerciantes dos "musseques”, mas igualmente
entre a população negra e muitos cabo-verdianos.
Rui Ramos* | Jornal de Angola | Imagem © DR
*Jornalista e Antigo Combatente
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