domingo, 6 de fevereiro de 2022

Angola | ANTIGOS GUERRILHEIROS LEMBRAM QUANTO CUSTOU A LIBERDADE

Os antigos guerrilheiros de distintos movimentos de libertação nacional e ex militares das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (fAPLA), que participaram activamente na Luta Armada de libertação nacional, em Cabinda, destacaram o dia 4 de Fevereiro como sendo uma data muito importante na vida dos angolanos, por ter sido a partir da qual puderam ser os donos dos seus próprios destinos.

A província de Cabinda "forjou” muitos guerrilheiros, sobretudo do Movimento Popular de Libertação de Angola MPLA, que, a partir da densa floresta do Maiombe, desencadeavam inúmeras acções militares, que sempre culminavam com baixas consideráveis ao exército colonial português.

O Coronel do Exército na reforma António Luís Fuca, de 67 anos, é um dos intervenientes que o Jornal de Angola entrevistou, precisamente, para obter dele algumas impressões à volta do dia 4 de Fevereiro, data que marca o início da Luta Armada.

Começou por dizer que, face aos maus tratos que o colonialista português impunha aos angolanos, consubstanciados na falta de liberdade, opressão, trabalho forçado, entre outras sevícias, impôs-se a necessidade de, a partir do processo de "nacionalismo”, unir forças e, com o apoio de várias organizações de libertação nacional que emergiram nos anos 50, para derrubar o colonialismo português. 

Segundo António Luís Fuca, a luta desencadeada pelos nacionalistas angolanos contra o colonialismo português, congregando no seu seio "vários militares, comandantes e movimentos de libertação,” foi determinante para que hoje os angolanos pudessem ser os donos dos destinos no seu país.

Para António Luís Fuca, a data reveste-se de um significado histórico, para todo o angolano, porque "o angolano tem hoje identidade própria,” disse, acrescentando que, no tempo colonial, o cidadão angolano não tinha o Bilhete de Identidade sequer, mas apenas documento de identificação, "uma simples cédula pessoal, estampada com um desenho com a cauda de macaco”.       

Referiu que todo o desenvolvimento em Angola é fruto do esforço de nacionalistas, que se empenharam, com armas e catanas na mão, para ir à luta, dando inclusive a sua vida, em troca da liberdade.

António Luís Fuca considera bastante louvável e merecida a homenagem que o Estado Angolano atribuí a todos ex- guerrilheiros, antigos combatentes e, fundamentalmente, aos heróis de 4 de Fevereiro, que, na madrugada desse mesmo dia e no longínquo ano de 1961, empunhados com catanas, barras de ferro, entre outros objectos contundentes, atacaram a casa de reclusão no São Paulo.

"Foi um processo que teve a participação de muitos actores, daí a importância de o Governo angolano reconhecer o mérito, sacrifício e todo o empenho deste patriotas envolvidos não só nos actos de 4 de Fevereiro, mas também em todo o processo da luta de libertação, que veio dar a independência do país,” ressaltou.

Afonso Kongo Lelo, 73 anos, general na reserva, é também uma testemunha que fala sobre a epopeia da Luta de Libertação Nacional, destacando que "os três movimentos nacionalistas, nomeadamente MPLA, FNLA e a UNITA, destacaram-se na luta contra o colonialismo português”.

"Os três movimentos de libertação de Angola, todos se engajaram na luta contra o colonialismo português,” reiterou.

Antigo guerrilheiro do Exército de Libertação Nacional de Angola (ELNA) da FNLA, Afonso Kongo Lelo, vulgarmente conhecido por "Fogo no Inferno”, alcunha trazida da guerrilha, onde esteve desde 1961, disse que o ataque à cadeia de São, Paulo em Luanda, foi um acto bem planificado e corajoso e teve como objectivo libertar todos os presos políticos que aí se encontravam, privados de liberdade, por contestarem o regime colonial português.  

Batalha do Ntó

António Luís Fuca é sobrevivente da célebre batalha do Ntó, que aconteceu de 8 a 12 de Novembro de 1975, precisamente na zona sul da cidade de Cabinda, entre as FAPLA e o exército Zairense e com envolvimento de forças mercenárias. O evento teve como objectivo impedir a invasão das forças estrangeiras ao território nacional, no caso, em Cabinda.

A intenção dos invasores, relata, não foi concretizada porque a determinação de se defender o país prevaleceu no seio dos militares e comandantes das FAPLA, envolvidos na batalha: Pedro Maria Tonha "Pedalle”, Eurico Gonçalves, "Dois mil Pensamentos”, Pedrito, Pedro Sebastião, Bornito de Sousa, António Luís Fuca, comandante Max Merengue, brigadeiro Zacarias Filipe Gomes, tenente general Yoba e tantos outros.

"Tivemos que travar a progressão das forças inimigas, porque o objectivo deles era virem almoçar no Maiombe Hotel”, o que ficou totalmente gorado dada a prontidão das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA).

O calvário dos indígenas

Além da exploração gratuita dos recursos naturais em benefício do colono, os maus tratos e a discriminação foram uns dos motivos que levaram os angolanos a pegar em armas para combater o colonialismo português. O colono usou todas as artimanhas para dividir os nativos e melhor reinarem. Estabeleceu em Angola três grupos populacionais, entre indígenas, assimilados e brancos.

Os assimilados eram angolanos que gozavam de um estatuto social diferente. Tinham o domínio da Língua Portuguesa e portavam sempre um documento que já não os identificava como indígenas. Deixaram de viver nas aldeias, passando a residir próximo dos centros urbanos e eram, geralmente, funcionários da Administração Pública.

