domingo, 24 de abril de 2022

A LUTA DA RÚSSIA CONTRA A PRESSÃO OCIDENTAL

Elizaveta Naumova* 

O número de sanções impostas à Rússia pelos EUA e UE atinge uns astronómicos 8.500. É muito mais do dobro das aplicadas ao segundo país mais sancionado, o Irão. Já existem indícios de efeitos de ricochete e outros, e sobretudo de, na complexidade do actual xadrez mundial, os sancionadores terem de tentar recorrer a outros sancionados, como a Venezuela e o próprio Irão. O caso deste merece ser melhor conhecido, nomeadamente nas formas que encontrou para rodear as sanções. O capitalismo internacional gera redes que os próprios poderes dominantes têm dificuldade em controlar.

O turbilhão de sanções contra a Rússia intensificou-se a tal ponto que as consequências estão a ser sentidas muito para além das agências governamentais envolvidas na ofensiva militar da Rússia na Ucrânia. Os preços do petróleo dispararam em antecipação à escassez, empresas anunciaram boicotes, atletas estão a ser excluídos das competições e alguns russos estão a fugir do país, perdendo o conforto a que se acostumaram.

Moscovo perdeu, pelo menos por enquanto, o acesso a US$ 300 mil milhões das suas reservas de ouro e divisas, e sete bancos russos foram desligados do sistema internacional de pagamentos SWIFT. O número de sanções impostas ao país é sem precedentes – 5.787 novas restrições foram impostas contra pessoas jurídicas e pessoas individuais russas desde 22 de Fevereiro, e seu número atingiu mais de 8.500 no total. Nenhum outro país teve alguma vez tantas restrições impostas. Até o Irão, que está sob sanções há mais de 40 anos, vem num distante segundo lugar, com apenas 3.600.

“Isto é guerra nuclear financeira e o maior evento de sanções na história. A Rússia deixou de ser parte da economia global para passar a ser o maior alvo de sanções globais e um pária financeiro em menos de duas semanas”, disse Peter Piatetsky, ex-funcionário do Ministério das Finanças nas administrações de Barack Obama e Donald Trump nos EUA.

Isso convida à comparação entre o histórico de sanções do Irão e as mais recentes medidas anti-Rússia. Embora a posição desses dois países na economia e na política global seja muito diferente, há uma aparente semelhança na sua situação actual. Durante muito tempo, a República Islâmica do Irão foi o país pária mais sancionado do mundo, cortado de uma fonte de rendimento criticamente importante – o seu fornecimento de energia para a Europa. Há rumores de que algumas das restrições impostas ao Irão poderiam agora ser revertidas para reduzir os fornecimentos de petróleo e gás russo e evitar uma crise de energia na UE. Esses sinais são essenciais para entender quais são as prioridades do Ocidente neste momento. Estamos a lidar aqui com o princípio segundo o qual os responsáveis ​​devem ser punidos, ou é isto justiça objectiva? Essas e outras questões foram abordadas por especialistas entrevistados pela RT.

Embora até agora pareça não haver pânico e a procura por bens individuais esteja a crescer, os especialistas ainda temem o início iminente de uma grave crise económica – não apenas na Rússia mas em todo o mundo. Como parte do quinto pacote de sanções, os países da UE estão a contemplar a proibição de importar petróleo e gás russos, mesmo apesar de a Rússia fornecer aos países da UE cerca de 40% do seu gás e 25% do seu petróleo. Camionistas em Espanha estão a sair à rua em comícios para protestar contra o aumento dos preços dos combustíveis, e manifestações semelhantes podem em breve varrer toda a Europa.

Na história recente, houve o caso de um relativamente importante actor económico incorrer num pesado regime de sanções que levou a dificuldades para os próprios iniciadores das restrições. Muitos agora recordam a experiência do Irão, um veterano no campo do isolamento internacional.

Um momento histórico

A história das sanções do Irão começou em 1979 com a revolução islâmica que varreu a monarquia secular do país e trouxe ao poder teólogos xiitas. Ao contrário da posição oficial de Washington, a natureza “não democrática” do novo regime não foi suficiente para as medidas dos EUA. As sanções foram impostas não pela mudança no poder, mas pela tomada da embaixada americana em Teerão, que durou mais de um ano – 444 dias. Os EUA cortaram então relações diplomáticas com o Irão, impuseram um embargo ao petróleo e outros bens com origem na República Islâmica e congelaram US$ 12 mil milhões de ouro e activos em moeda estrangeira iranianos em bancos americanos.

