segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Os bancos são honestos e cumpridores das leis? E os legisladores e reguladores?

Suisse Secrets: fuga de informação revela como o Credit Suisse aceitou muitos milhões de euros em dinheiro sujo

Uma investigação feita por mais de 160 jornalistas em 39 países com base numa fuga de informação partilhada pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung mostra como, ao longo de anos, o Credit Suisse abriu e manteve contas secretas controladas por políticos corruptos, ditadores, traficantes de droga e outros criminosos

Foi por pouco que António Horta-Osório, o banqueiro português que foi obrigado a demitir-se há um mês do cargo de chairman do Credit Suisse, depois de assumir que violou a quarentena obrigatória imposta pelas restrições anti-Covid em viagens que fez ao Reino Unido, não teve de lidar com uma nova dor de cabeça para aquele que é o segundo maior banco da Suíça. Uma fuga de informação massiva do Credit Suisse com detalhes sobre quase 100 mil milhões de euros depositados em 18 mil contas bancárias de 30 mil clientes, entre indivíduos e empresas, mostra como o banco escondeu as fortunas de dezenas de clientes pouco recomendáveis espalhados pelo mundo inteiro, envolvidos em casos de tortura, tráfico de droga, corrupção, esquemas de lavagem de dinheiro e outros crimes.

Entre os clientes mais duvidosos do Credit Suisse estão alguns indivíduos condenados em tribunal que, ainda assim, já depois disso, conseguiram abrir ou manter contas no banco.

A fuga de informação foi entregue há quase um ano ao Süddeutsche Zeitung, um dos maiores jornais alemães, o mesmo que obteve os ficheiros dos Panama Papers, e foi partilhada com um consórcio de jornalismo de investigação, o OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project), e mais 46 media em 39 países, incluindo o Expresso em Portugal, o Guardian no Reino Unido, o Le Monde em França e o New York Times nos Estados Unidos.

Mais de 160 jornalistas juntaram-se para investigar, ao longo de meses, os dados partilhados pelo Süddeutsche Zeitung, concentrando-se nos casos dos clientes mais problemáticos, em que pode estar em causa a forma como o Credit Suisse tem lidado com a verificação sobre quem são os seus clientes e os critérios que tem aplicado para aceitar e manter as suas contas, incluindo a falta de escrutínio sobre a origem das fortunas que ali são depositadas e o perfil dos detentores dessas fortunas.

Entre os clientes duvidosos estão, por exemplo, o conselheiro financeiro do antigo ditador egípcio Hosni Mubarak e o seu chefe dos serviços secretos, Omar Suleiman, responsável por muitas violações de direitos humanos; o general Khaled Nezzar, ex-ministro da Defesa e líder de um junta militar na Argélia que está a ser julgado na Suíça por crimes de guerra e crimes contra a humanidade; ou uma rede de tráfico de cocaína na Bulgária que se encontra também em julgamento, em que o banco é acusado de ter ajudado no esquema de lavagem de dinheiro, ao ter permitido que essa organização criminosa operasse dezenas de contas bancárias e oito cofres entre 2004 e 2007.

A lista abrange ainda funcionários e políticos venezuelanos envolvidos em pagamentos corruptos relacionados com a companhia petrolífera estatal PDVSA — e cujos nomes são conhecidos em Portugal, como é o caso de Nervis Villalobos, ex-vice-ministro da Energia de Hugo Chávez, que tem estado a ser investigado em Espanha, nos Estados Unidos e também num processo-crime que o DCIAP (Departamento Central de Investigação e Ação Penal) tem em curso sobre alegados subornos pagos pelo Grupo Espírito Santo na Venezuela.

Em relação a Portugal, o Credit Suisse manteve dezenas de contas para o luso-angolano Álvaro Sobrinho, ex-presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA), e para Hélder Bataglia, presidente da Escom e ex-administrador do BESA, parte delas já depois de terem sido tornadas públicas as investigações criminais que decorrem em Lisboa desde 2011 relacionadas com estes clientes.

Vários angolanos foram também identificados como problemáticos. José Filomeno dos Santos, o filho do ex-presidente José Eduardo dos Santos que chegou a estar à frente do Fundo Soberano de Angola. Filomeno abriu em 2008 uma conta no Credit Suisse que chegou a ter 18 milhões de francos suíços no ano seguinte, apesar de naquela época estar ainda a dar os primeiros passos como empresário. A conta foi fechada em 2013. O filho do antigo chefe de Estado acabou condenado a cinco anos de prisão em 2020, por crimes de burla, peculato e tráfico de influência, a propósito de uma transferência de 500 milhões de dólares de fundos públicos com origem no Banco Nacional de Angola.

Além de Zenu, foi possível identificar nos Suisse Secrets o atual presidente da Bolsa de Valores de Angola, António Gomes Furtado, que teve duas contas no banco entre 1998 e 2013, uma delas com quase cinco milhões de euros, quando era funcionário do Banco Nacional de Angola, onde chegou a fazer parte do conselho de auditoria. Nem José Filomeno dos Santos nem António Gomes Furtado responderam aos pedidos de comentário enviados pelo Expresso, o OCCRP e o Süddeutsche Zeitung.

