terça-feira, 26 de julho de 2022

A GUERRA IMAGINÁRIA

 Patrick Lawrence*

Nos media dominantes, nos EUA e no “Ocidente” seu vassalo, trava-se na Ucrânia uma guerra imaginária, que teve início “quando o regime de Biden e a imprensa deturparam os objectivos russos. Todo o resto tem fluído daí.” Com o passar do tempo, a distância entre essa guerra imaginária e o que se passa no terreno alarga-se. Este texto desmonta várias vertentes dessa ficção. O que falta averiguar inteiramente é quais os objectivos pretendidos com ela. E esse assunto diz directamente respeito ao nosso país, e a um governo que, como os outros governos da UE, encaminham o país para uma profundíssima crise, se é que não ajudam a abrir caminho a uma catástrofe planetária.

O que iam fazer as cliques políticas, “a comunidade de inteligência” e a imprensa que serve ambas quando o tipo de guerra na Ucrânia sobre o qual falavam incessantemente se tornasse imaginário, uma Marvel Comics de um conflito com pouco fundamento na realidade? Tenho-me interrogado sobre isso desde que a intervenção russa começou em 24 de Fevereiro. Sabia que - quando finalmente tivéssemos uma - a resposta seria interessante.

Agora temos uma. Tomando como guia o governamentalmente supervisionado New York Times, o resultado é uma variante do que vimos quando o fiasco do Russiagate se desfez: aqueles que fabricam ortodoxias e consentimento estão a sumir-se pela porta dos fundos.

Poderia dizer-vos que não pretendo destacar o Times nessa disparatada chicana, com a excepção de que o faço. O outrora, mas não mais, jornal de referência continua a ser singularmente perverso nos seus enganos e aldrabices, pois impõe a versão oficial - embora imaginária - da guerra a leitores desavisados.

Como os leitores devidamente desconfiados de Consortium News se lembrarão, Vladimir Putin foi claro quando disse ao mundo as intenções da Rússia quando iniciou a sua intervenção. Estas eram duas: as forças russas iam para a Ucrânia para “desmilitarizar e des-nazificar”, um par de objectivos limitados e definidos.

Um leitor astuto desses comentários apontou num recente comentário que o presidente russo provou mais uma vez, para além do que se possa pensar dele, ser um estadista concentrado com uma excelente compreensão da história. Na Conferência de Potsdam em Julho de 1945, o Conselho de Controlo Aliado declarou o seu propósito pós-guerra na Alemanha como “os quatro D’s”. Estes eram a desnazificação, a desmilitarização, a democratização e a descentralização.

Demos aqui a David Thompson, que trouxe esta referência histórica à minha atenção, um merecido contributo:

“A reiteração por parte de Putin dos princípios de desnazificação e desmilitarização estabelecidos a partir da Conferência de Potsdam não é apenas um pitoresco tirar do chapéu à a história. Ele estava a assinalar aos Estados Unidos e ao Reino Unido que o acordo alcançado em Potsdam em 1945 é ainda relevante e válido…”

O presidente russo, cujo argumento fundamental dirigido ao Ocidente é que uma ordem justa e estável na Europa deve servir os interesses de segurança de todos os lados, estava simplesmente a recolocar os objectivos que a aliança transatlântica assinara realizar. Em outras palavras, estava a apontar a grosseira hipocrisia dessa aliança, que arma os descendentes ideológicos dos nazis alemães.

Detenho-me neste assunto porque a guerra imaginária teve início com as bastante irresponsáveis deturpações do regime de Biden e da imprensa sobre os objectivos da Federação Russa na Ucrânia. Todo o resto tem fluído daí.

Lembram-se: as forças russas iriam “conquistar” toda a nação, acabar com o regime de Kiev, instalar um governo fantoche e depois seguir para a Polónia, os estados bálticos, a Transnístria e o resto da Moldova, e depois disso quem poderia imaginar o que se seguiria. A desnazificação, podemos agora ler, é um engano fraudulento do Kremlin.

Edição Seguinte

Tendo mentido descaradamente sobre isso, a edição seguinte da banda desenhada foi ao mercado. A Rússia não está a conseguir atingir os seus objectivos imaginários. Moral baixa, deserções, tropas mal treinadas sem o suficiente para comer, falhas logísticas, fraca artilharia, munição inadequada, oficiais incompetentes: os russos estavam encarreirados para a queda em solo ucraniano.

O corolário aqui era o heroísmo, a coragem e o brio em campo de batalha das tropas ucranianas, acima de todas o Batalhão Azov, que já não eram neonazis. Não importa o que o Times, The Guardian, a BBC e várias outras publicações e emissoras mainstream nos tivessem anteriormente dito sobre esses fanáticos ideológicos. Isso fora então, isto é agora.

O problema, chegados a este ponto, era que não havia sucessos no campo de batalha a relatar. As derrotas haviam efectivamente começado. Em Maio, mais ou menos quando o Batalhão Azov, heroico e democrático como é, foi forçado a render-se em Mariupol, era tempo para – isso tinha obrigatoriamente que ser – atrocidades russas.

