terça-feira, 15 de março de 2022

O ÓDIO À JANELA: A ISLAMOFOBIA EM PORTUGAL

O crescimento da extrema-direita tem normalizado discursos racistas e xenófobos. As comunidades ciganas e negras são os alvos preferenciais, mas a islamofobia também é importante na retórica identitária, nativista e exclusivista. As representações dos muçulmanos como “inimigos” e do islão como “ameaça” têm ecos além da direita radical, e raízes mais profundas em Portugal.

Marta Vidal | Setenta e Quatro

 “Hoje acordámos com o ódio escrito nas nossas janelas.” Foi assim que os donos de uma mercearia árabe em Lisboa denunciaram terem sido alvos de um ataque xenófobo. Numa madrugada de outubro, a mercearia do Médio Oriente Zaytouna (azeitona em árabe) foi vandalizada com uma mensagem ofensiva contra o islão, e duas cruzes patriarcais na montra. 

“Apesar deste discurso de horror ser minoritário, deve ser combatido e denunciado”, escreveram os gerentes da loja luso-palestiniana numa publicação partilhada nas redes sociais. “Não passará, e não teremos medo”, acrescentaram.

Não foi a primeira vez que Lisboa acordou com o ódio à janela, ou espalhado pelos muros da cidade. No ano anterior, mensagens racistas e xenófobas mancharam as paredes de escolas secundárias, faculdades, e o centro de acolhimento de refugiados. “Portugal é branco!”, “Europa aos europeus”, “Deportação das minorias já!” lia-se nas paredes, junto a mensagens de ódio contra comunidades ciganas, negras, árabes e refugiadas.

As palavras de ordem da extrema-direita escritas nas paredes surgiram numa altura de intensificação de ataques racistas e xenófobos, e de maior visibilidade de movimentos de supremacia branca em Portugal.

Em janeiro de 2020, Cláudia Simões, uma mulher negra, foi espancada por um agente da PSP porque a filha se esqueceu do passe de transporte. Meses mais tarde, em julho, um ex-combatente da guerra colonial assassinou o ator Bruno Candé depois de lhe ter dirigido insultos racistas num crime motivado por ódio racial.

Em agosto, ameaças de morte foram enviadas a deputadas e a ativistas antirracistas e antifascistas, pouco depois de um grupo neonazi ter organizado uma marcha com tochas e a cara tapada, ao estilo dos movimentos de supremacia branca, em frente à sede da associação SOS Racismo, que também foi vandalizada com a frase “guerra aos inimigos da minha terra”.

“Desde 2019, quando o partido português de extrema-direita conquistou pela primeira vez lugares no Parlamento, os ativistas de extrema-direita têm sido encorajados a cometer crimes de motivação racial”, alertou a Rede Europeia Contra o Racismo num comunicado publicado em setembro de 2020, em solidariedade com ativistas antirracistas e em condenação do aumento “muito preocupante” de ataques racistas e a banalização do discurso de ódio em Portugal.

Com a fundação do partido Chega em abril de 2019, André Ventura veio normalizar discursos racistas que, embora há muito presentes de forma mais ou menos latente na sociedade portuguesa, passam a encontrar maior espaço de legitimação e empoderamento. Explorando medos e ansiedades, Ventura ataca minorias que são tornadas em bodes expiatórios, dividindo a sociedade entre “portugueses de bem” e os “outros”.

Em debates, Ventura destila o ódio contra os seus “outros” em direto sem qualquer pudor – desde generalizações sobre comunidades inteiras (especialmente através de ataques a comunidades ciganas), ao uso de uma fotografia particular de uma família negra, insultada ao vivo num debate televisivo assistido por mais de 1,8 milhões de pessoas, o mais visto das eleições presidenciais de 2021.

Apesar dos alvos mais frequentes serem as comunidades ciganas e negras, a hostilidade ao islão e a comunidades muçulmanas também é um importante elemento na ideologia do partido, que se inspira na retórica xenófoba, exclusivista e nativista da extrema-direita europeia.


