sábado, 23 de abril de 2022

Balanço da liberdade de imprensa no âmbito do conflito ucraniano

“A liberdade da imprensa deve ser inviolável." - John Quincy Adams

Patrícia Akester* | Diário de Notícias | opinião

A liberdade de imprensa invoca um imperativo "em qualquer país onde as pessoas são livres" (Theodore Roosevelt) e uma inconveniência para "quem pretende eliminar a liberdade de uma nação" (Benjamin Franklin). Pilar de uma sociedade democrática, a liberdade de imprensa assenta na liberdade de expressão, compreendendo, por um lado, o direito de transmitir informação e, por outro lado, o direito de receber essa informação - sem ingerência ou interferência de terceiros.

Consequentemente, a liberdade de imprensa apenas é respeitada quando os jornalistas desempenham a sua missão com autonomia e sem temor e quando o público tem livre acesso a informação fidedigna.

Trata-se de uma moeda com 2 lados (o dos jornalistas e o do público) cujo balanço requer, no âmbito do conflito ucraniano, a consideração (i) da situação dos jornalistas que enfrentam diariamente riscos e ameaças em território ucraniano para fornecer informação precisa, rigorosa e autêntica e (ii) da desinformação que grassa em território russo e que impede a respectiva população de ter acesso a informação genuína.

A segurança dos jornalistas em território ucraniano

Em tempo de guerra, com vista a garantir reportagens precisas e imparciais, os jornalistas não fogem das zonas de conflito. Dirigem-se a elas para que (assim dizem) a verdade não surja como baixa.

Em teoria, os jornalistas que cumprem missões profissionais perigosas em zonas de conflito armado, como a Ucrânia, são considerados civis, isto é, não são alvos legítimos (tal resulta do artigo 79 do Protocolo I Adicional às Convenções de Genebra de 1949).

Em teoria, em caso de captura, só os correspondentes de guerra acreditados junto das forças armadas beneficiam do estatuto de prisioneiros de guerra (previsto pelo artigo 4 da III Convenção de Genebra) mas tanto os jornalistas como os referidos correspondentes são abrangidos por princípios basilares de Direito Internacional que protegem a população civil.

Em termos práticos, jornalistas e pessoal associado têm sido vítimas de ataques deliberados, como detenção, tortura, desaparecimento e morte (Repórteres Sem Fronteiras). Lembremos, por exemplo, Yevhenii Sakun (TV Ucrânia), Oksana Baulina (The Insider), Brent Renaud (Time) e Pierre Zakrzewski (Fox News).

Escusado será dizer que estes actos são inaceitáveis, sendo de louvar a queixa apresentada pela Repórteres Sem Fronteiras perante o Tribunal Penal Internacional (a sua 3.ª queixa neste contexto) e a abertura, por essa ONG, de um Centro de Liberdade de Imprensa, em Lviv, que fornece apoio a qualquer jornalista que esteja a cobrir o conflito - desde o mero carregamento de um telemóvel ao fornecimento de coletes e capacetes à prova de balas, kits de primeiros socorros e ajuda financeira.

Contudo, cabe aos Estados, não apenas à sociedade civil, a adopção de providências para acautelar a integridade física dos respectivos jornalistas em situações de perigo (como o fornecimento de kits de protecção individual e a promoção de programas de treino de correspondentes de guerra), a pronta censura de quaisquer actos de violência contra os mesmos e o recurso à via judicial.

Trata-se de um dever categórico, atento o lamentável facto de que quando um jornalista é capturado, torturado, desaparece, é morto ou paralisado pelo medo, a sociedade perde um observador e um mensageiro da verdade.

A ausência de liberdade de imprensa e de livre acesso a informação em território russo

O reinado de Putin foi pontuado, até à invasão da Ucrânia, pela ténue ilusão de que subsistia um grau mínimo de liberdade de imprensa, ocupando a Rússia o 150.º lugar entre 180 países (segundo a Classificação Mundial de Liberdade de Imprensa, Repórteres sem Fronteiras). Após a invasão, Moscovo emanou, em moldes orwellianos, medidas administrativas e legislativas que eliminaram por completo essa ilusão.

Roskomnadzor, o órgão executivo federal responsável pelo controlo, censura e supervisão no campo da comunicação social, bloqueou plataformas (incluindo redes sociais) e agências de notícias e o Código Penal russo foi revisto. Foram estabelecidas uma pena máxima de 5 anos de prisão para quem "desacredite" e "requeira a obstrução" do uso das forças militares russas e penas de prisão até 15 anos para quem "divulgue informação, que sabe ser falsa" sobre operações militares.

Sob a ameaça de processo-crime, os principais meios de comunicação estrangeiros e os mais significativos meios de comunicação social independentes russos, suspenderam operações no território, eliminaram dos seus websites qualquer conteúdo relativo à invasão da Ucrânia ou encerram pura e simplesmente as suas portas.

Como notaram os Relatores Especiais das Nações Unidas, "embora o Governo [russo] alegue que o objectivo da nova legislação é proteger a "verdade" no que toca ao que eufemisticamente denomina de "operação militar especial" na Ucrânia, na realidade a lei coloca a Rússia sob um total apagão de informação relativa à guerra e, ao fazê-lo, concede um selo oficial de aprovação à desinformação" (UN News).

Com efeito, para os muitos russos que não podem ou não sabem recorrer a medidas tecnológicas de neutralização de censura (como redes privadas virtuais - VPNs), resta uma narrativa criada pelo Kremlin assente numa enxurrada de inverdades bizarras. Conforme noticiado, Moscovo acusa o governo ucraniano, entre outras coisas mais ou menos surreais, de neonazismo, consumo de drogas, genocídio, uso de aves migratórias portadoras de armas biológicas e bombardeamento das suas próprias cidades.

Nestas circunstâncias, cabe à comunidade internacional garantir, como melhor pode e sabe, a eliminação da cortina de ferro que foi erguida em redor da população russa e a neutralização da narrativa mitológica do Kremlin. Não se trata de mera filantropia pois essa narrativa recorre à desinformação para desacreditar o inimigo ante o povo russo, fornecendo, ainda, uma realidade alternativa, conveniente, aos aliados de Moscovo. Sem o mito estes últimos terão mais dificuldade em justificar, na arena internacional, o seu apoio formal a Putin ou a sua aparente neutralidade.

*Patrícia Akester, é licenciada em Direito pela Universidade Católica de Lisboa, Mestre em Direito da Propriedade Intelectual pela University College of London e Doutorada em Direito de Autor e os Desafios da Tecnologia Digital pelo Queen Mary Intellectual Property Research Institute, Queen Mary University of London.

*Nota: A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico.

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