domingo, 27 de março de 2022

CONTOS POPULARES ANGOLANOS

O Dia em que o Homem Pássaro Ficou sem Asas

Seke La Bindo*

Nas terras de Txissessenge havia grande fartura de comida e todos vivam felizes. A água corria cristalina no Méchi, a dois passos da aldeia. Nas chanas havia tanta caça que até as crianças traziam carne para casa. 

A abundância era comemorada com a txianda, ao som do txinguvo e belos coros. Nem o luar da Lua Cheia derramava sobre a terra tal alegria. Um dia, Samaíca voltou a casa com tanta carne que todas as mesas ficaram repletas. No terreiro a festa estava animada, mas o caçador não saiu de casa.

Quando a Lua ia alta, a txianda começou a esmorecer. Os coros mal se ouviam. Os guizos não marcavam o ritmo. O som do txinguvo nem chegava às margens do Méchi. Ante o silêncio, os peixes foram dormir nos buracos. Então Samaíca saiu de casa e entrou na dança. Cantou, cantou, percutiu o txinguvo trepidante. E a animação renasceu. No auge da festa, Samaíca falou:

- A minha voz é potente. Só o pássaro cungo canta mais forte do que eu. A partir de hoje o meu nome é Cungo Samaíca, o caçador.

O coro das mulheres acompanhou a proclamação e a festa continuou.

Cungo, alta madrugada, cantou:

- Minha mãe, querida mãe. Eu vou perder-me na caçada. Vou perder-me nesses caminhos traiçoeiros. Minha mãe, eu vou perder-me.

O coro acompanhou Cungo Samaíca:

- Ué ié hé mama é/mungúiza caritoquela!

Cungo Samaíca percutia o txinguvo, sua canção chegava aos ouvidos da Lua. Os guizos marcavam os passos da dança. O cantor lamentava:

- Mãe minha mãe, infelicidade. Mãe, querida mãe, tristeza! Hei-de perder-me algum dia!

A festa estava no auge e o som do txinguvo chegava lá longe, ao grande rio Lóvua. No meio de tanta animação o coro lançava sobre todos um manto de tragédia:

- Ué ié hé mama é/mungúiza caritoquela/Cungo é!

Ao amanhecer a festa esmoreceu e em breve chegou o silêncio que precede o alvorecer. Novo dia nasceu e a abundância na aldeia duplicou. Cungo Samaíca era muito estimado entre os seus. Até que veio o dia em que se perdeu.

Naquele ano tinha chovido tanto que o capim ganhou a altura das árvores. O destemido caçador perseguiu uma cabra do mato até caçá-la. Mas uma vez senhor da presa descobriu que estava perdido. À sua volta só via capim. Esperou que nascesse a Lua e brilhassem as estrelas, para que esses sinais lhe revelassem o caminho de regresso a casa. Mas estava tão desorientado que as estrelas o conduziram para mais longe da aldeia. Abandonou a presa e partiu em direcção ao Norte, sempre virado para as terras sagradas do Chitato. O novo dia encontrou-o ainda mais perdido.

À luz do Sol conseguiu descobrir os trilhos das suas últimas caçadas, regressando a casa, exausto e triste. Não falou com ninguém, nada mais quis ver. Cungo Samaíca sempre soube que havia de se perder. 

A meio da manhã ouviu-se o canto potente do cungo e todos se lembraram do intrépido caçador que numa txianda trepidante, ouviu o coração dizer-lhe que um dia havia de se perder.

Xanvumbo, uma velha tão velha que teve a sua primeira aldeia nas terras do Zambeze, enquanto preparava o pirão para os netos, lançou no ar uma canção contra a vaidade humana:

- Cungo Samaíca pode ter uma voz potente, mas de nada lhe serve ser pássaro. As suas asas vaidosas não conseguiram elevá-lo acima dos capinzais de Abril. Assim perdeu o caminho de regresso a casa e dormiu com as feras do mato.

O caçador que se perdeu, ouviu nitidamente a canção de Xanvumbo. E jurou a si próprio que havia de encontrar na floresta umas asas tão fortes como as do cungo. Na vida, tudo há-de acontecer, se é que não aconteceu já.

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