O CHEGA E A ISLAMOFOBIA

No programa político apresentado em 2021, o Chega expõe a sua ideologia hostil à imigração e defensora de uma identidade portuguesa e europeia que afirma estar assente numa “matriz milenar judaico-cristã” e “greco-romana”, em oposição ao islão.

Numa secção sobre “Migrações e Nacionalidade portuguesa”, o partido defende o dever de salvaguardar a “coesão sociocultural de Portugal e da Europa contra a ascendência do multiculturalismo”. Para isso, propõe medidas como o encerramento de espaços de culto que promovam “condutas não compatíveis com a cultura e a identidade ocidental” ou que “incentivem o terrorismo”, assim como a proibição de erigir mesquitas “promovidas pelo Wahabismo, Salafismo ou qualquer interpretação fundamentalista do Islão” e a proibição do financiamento externo de lugares de culto. Uma versão anterior do programa incluía a proposta de expulsar imames e de proibir o ensino do islão nas escolas públicas.

Apesar de serem inconstitucionais por incluírem formas de discriminação religiosa, algumas destas ideias chegaram a ser levadas ao parlamento pelo partido de extrema-direita. Em novembro de 2020, o Chega entregou na Assembleia da República um projeto de resolução que recomendava a criação de uma “equipa especial” para vigiar a comunidade muçulmana em Portugal, alegando que se deve promover “todos os mecanismos necessários” para monitorizar muçulmanos que possam “representar um perigo para o país”.

O líder do Chega é autor de um livro descaradamente islamofóbico e ofensivo, no qual alega haver um suposto "choque civilizacional" entre a Europa e o islão.

Em junho de 2021, Ventura propôs “limitar os níveis de imigração islâmica em território nacional”, afirmando que o "aumento descontrolado da imigração islâmica" é "um perigo que não pode ser ignorado” que coloca em causa os “valores da civilização europeia”. Esta proposta já tinha sido partilhada nas redes sociais em 2016, e novamente em 2018, quando Ventura defendeu que só uma “redução da população muçulmana dentro da União Europeia” poderia resolver o “problema” da Europa.

O líder do Chega é também autor de A Última Madrugada do Islão, publicado em 2009 mas suspenso pela editora Chiado, um livro descaradamente islamofóbico e ofensivo, sobre um suposto “choque civilizacional” que opõe “a liberdade e a democracia” europeias ao “fanatismo e intolerância” do islão. A contracapa do livro reproduz a polémica caricatura da autoria de Kurt Westergaard que representa o profeta Maomé como um terrorista. Nas primeiras páginas, no lugar da dedicatória, André Ventura escreve em “condenação de Yusuf Islam (Cat Stevens, que se converteu ao islão em 1977), porque nos abandonou a todos ao mais irracional dos radicalismos”.

Em discursos e nas propostas eleitorais, o Chega reproduz uma retórica de hostilidade e oposição ao islão que tem crescido nas últimas décadas por todo o mundo, transformando a islamofobia num fenómeno global. Através de uma retórica exclusivista, divide a sociedade entre um “nós” e um “outro” que é problematizado como diferente, um outro que não partilha a mesma identidade, cultura ou valores, um outro a quem é negado o direito de pertencer.

Estes discursos islamofóbicos baseiam-se em ideias preconceituosas, redutoras e essencialistas sobre uma religião seguida por 1.6 mil milhões de pessoas. O segundo maior grupo religioso do mundo é representado como fundamentalmente diferente, como um “perigo” e como uma “ameaça” à identidade e aos valores europeus, um discurso usado como arma política para explorar medos e ansiedades nativistas.

O cristianismo, tal como o islão, tem origens fora da Europa, no Médio Oriente. As duas religiões espalharam-se pelo mundo, mas a retórica nacionalista identitária apresenta a Europa como inerentemente cristã, e o islão como “estrangeiro”, como o principal “inimigo” e o “invasor” do território.