“Supunha-se que Irão se iria tornar o principal aliado da América na região, isso estava claro já nos anos 70: os americanos estavam a vender armas aos iranianos, o xá Mohammad Reza Pahlavi veio ao funeral de Eisenhower, Nixon veio ao Irão… assim, a revolução foi um golpe terrível para a América. Além disso, eles nem sequer foram capazes de prever o desenvolvimento dos acontecimentos e, por algum tempo, continuaram a apoiar o deposto Xá Mohammad Reza Pahlavi. Foi um erro de cálculo estratégico que prejudicou muito os americanos”, diz a analista política Polina Vasilenko.

Então essas sanções provocaram uma crise do petróleo em grande escala. No entanto, os Estados Unidos têm repetidamente imposto embargos de petróleo. Contudo, as sanções americanas tiveram limitado sucesso durante muito tempo. Os esforços de um só país não eram suficientes para derrubar a economia iraniana, e então Washington tentou convencer os seus parceiros europeus a seguir o seu exemplo, lembra Vasilenko. Não admira: de acordo com estimativas do Eurostat, as exportações de petróleo para a Europa representavam até 80% das exportações iranianas e forneciam 50% da receita do comércio exterior do país.

Mesmo depois de a União Europeia ter finalmente sucumbido às garantias americanas e ter eventualmente imposto uma proibição ao fornecimento de equipamentos para a indústria de petróleo e gás e refinação de petróleo, bem como a proibição de investir no Irão e outras medidas financeiras, a economia da República Islâmica conseguiu manter-se à tona. A justificação formal para as medidas era a alegação de que as autoridades iranianas estariam a trabalhar no enriquecimento de urânio, o que poderia permitir-lhes a criação de armas nucleares.

Segundo Polina Vasilenko, a razão para impor sanções era um tanto absurda porque, na realidade, Teerão não tinha qualquer vontade de criar armas nucleares. “A retórica sobre a ameaça nuclear era vantajosa tanto para o próprio Irão como para os seus opositores, que regularmente falavam sobre quão perigoso o país era. Mas o facto permanece: sim, há urânio enriquecido em pequenas quantidades”, disse a especialista.

Medidas muito mais sérias seguiram-se em 2010-2012. Além de desligar os bancos do Irão da SWIFT, Bruxelas aderiu ao embargo americano ao petróleo. No próprio dia seguinte, especialistas europeus notaram uma queda no rial iraniano, já que a taxa de inflação do país se aproximava dos 20%.

Uma breve pausa veio em 2015, quando os países ocidentais finalmente decidiram resolver a questão que havia motivado as sanções em primeiro lugar. Foi assinado entre Irão, Estados Unidos, Alemanha, Grã-Bretanha, França, China e Rússia o Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA), que pedia o levantamento de todas as sanções em troca de uma redução no programa nuclear do Irão. No entanto, a pausa durou pouco. Apenas alguns anos depois, em 2018, o presidente dos EUA, Donald Trump, rasgou unilateralmente o acordo nuclear e impôs uma nova série de sanções. Mesmo a disposição dos próprios ayatollah de se sentar à mesa de negociações não foi suficiente para remediar a situação.

A Economia de Resistência e o Mercado Negro

O preço que décadas de pressão de sanções cobrou é mais do que óbvio. A inflação média anual do Irão para 2018-2021 foi de 35% ao ano, as receitas das exportações de petróleo caíram mais de 80% só em 2020, em comparação com 2017, e os iranianos mal têm o suficiente para comer. O salário mínimo mensal para o ano fiscal de 2022 é equivalente a US$ 200 à taxa actual de mercado, embora o custo de um cabaz básico para uma família de três pessoas custe quase o dobro. Apesar de passos dados pelo governo do presidente dos EUA, Joe Biden, para restaurar o acordo, é muito cedo para falar mesmo num levantamento parcial das sanções – e a Casa Branca não está interessada em tirar os iranianos da pobreza.

Ao Irão restam dois aliados: a “economia de resistência” desenvolvida pelo governo e a economia paralela. O ayatollah Ali Khamenei falou sobre a “economia de resistência” pela primeira vez em 2007, embora de forma bastante eufemística. O líder supremo apelou a “liderar o país como se houvesse uma jihad” e “garantir ampla participação do povo no desenvolvimento económico”. Os principais componentes desse modelo económico são a substituição de importações e a redução da dependência das exportações de petróleo. “Sim, a economia da resistência dá certos frutos. Por exemplo, em alguns anos, houve um saldo positivo entre as exportações e importações de petróleo. Mas o crescimento ainda não é tão alto como poderia ser, a população do país é bastante pobre e o rial é instável”, explicou Vasilenko, comentando a viabilidade do sistema.

