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“Imagine, em pleno século XXI, uma cidade europeia sendo atacada por mísseis como se estivéssemos no Afeganistão ou Iraque”, disse o jornalista francês Ulysse Gosset
Beatriz Marques* | por Terra em Transe | em Revista Forum
“Imagine, em pleno século XXI, uma cidade europeia sendo atacada por mísseis como se estivéssemos no Afeganistão ou Iraque”.
A frase acima foi dita pelo jornalista Ulysse Gosset, do canal de notícias francês BFMTV, em sua cobertura sobre o conflito armado que ocorre atualmente na Ucrânia. Frases como esta escancaram o racismo e o eurocentrismo presentes nas mídias europeias, ao acompanharem o andamento de uma guerra em seu continente. Ao mesmo tempo em que expressam solidariedade ao povo ucraniano, barram os refugiados africanos em suas fronteiras e naturalizam a violência no Oriente Médio.
Discriminação de imigrantes negros nas fronteiras
Estudantes africanos também relatam racismo ao cruzarem as fronteiras. Conforme imagens de um vídeo que circula nas redes, um policial empurra uma mulher negra para dar passagem a uma mulher branca dentro do vagão de trem. Uma estudante de medicina relatou que os guardas mandam os africanos para o fim da fila, afirmando que os ucranianos têm prioridade. A Nigéria se posicionou e lamentou o racismo e discrimanação dos imigrantes negros ao fugirem da guerra.
Logo, quando a jornalista Lucy Watson da ITV News, com os olhos marejados, diz que é inimaginável que uma guerra esteja ocorrendo na Europa, e não em um país de terceiro mundo, o seu choque se dá porque contesta a visão racional e pacífica que o Ocidente criou de si mesmo.
O velho Choque de Civilizações: Ocidente vs Oriente
Muitas das falas dos jornalistas retomam os conflitos armados que ocorreram e ocorrem no Oriente Médio e Norte da África, classificando-os como espaços inerentemente violentos. Essa narrativa ajuda a justificar a invasão ocidental destes territórios segundo seus interesses, corroborada pelo conceito europeu de salvação dos povos inferiores, reforçando a ideia de que isso se daria pelo “bem maior da civilização”. O que essas coberturas falham em informar é que a presença europeia na região do Oriente Médio e Norte da África e os conflitos que ali se desenvolvem são frutos de intervenções das potências estrangeiras desde a época da colonização. Tais frases buscam isentar a parcela de culpa desses países nas crises que se instauram após as invasões.
“Não estamos falando de sírios fugindo dos bombardeios do regime sírio apoiado por Putin, estamos falando de europeus fugindo de carros como os nossos para salvar suas vidas” - Philippe Corbe, jornalista da BFM TV
É interessante notar com essas falas reabrem o velho debate de “Choque de Civilizações” entre o Ocidente e Oriente, no qual o primeiro é sinônimo de progresso, civilizado e racional, e o segundo seria o extremo oposto. Quando a jornalista Philipp Corbe alerta: “estes não são refugiados da Síria, estes são refugiados da nossa vizinha Ucrânia. Honestamente, eles são cristãos, são brancos”, ela adiciona, além do racismo, a islamofobia - atitudes xenofóbicas para com os muçulmanos - e isso é relevante porque está embutida uma questão de identificação. São narrativas socialmente construídas como essas, baseadas em um humanismo liberal, que justificaram a invasão militar dos Estados Unidos em diversos países do Oriente Médio. Em consequência dessas ações, foi criado o imaginário popular de um inimigo, o qual deve ser aniquilado a todo custo. Dessa forma, o presente racismo nas atuais coberturas jornalísticas sobre a guerra na Ucrânia dá ainda mais força ao discurso securitizador que impede o acesso a uma vida digna dos imigrantes e refugiados africanos e árabes nesses países.
“Com todo o respeito, esse não é um lugar como Iraque ou Afeganistão que vive em conflitos por décadas. É uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia que você não esperaria que acontecesse” - Chris D’Agata, correspondente sênior da CBS News
Herança colonial: quais mortes são dignas de revolta nas Relações Internacionais?
O racismo presente nos meios de comunicação nos faz questionar quem é digno de compaixão na configuração atual das Relações Internacionais, uma vez que certas mortes são dignas de indignação e justiça, enquanto outras nem sequer são noticiadas. Nesta segunda-feira, 28/02, soldados israelenses atacaram crianças palestinas no portão de Damasco em Jerusalém. Duas meninas ficaram feridas, uma foi detida ao se defender da brutalidade policial e outra foi levada às pressas ao hospital depois de ser atingida por uma granada de som no rosto pelas forças israelenses. Nenhuma dessas notícias se tornaram manchetes nos jornais mundo afora. Assim, faz-se necessário questionar porque certos eventos provocam horror, e outros são legitimados, aceitáveis e até mesmo bem-vindos.
“O que é chamativo é olhar para eles, olhe como eles estão vestidos, eles são classe média próspera, não são refugiados fugindo de áreas no Oriente Médio ou Norte da África, eles parecem como qualquer família europeia que você viveria ao lado” - Peter Dobbie, apresentador da Al Jazeera em inglês.
Vale lembrar o caso do menino refugiado sírio de dois anos, Alan Kurdi, encontrado morto por afogamento em uma praia da Turquia quando sua família fazia a travessia para a Grécia, em uma tentativa de fugir da guerra em seu país. A imagem de seu corpo estirado na praia viralizou e chocou o mundo inteiro. Ao noticiar a morte de seu sobrinho na época, Tima Kurdi teve que enfrentar narrativas xenofóbicas de Cory Bernardi, líder do partido conservador australiano. Na ocasião, Bernardi afirmou que o pai de Alan (único sobrevivente da tragédia), provavelmente fez a travessia para buscar tratamento dentário em outro lugar. A tia de Alan ainda ressaltou: “Também somos seres humanos, também festejamos aniversários, trabalhos, estudamos. Tínhamos uma vida antes de começar a guerra”.
Quando o jornalista David Sakvarelidze, da BBC News, lamentou ao vivo que estava emocionado ao ver pessoas de cabelos loiros e de olhos azuis sendo mortas, é exatamente a isso que ele se refere: aos que são dignos de compaixão.
É muito nobre o reconhecimento da importância do direito internacional por parte dos Estados Unidos e Europa, agora eles apenas precisam aplicá-lo no mundo todo, afirmou Peter Oborne, jornalista do Middle East Eye. Assim diria Naredran Kumarakulasingam, professor indiano e especialista em estudos sobre colonialismo e violência fazendo referências aos horrores da guerra do Vietnã:
"Nós não cometemos atrocidades quando te colocamos em seu lugar. Nossas bombas e baionetas não violam o direito internacional”
We do not commit atrocities when we put you in your place. Our bombs and bayonets do not violate international law”
*Beatriz Marques é graduanda
**Texto revisado por Ana Laura Baldo e Isabela Agostinelli
Imagem: Ucranianos a caminho da fronteira (Gulf --Today/Reprodução)
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