Entre movimentos de supremacia branca é comum a ideia que pessoas não-brancas e imigrantes, são uma “ameaça” às populações consideradas locais. Se durante o século XIX e na primeira metade do século XX os principais alvos de teorias de conspiração racistas de uma suposta ameaça populacional eram as comunidades judaicas que eram vistas como “estrangeiras” e “inassimiláveis”, nas últimas décadas a ideia que a imigração e a presença de populações muçulmanas é um “perigo” e que se trata de uma “invasão” que vai destruir os valores e a civilização europeia tem sido cada vez mais amplificada por movimentos de extrema-direita.

Antes de perpetrar o ataque contra duas mesquitas na cidade de Christchurch na Nova Zelândia que matou 51 pessoas em março de 2019, Brenton Tarrant publicou um manifesto supremacista entitulado “A grande substituição”, com discurso de ódio contra migrantes e muçulmanos, inspirado na teoria de conspiração de uma suposta “invasão” da Europa por imigrantes que vão “conquistar” as populações brancas europeias, popularizada pelo escritor francês de extrema-direita Renaud Camus.

A retórica nativista que alerta para uma alegada ameaça de substituição da população europeia por imigrantes maioritariamente muçulmanos encontra-se em partidos como o Rassemblement National (anteriormente conhecido como Frente Nacional) em França e a Liga de Matteo Salvini em Itália. Partidos a que o Chega se tem vindo a aproximar ao aderir, em julho de 2020, ao grupo europeu de extrema-direita Identidade e Democracia.

Quando André Ventura recebeu em Lisboa Marine Le Pen, líder do partido de extrema-direita francês, em janeiro de 2021, elogiou-a como “uma lutadora pela Europa que acreditamos que é possível, de matriz cultural cristã” e “contra a imigração descontrolada”.

A tese de uma suposta ameaça de substituição populacional aparece nos discursos de André Ventura, mas também no programa eleitoral do Chega. “Travar o perigo da substituição demográfica dos portugueses,” é o ponto VIII do programa apresentado para as eleições legislativas de 2022, com o lema “Deus, Pátria, Família e Trabalho”, inspirado na doutrina do Estado Novo. No discurso de encerramento do IV Congresso Nacional do Chega em Viseu, em novembro de 2021, Ventura defendeu a apropriação do lema de Salazar, afirmando que nunca deixará de falar da pátria que é “fruto da espada de D. Afonso Henriques, que libertou Portugal dos islâmicos que hoje tanta ameaça causam à Europa e à União Europeia”. 

A construção dos muçulmanos como os “outros” da Europa tem raízes profundas que remontam à retórica de “guerra santa” das cruzadas, representando o muçulmano como o “inimigo” e como uma ameaça a combater. Na época contemporânea, é principalmente a partir dos ataques de 11 de Setembro de 2001 que os discursos que procuram excluir, estigmatizar e marginalizar as comunidades muçulmanas se tornam mais explícitos e amplamente difundidos, tornando o islão no alvo preferencial dos populistas que exploram medos, ansiedades e sentimentos de insegurança para fins eleitorais.

Mas a retórica xenófoba e racista que excecionaliza comunidades muçulmanas, amplificada por partidos de extrema-direita, também se faz ecoar nos discursos maioritários. A suposta ameaça representada por imigrantes e pelo islão é frequentemente usada como argumento e justificação de políticas securitárias da “Europa Fortaleza”, que se encontra também entre partidos liberais. Ironicamente, a forma como as políticas antiterrorismo estigmatizaram minorias e degradaram direitos fundamentais no pós-11 de Setembro foi o tema da tese de doutoramento de André Ventura, contradições reveladas pela jornalista Fernanda Câncio numa investigação publicada pelo Diário de Notícias.

MUÇULMANOS E PORTUGUESES

“Sinto que o discurso de ódio contra muçulmanos tem vindo a crescer”, diz ao Setenta e Quatro Hanifah Almeida, muçulmana portuguesa.

Em 2015, Hanifah viu a mesquita central de Lisboa vandalizada com o número 1143, que evoca a data da assinatura do Tratado de Zamora, entre D. Afonso Henriques e D. Afonso VII de Leão e Castela, considerada a data da fundação de Portugal. O número é usado pela extrema-direita como uma afirmação nacionalista e um símbolo da alegada homogeneidade do povo português.