"A corrupção também teve lugar, porque muitos assimilados eram corrompidos, incentivados a não seguir as culturas dos autóctones, deixar a forma de ser, os seus usos e costumes e optar pelos hábitos e costumes dos europeus”, explica António Manuel Gime, antigo funcionário público da Administração colonial.

Para António Manuel Gime, os assimilados, em Cabinda, eram poucos e alguns foram preparados para servirem a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE/DGS), pois " tinham que possuir o bilhete de identidade português, de forma a diferenciarem-se dos demais''. Já tinham um certo grau de escolaridade compatível e o domínio da Língua Portuguesa, os hábitos e costumes europeus para poderem trabalhar de forma mais estreita com os colonialistas.”

Os indígenas não tinham virtualmente nenhum direito civil ou jurídico, nem cidadania. António Gime explicou que essa franja de pessoas era colocada à margem dos demais e vivia em condições precárias, obrigada a deixar os seus hábitos e costumes.

Referiu que os indígenas constituíam a mão-de-obra barata e dedicavam-se aos trabalhos duros, sobretudo, na construção civil, actividades nas fazendas, construção de estradas e exploração florestal. 

As condições sociais dos indígenas, explicou, resumiam-se apenas à aquisição obrigatória de bens alimentares mínimos para poderem sobreviver nas cantinas dos colonos; não tinham liberdade e eram proibidos de viver de acordo com aquilo que era a sua cultura.

"Muitos usos e costumes locais, que não casavam com a forma de ser dos portugueses, como a alimentação, o modo de vestir, de falar, a língua nativa, foram banidos a favor do assimilacionismo.”

Os encontros tradicionais na Muanza do chefe da aldeia foram também banidos, já que os portugueses desconfiavam que as reuniões dos nativos eram encontros políticos de carácter subversivo.

Aos maus tratos dos portugueses havia resistência e espírito de revolta no seio dos angolanos, facto que determinou uma mudança radical dos colonialistas na forma de lidar com os nativos.

Com o início da Luta Armada em Angola, a 4 de Fevereiro de 1961, o ambiente em Cabinda mudou e o colonialismo português passou a intensificar o recrutamento dos angolanos para o serviço militar obrigatório, de modo a diminuir o número de pessoas que se poderiam rebelar contra os portugueses e ingressar as fileiras dos movimentos de libertação.

"Para quem fosse para a tropa, o ambiente já era diferente. Estando nas mãos da PIDE-DGS, estes não tinham a possibilidade de tomar o lado oposto.”

Marcos da Luta de Libertação

A província de Cabinda identificou seis locais históricos que contribuíram significativamente na Luta de Libertação Nacional, iniciada a 4 de Fevereiro de 1961, para serem reconhecidos como património cultural nacional.

O secretário da Cultura, Ernesto Barros André, que avançou a informação ao Jornal de Angola, disse que, entre os locais inventariados de maior impacto na Luta de Libertação Nacional, destacam-se a localidade de Macamanzila, onde, em 1961, um grupo de  cidadãos nacionais destemidos munidos com meios rudimentares, como paus, catanas, espingardas de fabrico caseiro, atacaram posições das tropas portuguesas. Outro marco é a "Curva dos Mortos”, no município de Buco-Zau, onde se registou o primeiro ataque dos combatentes angolanos aos portugueses, a nível da II Região Militar, em 1964.

Destacam-se, igualmente, a "Curva das Pedras”, onde foi morto, nos anos 1970, o médico militar português, filho do então governador ultramarino de Angola; a zona de convergência de Chimbeti, onde decorreram várias batalhas entre as tropas coloniais e os combatentes da Luta de Libertação Nacional, assim como o quartel atípico do exército português localizado no Miconje Velho.

Outro marco é a localidade de Ntó, onde se desenrolou a famosa "Batalha de Ntó”, a 8 de Novembro de 1975, quando o exército do ex-Zaire, acompanhado de mercenários franceses e a FLEC, tentaram invadir e ocupar Cabinda, para programar a independência do território e inviabilizar a independência nacional no dia 11 de Novembro de 1975.

"São locais de interesse histórico-cultural. Com o desenvolvimento do turismo cultural, precisamos passar a mensagem da nossa memória colectiva e permitir que as pessoas contemplem "in sito” a nossa história.”

Escravatura

O processo da Luta de Libertação Nacional iniciou com a oposição à ocupação colonial, tão logo os portugueses se aportaram no território nacional. A situação agravou-se com o comércio de escravos no país.

Durante este período, Cabinda dispunha de três pontos importantes para a concentração e embarcação de escravos para a Europa, América e São Tomé e Príncipe. Em declarações ao Jornal de Angola, o secretário provincial da Cultura, Ernesto Barros André, disse que, em 1840, depois do surgimento dos movimentos abolicionistas contra a escravatura, Cabinda e Ambriz passaram a ser os pontos estratégicos de concentração e deportação de escravos para a Europa.

Em Cabinda, o destaque vai para o local de concentração e embarque de escravos de Chinfuca, hoje Património Cultural Nacional, onde passaram milhares de africanos deportados para a Europa e América.

Segundo o entrevistado, em 1878, era Nhundu Ngili, um nativo com poder financeiro considerável, quem assegurava o comércio negreiro no Chinfuca, comprando e vendendo escravos aos estrangeiros.

Dada a sua importância histórica, de acordo com Ernesto André, o local será, em breve, requalificado, com a construção de um monumento histórico para simbolizar o comércio de escravos a nível da província de Cabinda.  

Jornal de Angola | Bernardo Capita e Alberto Coelho | Cabinda | Imagem: © Fotografia por: DR

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