Afonso Camões* | Diário de Notícias | opinião
Costa é um sempre-em-pé. Desde que chegou a São Bento, ganhou praticamente tudo o que havia para ganhar. Resistiu a Sócrates, a Pedrógão, a Tancos, a Cabrita e à pandemia. E vê os seus poderes agora reforçados por uma maioria absoluta que supera em votos os que já alcançara em 2019. É obra! Quando a próxima legislatura chegar ao fim, o PS, com Costa nos sucessivos governos, terá governado 23 dos últimos 27 anos. É uma geração - que não há de ficar sem prestação de contas.
Está visto: entre o certo e o incerto, os portugueses escolheram a estabilidade, com forte penalização dos que acrescentaram uma crise política às crises pandémica e económica que já cá estavam, chumbando o Orçamento e derrubando o governo a meio do mandato. À esquerda, o Bloco e a CDU pagam a maior fatura e a geringonça faleceu de vez. A direita democrática, essa, de novo órfã de lideranças, vai ter tempo para se reorganizar e estabelecer com clareza o cordão sanitário que a separa do discurso grunho, de ódio xenófobo, populista e intolerante, que agora ganha geografia e reconhecimento institucional na forma de um grupo parlamentar.
Com o próximo governo que ainda não há, mas que já tem proposta de Orçamento, com um programa mais recentrado e liberto das amarras parlamentares que o obrigavam a negociar à sua esquerda, parte da ação fiscalizadora passa agora para Belém, cabendo a Marcelo, mais do que servir de grilo a Pinóquio, forçar a agenda reformista de que o país precisa. Porque, se há algo de muito claro para todos os portugueses é a urgência de mais crescimento económico, menos desigualdades, melhores serviços públicos e menos asfixia fiscal, para além da gestão patriótica dos fundos europeus que aí vêm, destinados à recuperação e em dose irrepetível. É a urgência de querermos sair "deste tempo de vida dilacerada, para um horizonte de esperança e sonho", na boa síntese do Presidente da República, quando há um ano iniciava o seu segundo e último mandato. Enganam-se quantos, perante a maioria absoluta do PS, vaticinam a Marcelo um final de mandato (que coincide com o fim da próxima legislatura), menos marcante e influente. Um presidente não governa, não tem poder executivo. O exercício das suas funções é, não apenas, mas muito, o uso da palavra. E Marcelo sabe, como ninguém, temperá-la. É esperar para vê-lo e ouvi-lo. Ele que, ironicamente, será o primeiro chefe de Estado a viver na Presidência com dez anos consecutivos de governos socialistas.
Bem-vindos à realidade, o ano começa agora. Com maioria absoluta, é o PS e António Costa quem tem a responsabilidade de "dar esperança e sonho" aos portugueses. O Costa dialogante e europeísta terá de materializar-se. E não há desculpas nem faz sentido agitar fantasmas de absolutismo. O PS pode ter cometido no passado muitos erros na tarefa de governar, mas nunca renunciou às suas obrigações como partido de Estado. Qualquer democracia moderna precisa de uma esquerda aberta, mais próxima dos cidadãos, especialmente os menos favorecidos, uma esquerda não dogmática, tolerante, progressista, humilde, que respeite os adversários. Essa esquerda não é garantia de que a direita não volte a governar. Nem deve sê-lo. A razão de ser da esquerda não é acabar com a direita. Mas essa mesma esquerda deve ser a garantia de que, quando a direita democrática regressar ao governo, o que ocorrerá mais cedo ou mais tarde, milhões de portugueses se sentirão igualmente representados e protegidos.
Faz agora um ano, em cerimónia pública, Costa oferecia a Marcelo uma árvore em forma de bonsai, para sinalizar a garantia de continuidade e a cooperação estratégica entre Governo e Presidente da República. Era um carvalho. Oxalá não se esqueçam de o regar.
*Jornalista
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