Nesse mesmo ano, o Partido Nacional Renovador (PNR), partido de extrema-direita agora conhecido como Ergue-te!, organizou uma manifestação contra a “Islamização da Europa” em frente à mesquita de Lisboa com a lema “Islão aqui, não”.

“O PNR esteve lá à porta com um megafone com discurso de ódio, a mandar-nos para a nossa terra”, diz Hanifah, que se converteu ao islão em 2009. “Mas dentro da mesquita éramos todos portugueses.”

Apesar de a presença islâmica na Península Ibérica datar do século VIII, e de no século X uma grande parte da população ibérica se ter convertido ao islão, a retórica islamofóbica insiste em representar o islão como estrangeiro, ignorando ou rejeitando os longos séculos de presença islâmica que deixaram importantes marcas em Portugal.

No processo da chamada “Reconquista”, os reinos cristãos foram consolidando o poder, derrotando os muçulmanos que durante séculos governaram a região. Em 1496, Portugal torna-se um reino exclusivamente cristão com um édito de D. Manuel I que obrigou judeus e muçulmanos a deixar Portugal ou a converter-se ao cristianismo.

Depois da expulsão e a conversão forçada das minorias religiosas, é apenas a partir dos anos 1950 e 1960 que novas comunidades muçulmanas se vão instalar em Portugal - primeiro vindas de Moçambique, e depois da Guiné-Bissau. Nas últimas décadas, a população muçulmana tem crescido lentamente com a vinda de muçulmanos do Senegal, Bangladesh, Paquistão e do Norte de África, e através de conversões ao islão. A comunidade islâmica em Portugal está hoje estimada em cerca de 50 mil pessoas, o que representa menos de 0,5 % da população.

Tal como outros partidos de extrema-direita europeus, a afirmação e defesa da identidade cristã contra a suposta “islamização” da Europa e o combate ao multiculturalismo e à imigração têm sido as principais bandeiras do PNR. Apesar de ser a formação partidária de extrema-direita mais duradoura em Portugal, nunca conseguiu eleger deputados em eleições, mantendo-se sempre nas margens da política portuguesa.

Com a formação do Chega e a crescente popularidade de André Ventura – que o presidente do PNR, José Pinto Coelho, acusou de “roubar” o discurso e as causas do partido por “oportunismo eleitoral” -  o PNR, representativo da extrema-direita associada aos movimentos supremacistas brancos tradicionais, perdeu o lugar de principal partido de extrema-direita e entrou em crise. Para renovar a imagem, em 2020 o partido mudou o nome para Ergue-te!.

Hanifah teme que os ganhos eleitorais da extrema-direita resultem num crescimento dos discursos islamofóbicos. Mas considera que o mais importante é combater os preconceitos na base da lógica identitária e securitária que vê os muçulmanos como suspeitos e o islão como uma “ameaça” à segurança e à identidade e valores europeus, que se tem normalizado para além da direita radical.

Diz que quem não tem contacto com a realidade das comunidades muçulmanas está muitas vezes limitado às imagens negativas que circulam nas notícias – os atentados terroristas, grupos criminosos como o autodenominado Estado Islâmico, os talibã.

“Os media não estão a fazer o trabalho de desconstruir preconceitos”, diz Hanifah, lamentando que as imagens predominantes nos media sejam de um islão violento e fundamentalista. “Como a população não está bem informada, é fácil aceitar estes discursos, as ideias preconceituosas em relação ao islão”, salienta.

ENTRE O PRECONCEITO, A IGNORÂNCIA E O RACISMO

Segundo Abdoolkarim Vakil, professor de História Portuguesa Contemporânea na universidade King’s College e especialista em estudos críticos muçulmanos, a islamofobia não é uma questão de ignorância, mas sim uma forma de racismo.

Em Thinking Through Islamophobia, publicado em 2011, Abdoolkarim Vakil e Salman Sayyid analisam a história do termo islamofobia, a sua origem e como tem sido usado.  Os autores propõem definir a islamofobia como um tipo de racismo que tem como alvo expressões de muslimness, “muçulmanidade”, as conotações e estereótipos envolvidos na forma como os muçulmanos são identificados, e as associações históricas que são feitas em relação ao islão e às comunidades muçulmanas.