Além disso, segundo o Wall Street Journal, o Irão está realmente a construir uma economia paralela. O jornal analisou “dezenas de transações através de procuradores de iranianos” em 61 contas em 28 bancos estrangeiros na China, Hong Kong, Singapura, Turquia e Emirados Árabes Unidos, totalizando centenas de milhões de dólares. Segundo fontes do WSJ, os bancos iranianos que atendem empresas proibidas de exportar ou importar para outros países instruem empresas filiadas no Irão a gerir em seu nome comércio sancionado. Depois, essas empresas estabelecem uma entidade legal exterior ao país e negoceiam em seu próprio nome com compradores estrangeiros em dólares, euros ou outras moedas estrangeiras por meio de contas abertas em bancos estrangeiros.

Os serviços de inteligência ocidentais afirmam que “há evidência de tais transações no valor de dezenas de milhar de milhões de dólares”. E, segundo estimativas do FMI, as “operações ocultas de importação e exportação do Irão crescerão para US$ 150 mil milhões em 2022, apesar do facto de já somarem US$ 80 mil milhões por ano. Os principais itens de exportação vendidos na economia paralela são gasolina, aço e petroquímicos.

Só o facto de o WSJ escrever abertamente sobre a economia paralela do Irão deixa claro: para os Estados Unidos, nada disso é segredo há muito tempo, enfatiza Vasilenko. Se Teerão conseguiu construir uma economia paralela com o pleno conhecimento dos Estados Unidos e, aparentemente, com sua permissão tácita, não poderia a Rússia usar os mesmos métodos – se não numa economia paralela, então numa “de resistência”?

Esta analista política acredita que não é assim tão simples. “As circunstâncias enfrentadas pelos países são muito diferentes. É difícil avaliar se Moscovo poderia reproduzir a experiência do Irão. O Irão está sob pressão de sanções há mais de 40 anos, mas as medidas foram introduzidas de forma intermitente. Tiveram cerca de um ano e meio a dois anos para se adaptar às novas realidades, para encontrar soluções alternativas. A Rússia não tem esse luxo. Fomos atingidos por uma gama completa de sanções em cerca de três semanas”, ressaltou.

No entanto, há também boas notícias. Embora ninguém saiba exactamente qual é a parcela real da economia paralela do Irão, e o ‘plano de resgate’ dos ayatollahs não esteja a funcionar tão bem quanto eles gostariam, a experiência do Irão prova que é impossível excluir um país da economia mundial e arrasar inteiramente a sua economia. Como observa Vasilenko, em primeiro lugar, os seus vizinhos estão interessados ​​em “desisolar” o país. Para alguns países como a China, é simplesmente benéfico comprar petróleo iraniano por um preço irrisório. Para outros, como os estados membros da SCO, é óbvio que o Irão ainda é um importante factor regional, um dos seus actores mais fortes, e é essencial fazer negócios com ele.

Barril da Discórdia

Depois de o presidente dos EUA, Joe Biden, ter assinado uma ordem executiva proibindo a importação de petróleo bruto, gasolina, derivados de petróleo, óleos, gás liquefeito, carvão e outros produtos russos, ficou claro que era apenas uma questão de tempo até que a União Europeia seguisse o exemplo. Washington continuará a insistir que os transportadores de energia russos sejam expulsos do mercado, mas primeiro garantirá que a Europa deixe de ser tão dependente do petróleo e do gás da Rússia, pelo menos relativamente falando. Foi o que aconteceu com o Irão. Para evitar interrupções no fornecimento, os países da UE primeiro substituiram 70% das importações de petróleo que haviam recebido anteriormente do Irão e só então impuseram sanções.

No entanto, agora parece que a era das proibições de petróleo iraniano chegou ao fim. Como o Ocidente tem um novo inimigo principal, não tem escolha a não ser procurar fornecedores alternativos de energia. Além dos países do Golfo Pérsico, o Irão revelou-se o mais fortuito “mealheiro de petróleo”. Washington tem em mãos um largo conjunto de instrumentos por meio dos quais pode permitir que o petróleo iraniano entre no mercado e salve da escassez os seus aliados europeus.

Talvez a crise sobre a Ucrânia dê um breve descanso ao Irão, como o de 2015, mas o director de programa do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia (RIAC), Ivan Timofeev, acredita que os Estados Unidos não mudarão a sua política de sanções contra Teerão no longo prazo. “Alívio concreto a curto prazo para superar a crise imediata pode ser possível, mas isso não muda nada: os americanos continuarão a pressionar os iranianos”, enfatizou.