Banco diz que cumpre a lei

Numa resposta curta e genérica a uma série de perguntas detalhadas que foram enviadas pelos media parceiros da investigação, o Credit Suisse diz que o banco “funciona em conformidade com todas as leis e regulamentos globais e locais aplicáveis”, sublinhando que “uma série de medidas importantes no contexto das reformas financeiras suíças” foram implementadas nos últimos anos. “Foram feitos investimentos consideráveis no compliance e na luta contra a criminalidade financeira.”

Nos Suisse Secrets há contas abertas na década de 1940, embora mais de dois terços tenham sido criadas já depois de 2000, sendo que muitas estavam ainda operacionais na última década. A investigação permitiu perceber que cerca de 200 dessas contas chegaram a ter saldos de 100 milhões de francos suíços ou mais. E que uma dúzia ultrapassam a fasquia dos mil milhões.

Estes números representam menos do que 1% da carteira de ativos e clientes do Credit Suisse, que está classificado nos rankings da indústria financeira como o 41.º maior banco do mundo. Ao todo, a instituição gere mais de 1,5 biliões de euros, tem mais de 1,6 milhões de clientes e emprega quase 50 mil funcionários.

Já as contas da mais de meia centena de clientes identificados como problemáticos pelos jornalistas do projeto, elas chegaram a acumular quase oito mil milhões de euros, considerando a soma dos seus saldos máximos.

Para a fonte da fuga de informação que fez chegar estes dados ao Süddeutsche Zeitung, “as leis de sigilo bancário suíças são imorais” e “o pretexto de proteger a privacidade financeira é apenas uma folha de figueira que cobre o vergonhoso papel dos bancos suíços como colaboradores dos evasores fiscais”.

O segredo bancário suíço, um dos mais fortes e famosos no mundo inteiro, porque pode levar à prisão pessoas que partilhem informações confidenciais sobre clientes e contas, passou a ser lei em 1934. O seu elevado nível de sigilo foi justificado na época com a necessidade de proteger os ativos de clientes judeus durante o regime nazi, mas essa opacidade passou a permitir que muitos clientes desejosos de esconderem dinheiro sujo procurassem abrir contas em Zurique ou em Genebra.

No rescaldo da crise financeira de 2008 e de uma pressão crescente em redor da fuga aos impostos e de como isso tem vindo a afectar a capacidade de muitos estados em gerarem receitas públicas suficientes para fazer face às despesas com a educação e a saúde das suas populações, a Suíça acabou por aderir à troca automática de informações entre administrações fiscais. Desde 2018 que os bancos suíços participam nessa troca de informações, através de um sistema conhecido como CRS (Common Reporting Standard).

A Associação de Bancos Suíços tem promovido a ideia de que a adesão a este regime de partilha de informação significa que a era da confidencialidade acabou e uma nova era de transparência teve início.

No entanto, embora isso seja verdade para clientes de países desenvolvidos, como Portugal, ainda não é assim para mais de 90 nações em vias de desenvolvimento, que foram deixadas de fora. O sistema CRS “impõe um fardo financeiro desproporcionado às nações em vias de desenvolvimento, perpetuando a sua exclusão do sistema num futuro previsível”, diz o whistleblower dos Suisse Secrets. “Esta situação permite a corrupção e mata à fome os países em vias desenvolvimento, para os quais as receitas dos impostos são muito necessárias. Estes países são, portanto, os que mais sofrem com esta habilidade da Suíça em ser um Robin Hood ao contrário”.

O negócio de tirar dinheiro aos pobres

Nas últimas décadas foram-se acumulando os exemplos de como o Credit Suisse tem contribuído para essas acrobacias financeiras, ajudando a tirar aos pobres para que os ricos possam acumular níveis muitas vezes astronómicos de riqueza.

Um dos casos mais notórios foi o do antigo ditador filipino Ferdinando Marcos e da sua mulher, entretanto viúva, Imelda Marcos. Na década de 1990, dez anos depois de Ferdinando ter deixado de ser presidente das Filipinas, um tribunal obrigou o Credit Suisse a devolver centenas de milhões de dólares aos cofres públicos daquele país.

Os Suisse Secrets incluem uma conta que uma advogada, Helen Rivilla, conseguiu abrir no Credit Suisse no ano 2000, apesar de ter sido condenada em 1992 por ter ajudado o ditador filipino a lavar dinheiro.

Existem inúmeras situações nos dados em que o banco parece ter ignorado as informações comprometedoras que circulavam publicamente sobre os seus clientes.

Dois meses depois de ter sido primeiro-ministro na Ucrânia, em 1998, Pavlo Lazarenko tornou-se cliente no Credit Suisse, chegando a acumular mais de sete milhões de euros nas suas contas, apesar das origens humildes e ter trabalhado sempre apenas em funções públicas. Mais tarde, em 2006, viria a ser condenado nos Estados Unidos a nove anos de prisão por ter sido corrompido por um empresário ucraniano.

“As pessoas não devem ter acesso ao sistema se o dinheiro que têm é dinheiro corrupto”, diz Graham Barrow, um perito independente em crimes financeiros entrevistado pelo OCCRP. “O banco tem o dever claro de assegurar que os fundos que gere têm uma proveniência clara e legítima.”