Relatórios internacionais têm documentado discursos e incidentes islamofóbicos e a existência de perceções negativas em relação a comunidades muçulmanas em Portugal, contestando a ideia de a islamofobia não ser um problema no país.

Mais do que preconceito ou ignorância, Salman Sayyid define a islamofobia como uma “forma de governamentalização racializada” e uma “série de intervenções e classificações que afetam o bem-estar das populações designadas como muçulmanas”. Para o autor, a hostilidade, ódio e discriminação de muçulmanos tem uma dimensão política que está enquadrada em relações históricas de conquista, de dominação colonial e construção do islão como uma “ameaça” ou um "problema” para a Europa. Na construção do muçulmano como “outro” e como “diferente”, a diferença não é apenas religiosa mas também racializada.

Num artigo publicado em 2019 que identifica os principais discursos islamofóbicos em Portugal, Marta Araújo, investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, considera que a islamofobia tem sido subestimada e pouco estudada, e por estar ausente nos debates públicos, a perceção geral é que não há discriminação significativa contra muçulmanos.  

De acordo com a investigadora, a ideia de que Portugal é um exemplo de pluralidade religiosa e tolerância baseia-se em pressupostos que devem ser problematizados. Por um lado, a “apregoada vocação histórica portuguesa para a tolerância e a interculturalidade, herdeira do Luso-tropicalismo”, que apaga e silencia as experiências de racismo e discriminação entre populações marginalizadas e racializadas. E, por outro, a ideia que a islamofobia ocorre apenas em situações pontuais como resultado de preconceito e ignorância, quando deve ser entendida como uma forma de racismo que se manifesta não só através de ataques a comunidades muçulmanas, mas também através de discriminação a nível legal e institucional.

Apesar da ausência de dados oficiais sobre islamofobia em Portugal, que tornam difícil conhecer a dimensão do problema, alguns relatórios internacionais têm vindo a documentar discursos e incidentes islamofóbicos e a existência de perceções negativas em relação a comunidades muçulmanas,  contestando a ideia que a islamofobia não é um problema no país.

De acordo com o Relatório Europeu da Islamofobia, publicado anualmente entre 2015 e 2019, incidentes islamofóbicos acontecem em Portugal, mas faltam mecanismos para os documentar. O relatório considera que os estereótipos negativos sobre o islão e sobre comunidades muçulmanas são frequentes e generalizados. Um inquérito de 2011, citado num dos relatórios, diz que mais de um terço dos portugueses entrevistados tinha perceções negativas dos muçulmanos e que quase metade considerou que a cultura islâmica e a europeia não eram compatíveis. 

O APAGAMENTO DA PRESENÇA ISLÂMICA

Em fevereiro de 2017, dois anos depois da mesquita central de Lisboa ser vandalizada com um símbolo nacionalista, tinta branca foi lançada para a fachada da mesquita, junto à inscrição árabe da entrada.  O incidente foi desvalorizado pelo imã da mesquita, o xeque David Munir, que considerou tratar-se de um “ato isolado”. Mas este segundo ato de vandalismo pode ser visto como simbólico – com a tinta branca, tenta-se apagar a presença islâmica em Lisboa e negar-lhe o direito de pertencer à cidade. 

“Se quiserem apagar o islão de Portugal, então vão ter que apagar muita coisa, muitas palavras da nossa língua, apagar a arquitetura, a história”, diz Hanifah, sublinhando o legado de longos séculos de presença islâmica e árabe na Península Ibérica. “Vão ter que apagar os números que usamos [difundidos pelos árabes na Europa a partir do século X]. Os senhores do Chega que façam contas com a numeração romana”, brinca.

Mas, além dos atos de vandalismo e dos discursos da extrema-direita, os apagamentos podem ser mais vastos e profundos. Estão também nas histórias que contamos, no que escolhemos incluir como parte da nossa história.

“A herança islâmica é muito pouco estudada em Portugal”, diz Fabrizio Boscaglia, professor na Universidade Lusófona e investigador que se tem dedicado a estudar o Islão na cultura portuguesa, especialmente à pesquisa de temas árabes e islâmicos na obra de Fernando Pessoa.