Segundo algumas estimativas, se os EUA permitirem a entrada de petróleo do Irão e da Venezuela, outro país sancionado, poderá aumentar a oferta mundial de petróleo em quase 1,5 milhões de barris por dia até Dezembro. Mas no segundo país, Nicolás Maduro, que é censurável para os americanos, permaneceria no poder, e o Irão continuaria a desenvolver o seu programa nuclear. Consequentemente, os EUA ficariam mal vistos ao remover as suas restrições.

Sem aliados, sem simpatizantes

É óbvio que os próprios americanos, assim como seus aliados europeus, estão a começar a sofrer com o modelo americano que clama pela ‘democratização’ de tudo e de todos, para não falar da sua propensão para interferir a qualquer custo nos assuntos de outros estados. Timofeev enfatiza que, aos olhos dos países ocidentais, a Rússia ultrapassou a linha vermelha, e as sanções são uma punição que visa forçar Moscovo a negociar com Kiev.

Outrora, os americanos conseguiram o que queriam e forçaram os iranianos a concordar com um acordo nuclear porque perseguiram um objectivo claramente definido. A tarefa era mais do que realizável, especialmente porque Washington tinha aliados não apenas em Bruxelas, mas também em Moscovo e Pequim. Parece agora haver um objectivo semelhante: continuar a impor sanções até que as autoridades russas terminem a operação. Contudo, quem melhor do que Washington para saber que terminar uma guerra é muito mais difícil do que começar uma. Afinal, os americanos já tiveram que enfrentar essa dificuldade tanto no Iraque como no Afeganistão.

Além disso, os americanos agora não têm amigos para além dos seus colegas tradicionais no “Ocidente colectivo”. Mas restrições contra o Irão foram também adoptadas pelo Conselho de Segurança da ONU. As sanções foram apoiadas não apenas pelos americanos e europeus, mas também pela China e pela Rússia. “Os países ocidentais não vão parar de impor sanções até que considerem atendidas as suas reivindicações políticas. Ou vão parar quando surgir uma situação em que tais medidas claramente não produzam resultados, mas não levantarão as antigas sanções. Este confronto permanecerá por muito tempo”, destacou Timofeev. Relembrando a experiência de Teerão, acrescentou que, mesmo depois que os iranianos terem concordado com as exigências do Ocidente e se terem sentado à mesa de negociações, as sanções continuaram a apertar, mas já sob uma nova administração presidencial.

Na época, as principais forças políticas do mundo não apenas se uniram para pressionar o Irão, mas também se coordenaram para procurar uma saída para o problema. Não foi por acaso que o grupo 5+1 (EUA, Rússia, China, França, Grã-Bretanha + Alemanha) foi criado para reunir esforços para lidar com a questão do programa nuclear iraniano. Mas quem está agora pronto a trazer Moscovo e Kiev para a mesa de negociações? Embora quase todos os políticos clamem por diplomacia, poucos expressam vontade de participar na solução do problema.

Descrevendo a política dos EUA para sancionar adversários políticos, Polina Vasilenko observa: “É muito importante para os americanos que o outro lado não tenha aliados ou simpatizantes. As sanções de Trump não encontraram apoio, por exemplo, porque naquele momento o acordo nuclear estava bem. Além disso, durante a pandemia de coronavírus, quando o Irão não conseguia aceder a fornecimentos humanitários ou comprar vacinas devido a sanções, até os aliados dos Estados Unidos se perguntaram se era humano tratar assim uma população.”

Como se vê, não apenas o surgimento de economias paralelas e o desenvolvimento de laços com parceiros orientais podem estragar o cenário para o Ocidente, mas também as consequências reais das suas próprias sanções. Para que tenham o efeito desejado, e não apenas levem a uma desaceleração económica, é necessário mais do que impor restrições histéricas aqui e ali – ou seja, a capacidade de coordenar ações para resolver o problema que levou às sanções em primeiro lugar, e unidade com outros actores importantes como a China. Talvez esse plano venha a aparecer em breve e o Ocidente atinja seu objetivo. No entanto, vale já a pena perguntar qual é exactamente esse objectivo.

*Elizaveta Naumova, jornalista política russa e especialista na Escola Superior de Economia

Fonte: https://mail.google.com/mail/u/0/?ogbl#trash/FMfcgzGmvpJWZHpfTGrWrcHWNwbWbgbc

*Publicado em O Diário

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