domingo, 22 de maio de 2022

OPERAÇÃO SECRETA LANÇOU A GUERRA SUJA – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

(Jornal de Angola 31 de  Maio 2014)

A UNITA escondeu 20.000 militares e armas pesadas cinco dias depois de Jonas Savimbi assinar o Acordo de Bicesse, no Estoril. A Ordem de operações para esconder militares e armas foi enviada por Pretória à direcção do Galo Negro, pelo chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar da África do Sul, comandante De la Ray.  Uma cópia das ordens foi enviada ao chefe das Forças de Defesa e Segurança (SADF), general Geldenhuys, um dos oficiais do regime de apartheid que assinou a capitulação nos Acordos de Nova Iorque, depois da derrota no Triângulo do Tumpo, à vista do Cuito Cuanavale.

A mensagem secreta foi enviada também ao Chefe dos Serviços de Combate e ao Chefe da Logística sul-africanos, para garantir abastecimentos aos 20.000 soldados, aquartelados em bases no Cuando Cubango. Um dos membros da UNITA que cumpriu as ordens foi Abílio Camalata Numa, hoje estremecido democrata! As bases ficaram instaladas em locais entre as fronteiras da Zâmbia e da Namíbia. Os 20.000 militares seriam usados numa operação da tomada do poder pela força, caso Savimbi perdesse as eleições de 1992, como perdeu. O documento, ao qual tive acesso, está classificado de “secreto” e foi emitido no dia 5 de Junho de 1991, apenas cinco dias depois da assinatura do Acordo de Bicesse, a 31 de Maio.

A ordem de operações é detalhada e minuciosa. O comandante sul-africano de La Ray diz à direcção do Galo Negro que está superiormente autorizada a “transferência urgente de 20.000 tropas da UNITA para o Sul”. O Chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar de Pretória indica na mensagem secreta, as bases: “Girafa, Palanca, Tigre e Licua, cerca de sete mil homens em cada uma”.

A ordem tem um detalhe: “escolher os melhores comandantes”. O comandante De la Ray, na sua mensagem secreta, manda também transferir para aquelas bases “todas as anti-aéreas, incluindo os Stingers”. Também esta ordem foi cumprida.

A parte final da mensagem secreta do Chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar sul-africana ordenava a transferência para as bases Girafa, Palanca, Tigre e Licua, de “todas as armas pesadas”. O que foi também integralmente cumprido.

A Inteligência Militar de Pretória continuava a apoiar a guerra suja da UNITA, mesmo depois dos Acordos de Nova Iorque. Adalberto da Costa Júnior, dirigente e deputado do Galo Negro, revelou um dado que torna este comportamento normal. Eis a sua declaração:: “Em 1995, Jonas Savimbi recebeu um importante convite para visitar a África do Sul, dirigido por Nelson Mandela, então Presidente da República. Nelson Mandela recebeu o Dr. Savimbi e a delegação que o acompanhava na sua aldeia natal, em Qunu, dia 17 de Maio de 1995. Os africanos sabem o que significa receber alguém na sua própria aldeia”. 

O autor desta afirmação tem pouca credibilidade, mas se é verdadeira, está explicado o envolvimento da Inteligência Militar da África do Sul, na preparação da guerra depois das eleições de 1992, nas quais a UNITA foi estrondosamente derrotada. O acto eleitoral foi blindado e as eleições fiscalizadas pela ONU e pela Troika de Observadores, o que tornava impossível qualquer fraude. Informações credíveis dão conta que Nelson Mandela mandou Savimbi parar com a guerra e aconselhou-o a respeitar os resultados eleitorais.

Primeira tentativa de golpe

Jonas Savimbi e os seus homens nunca tiveram a intenção de respeitar o Acordo de Bicesse. Por isso, logo no dia 5 de Junho foi montada a operação de esconder 20.000 homens em bases secretas do Sudeste de Angola. Quando o comandante De la Ray e Abílio Camalata Numa concluíram a operação, estavam criadas as condições para a UNITA tomar o poder através de um golpe militar. Sean Cleary foi um dos mentores deste projecto, como é amplamente demonstrado em documentação que constava nos arquivos de Savimbi e do partido.

A primeira tentativa de golpe militar foi proposta por Savimbi ao subsecretário de Estado Herman Cohen, na sua casa do Miramar, em Luanda. Mas o caudilho foi surpreendido com a recusa do político norte-americano, que insistiu na necessidade de serem realizadas as eleições e respeitados os seus resultados. Savimbi argumentou: “As FAA não existem e o Governo está desarmado. Eu tenho tropa para tomar o poder, as eleições não interessam nada”. Herman Cohen recusou. Exigiu que a UNITA respeitasse o que estava acordado.

Mas a direcção da UNITA fez outras tentativas de impedir as eleições para tomar o poder pela força. Estão registadas documentalmente e foram recusadas pela representante do Secretário-Geral da ONU em Angola, Margareth Anstee, pelos membros do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e por quase todos os partidos concorrentes.