“Quando digo em conferências que Fernando Pessoa escreve que ‘a alma árabe é o fundo da alma portuguesa’ as pessoas ficam muito surpreendidas”, conta o investigador. “Não imaginam que na cultura portuguesa possa haver uma representação do árabe e do muçulmano como nosso, que não é inimigo, que não é outro, que tem a ver connosco, que não é oriental, que é europeu e português”, acrescenta. Isto porque a ideia de que a herança islâmica foi fundamental para a formação de Portugal não chega à maioria da população.

Nos manuais escolares, os cinco séculos de governação islâmica do território que se tornou Portugal são mencionados apenas de passagem. Maior ênfase é dada à chamada “Reconquista”, seguindo a narrativa que os muçulmanos invadiram a Península Ibérica, e que foram depois expulsos por cristãos que “reconquistaram” o território.

Em estudos sobre os manuais escolares de história, as investigadoras Marta Araújo e Sílvia Maeso analisam como a narrativa histórica dominante apresenta Portugal como sendo “inevitavelmente cristão” de uma forma que normaliza a expulsão e a conversão forçada de muçulmanos e judeus, e que apaga séculos de convivência e de diversidade religiosa e étnica.

É no contexto das cruzadas e da fundação da nação que se desenvolve a ideia do muçulmano como “inimigo”, que vai ter um papel importante na construção da identidade nacional. Durante o Estado Novo, esta narrativa exclusivista que posiciona o muçulmano como o “outro” e o “invasor” é acentuada pela retórica nacionalista católica da ideologia salazarista.

“Por um lado, Portugal forma-se no contexto das cruzadas e da chamada Reconquista. Mas ao mesmo tempo, os muçulmanos vivem durante séculos em Portugal, contribuem para a formação da língua, da história, da arquitetura e cultura do país. A identidade nacional tem, a nível cultural, esta ambivalência”, diz Fabrizio Boscaglia ao Setenta e Quatro.

É a partir do 25 de Abril de 1974 que o trabalho desenvolvido na área da arqueologia – especialmente, por Cláudio Torres em Mértola – e na história vem desfazer o mito da Reconquista, mostrando que o islão chegou gradualmente à Península Ibérica pelo comércio, mais do que através de conquistas militares.

Com um renovado interesse pelo legado islâmico e pelas continuidades históricas entre o norte e o sul do Mediterrâneo, vários investigadores têm vindo a desconstruir as narrativas que retratam o mouro como invasor e inimigo, e a mostrar como as influências islâmicas e árabes fazem parte da história, da língua, da literatura e da cultura e costumes portugueses. “Mas o discurso de oposição ao islão ainda está muito mais enraizado do que a ideia de que a herança islâmica é um elemento na formação de Portugal”, afirma Fabrizio Boscaglia.

Para Ghalia Taki, muçulmana praticante que trabalha como intérprete e mediadora cultural no Serviço Jesuíta aos Refugiados, a melhor forma de combater a islamofobia é através do foco no que une as duas margens do Mediterrâneo.

“Temos tantas coisas em comum!”, diz ao Setenta e Quatro Ghalia, que fugiu da guerra na Síria e vive em Portugal desde 2014. “O mais importante é valorizar as semelhanças e os encontros”, sublinha, enquanto vai enumerando as expressões e palavras que encontrou em comum entre o português e o árabe.

O nome da mercearia do Médio Oriente vandalizada em outubro, Zaytouna, mostra precisamente essas semelhanças. Devido à importância da produção de azeite durante o período de governação árabe da Península Ibérica, a palavra “azeite” vem do árabe zayt, que significa “óleo”, e a palavra “azeitona” vem do árabe zaytouna.

São muitas as palavras portuguesas com origem árabe. Ghalia dá destaque à palavra “oxalá”, derivada da expressão árabe Insh’Allah, “se Deus quiser”, uma forma muito comum de expressar esperança que algo aconteça. Porque o mais importante, diz Ghalia, é podermos partilhar esperança num futuro comum.

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