O problema não se restringe ao Credit Suisse, porque outros bancos importantes têm estado envolvidos em escândalos deste género. “A ironia é que a Suíça tornou-se o lugar para o dinheiro sujo ir porque é puro, bem gerido, fiável”, admite James Henry, um conselheiro sénior da Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network), uma organização não-governamental no Reino Unido, que estudou esquemas de evasão fiscal no Credit Suisse. “O problema é este modelo de negócios de tirar dinheiro dos países pobres”.

Os Suisse Secrets mostram como o departamento de compliance do banco também parece ter falhado de forma evidente quando um sueco, Stefan Sederholm, abriu uma conta em 2008 e conseguiu mantê-la aberta durante cinco anos. Apesar de ter sido noticiado em 2009 que Sederholm explorava raparigas na Tailândia para a venda de serviços sexuais, e de ter sido condenado à prisão perpétua por tráfico de seres humanos em 2011, apenas em 2013 é que o banco tomou medidas e cancelou-o como cliente. Ou quando um bilionário egípcio, Hisham Talaat Moustafa, foi condenado em 2008 pelo assassínio da sua namorada, mas teve a sua conta a funcionar até 2014. Ou ainda quando Ronald Li Fook-shiu, apesar de condenado em 1990 a prisão efectiva por ter recebido subornos enquanto presidente da bolsa de valores de Hong-Kong, foi aceite como cliente uma década depois, tendo chegado a acumular quase 60 milhões de euros no Credit Suisse.

Na sua resposta, o banco assegura que os casos com que foi confrontado pelos jornalistas pertencem ao passado. “Como instituição financeira que é líder mundial, o Credit Suisse está profundamente consciente da sua responsabilidade para com os clientes e o sistema financeiro como um todo, para assegurar que os mais elevados padrões de conduta sejam mantidos.”

Incentivar a ignorância

No entanto, mais de uma dezena de funcionários e ex-funcionários entrevistados pelo OCCRP nos últimos meses retratam uma cultura de trabalho “altamente tóxica”, que incentiva a tomada de riscos, para obtenção de mais lucros. Os bónus que os funcionários recebem estão associados à entrada de dinheiro fresco na instituição.

“O banco incentiva um gestor bancário a olhar para o outro lado perante uma conta que ele sabe que é tóxica”, confessa ao OCCRP um executivo de longa data do Credit Suisse. “Se fechar uma conta tóxica, especialmente uma conta grande, com mais de 20 milhões de dólares, o gestor bancário vê-se metido num grande buraco. Um buraco de que é quase impossível sair.”

A manutenção do posto de trabalho pode depender da forma de gerir as grandes contas, em que na verdade parece haver dois tipos de regras: aquelas que servem para os clientes comuns e as que são reservadas apenas para os mais ricos.

“A due diligence dos clientes e das contas — digamos, a um nível de até um milhão de dólares — é muito minuciosa”, explica um ex-funcionário. “Mas quando se trata de contas de elevado valor líquido, os chefes encorajam todos a olhar para o outro lado e os gestores sentem-se intimidados, por causa dos seus bónus e da segurança no emprego.”

Os testemunhos recolhidos dão uma ideia de como o sistema se tornou cínico e fácil de manobrar. “O departamento de compliance do banco é mestre da negação plausível”, diz ao OCCRP um antigo gestor de contas do Credit Suisse em Zurique. “Nunca faça uma pergunta para a qual não queira saber a resposta.” A ignorância é estimulada.

Se os clientes forem muito especiais, mas também muito problemáticos, o melhor é evitar as vias habituais. “Os detentores de grandes contas vão diretamente para os gestores de topo, e não passam pelo sistema bancário privado normal”, explica um executivo. “O tipo de pessoas que o banco atrai são mercenários e todos eles procuram primeiro enriquecer-se a si próprios, provavelmente compreendendo que não existe uma relação real com o banco. Só se está lá enquanto se ganha dinheiro, independentemente da forma como se ganha esse dinheiro”, acrescenta um ex-funcionário.

O caso da rede de tráfico búlgara que tem estado a ser julgado é um exemplo claro de até onde é que as coisas podem ir. É a primeira vez na Suíça que um banco suíço está sentado como réu. De acordo com a acusação, o Credit Suisse permitiu que os traficantes lavassem mais de nove milhões de euros com origem na venda de cocaína.

Os procuradores acusam os gestores do banco de terem ignorado os sinais claros que existiam sobre os clientes e sobre a origem ilícita da sua fortuna, incluindo o facto de depositarem malas de dinheiro vivo. Mesmo depois de um dos criminosos ter sido assassinado e dessa morte ter sido reportada nos jornais como estando ligada ao tráfico de cocaína, as contas não foram canceladas. Uma das gestores envolvidas com estes clientes admitiu em tribunal que o banco ensinou-lhe tudo sobre a importância do segredo bancário suíça. Mas muito pouco sobre como verificar a idoneidade dos seus clientes.

 Micael Pereira e OCCRP | Expresso

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