Denúncia de Tony e Puna

Nzau Puna e Tony da Costa Fernandes abandonaram a UNITA em conflito directo com Savimbi. E eram fundadores do partido! O assassinato de figuras importantes do movimento ditou o divórcio. Jorge Sangumba, padre Camilo Cangombe, a família Chingunji, quase toda dizimada, António Vakulukuta, Wilson dos Santos, a mortandade de mulheres e crianças nas fogueiras da Jamba e tantos outros episódios macabros, provocaram a cisão.

Tony e Puna já não estavam nos segredos da organização. Mas souberam que a UNITA tinha escondido um grande exército e armamento, para tomar o poder pela força caso perdesse as eleições. Margareth Anstee foi apanhada de surpresa. E garantiu que a ONU ia investigar se a denúncia dos dois generais de Savimbi eram verdadeiras. Poucos dias depois saiu o veredicto: “Não há indícios de existência de tropas escondidas em Angola!” Mas existiam 20.000 homens, entre eles os melhores comandantes, que dispunham de anti-aéreas incluindo Stingers e armas pesadas. E não tardou a chegar a segunda tentativa de golpe militar.

Abílio Camalata Numa acabou por ser uma peça importante nos acontecimentos que se seguiram. Houve um momento em que a tensão era tal que foi colocada ao Conselho Nacional Eleitoral, presidido por Onofre Martins dos Santos, a hipótese de um adiamento das eleições. Os membros daquele órgão assumiram as suas responsabilidades e decidiram prosseguir com o processo eleitoral. Onde a UNITA não permitiu a presença de delegados dos outros partidos, as eleições faziam-se na mesma. Um avião ao serviço do CNE foi atacado na província do Uíge. Noutros locais os funcionários da instituição eram impedidos de trabalhar. Mas houve mesmo eleições em 29 e 30 de Setembro de 1992. O segundo golpe foi então posto em marcha.

Acordo de Bicesse rasgado

No dia 31 de Maio de 1991 a UNITA assinou o Acordo de Bicesse. No momento em que o Presidente José Eduardo dos Santos estendia a mão a Savimbi, o comandante De la Ray tratava de esconder 20.000 tropas do Galo Negro nas bases “Girafa”, “Palanca”, “Tigre” e “Licua”. Para os “acantonamentos” iam soldados que nunca fizeram a guerra e as armas eram obsoletas. No dia 5 de Junho, com a mensagem secreta do Chefe do Estado-Maior da Inteligência Militar da África do Sul, a direcção do Galo Negro começou a rasgar o acordo. Mais uma vez, a UNITA fugia das eleições. Fez o mesmo em 1975 com o Acordo de Alvor.

Apesar das demonstrações de força em Luanda e noutras cidades do país, a UNITA não conseguiu travar o processo eleitoral. O Bairro do Miramar estava sitiado por “comandos” da UNITA que nem sequer respeitavam diplomatas e membros do Governo que habitavam a zona. Existia uma efectiva ocupação militar dos centros urbanos, patrulhados pelas famosas “GMC”. Mas nos dias 29 e 30 de Setembro houve mesmo eleições e os eleitores falaram alto. O MPLA venceu com maioria absoluta. A UNITA disse que houve fraude, usurpando o papel dos árbitros que eram a ONU e a Troika de Observadores (Portugal, Rússia e EUA).

Savimbi decidiu ser ao mesmo tempo jogador e árbitro. Quando em nome da comunidade internacional Margareth Anstee proclamou os resultados eleitorais e considerou as eleições “transparentes, livres e justas”, Savimbi partiu para a guerra.

Salupeto Pena, Jeremias Chitunda, Abel Chivukuvuku e outros altos dirigentes da UNITA lançam a segunda tentativa de golpe militar. Foram derrotados pelos angolanos. Primeiro, nas urnas de voto. Depois durante os combates nas ruas de Luanda e outros centros urbanos. O Acordo de Bicesse foi reduzido a cinzas e ensopado com o sangue de milhares de angolanos.

A base de Licua

Uma das bases onde foram escondidos os militares da UNITA era a de Licua. No Cuando Cubango há uma aldeia Licua, entre Luengue e Dirico. Há outra aldeia Licua entre Mavengue e Lumeia, na estrada para Xamavera.

A Licua da operação secreta foi inventada pela Inteligência Militar da África do Sul. Fica na confluência dos rios Luengue e Lumuna, na reserva do Mucusso. Tem as seguintes coordenadas: Latitude, 17 graus e um segundo Sul. Longitude, 21 graus e 17 segundos Este.

As outras bases que serviram para pulverizar o Acordo de Bicesse, estavam localizadas algures entre a fronteira da Zâmbia e da Namíbia, no Sudeste de Angola, mas longe da Jamba para não levantar suspeitas. Jonas Savimbi e Abílio Camlata Numa foram responsáveis directos pela guerra depois das eleições de Setembro de 1992. E os violadores do que foi acordado.

*Jornalista

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