Tivemos o teatro e a maternidade em Mariupol, tivemos a infame chacina em Bucha, subúrbio de Kiev; vários outros se seguiram. O que aconteceu nesses casos nunca foi exactamente estabelecido por investigadores credíveis e desinteressados; abundante prova de que as forças ucranianas têm responsabilidades são rapidamente descartadas. Mas quem precisa de investigações e provas quando os brutais, criminosos e indiscriminadamente implacáveis Rrrrussos devem ser culpados se a guerra imaginária vai prosseguir?
Os meus incontestados favoritos nesta linha são cortesia da CNN, que se estendeu longamente nesta primavera com alegações – alegações ucranianas, é claro – de que soldados russos estavam a violar meninas e meninos, chegando até a bebés de meses. Três espécimes disso estão aqui, aqui e aqui.

A rede noticiosa abandonou abruptamente essa linha de investigação depois de o alto funcionário ucraniano que divulgava essas alegações ter sido removido do cargo porque as acusações eram inventadas. Uma sábia jogada da parte da CNN, acho eu: a propaganda não tem de ser muito subtil, como a história mostra, mas tem os seus limites.

Logo após a ter amadurecido a narrativa de atrocidades, começou o tema russos-estão-a- roubar-os-grãos ucranianos. A BBC ofereceu um especialmente maravilhoso relato disto. Vejam este video e texto de apresentação e digam-me se não é a coisa mais fofa que alguma vez viram, tantos buracos como as cortinas de renda da minha avó irlandesa.

Mas chegados aqui, problemas. As forças russas, com as suas deserções, armas antiquadas e generais burros, estavam a tomar cidade após cidade no leste da Ucrânia. Estas não eram — a mosca na sopa — vitórias imaginárias.

Fora com o tema da guerra está a ir bem e com o uso indiscriminado de artilharia dos brutais russos. Isto era uma “estratégia primitiva”, queria o Times que ficássemos a saber. No horror da guerra, simplesmente não se bombardeia uma posição inimiga como preliminar para a tomar. Medieval.

Ultimamente, há outro problema para os conjuradores da guerra imaginária. É o número de mortos. A Missão de Monitoramento de Direitos Humanos da ONU informou em 10 de Maio que a contagem de vítimas até o momento era superior a 3.380 mortes de civis, aumentando em Junho para 4.509 e 3.680 civis feridos. (E numa guerra ambos os lados atiram e matam.)

Ora bolas, exclamaram na 8ª Avenida. Isso está longe de ser suficiente na guerra imaginária. Desesperado por um número de mortos terrivelmente alto, o Times, em 18 de Junho, publicou “Morte na Ucrânia: um relatório especial”. Que leitura. Não há nada nele além de insinuações e suposições sem fundamento. Mas a guerra imaginária deve continuar.

O “relatório especial” do Times – dum-da-da-dum – baseia-se em frases como “testemunhos e outras provas” e “os milhares que se acredita terem sido mortos”. A prova, registe-se, deriva quase inteiramente de autoridades ucranianas – tal como uma excessiva quantidade daquilo que o Times publica.

Há uma grande citação: “Pessoas são mortas indiscriminadamente ou de repente ou sem razão ou sentido”. Uau. Não é isto condenável ou quê?

Mas outro problema. Esta observação vem de um certo Richard Kohn, que é emérito da Universidade da Carolina do Norte. Espero que o professor esteja a ter um bom verão em Chapel Hill.

No final de Junho, Sievierodonetsk caiu – ou subiu, dependendo do vosso ponto de vista – e em pouco tempo o mesmo aconteceu com Lysychansk e toda a província de Luhansk. Agora, aqui e ali, surgem histórias antes abafadas. As forças ucranianas estão tão desnorteadas que atiram umas contra as outras, lemos. Não podem operar os seus rádios e – aqui um astuto flicflac à retaguarda – estão a ficar sem comida, munições e moral. Soldados destreinados que se alistaram para patrulhar os seus bairros estão a desertar das linhas da frente.

Retenções

Existem os retentores. O Times informou na semana passada que os ucranianos, arrumados em Luhansk, estão a planear uma contra-ofensiva no sul para recuperar território perdido. Todos nós precisamos dos nossos sonhos, supõe-se.

Para a surpresa de muitos, Patrick Lang, o normalmente astuto observador de assuntos militares, publicou “Incapaz de reparar os seus próprios tanques, a humilhação da Rússia é agora completa” no seu Turcopolier, sexta-feira passada. O coronel aposentado prevê que os russos estão perante “uma súbita reviravolta na sorte”. Não, não estou a prender a respiração.

Já teve o suficiente da guerra imaginária? Eu tenho. Eu leio esse lixo diariamente por obrigação profissional. Algum acho divertido, mas no geral fico doente quando penso no que a imprensa americana fez a si mesma e aos seus leitores.

Para registo, é difícil dizer exactamente o que ocorre nos trágicos campos de guerra da Ucrânia. Como foi anteriormente observado neste espaço, temos muito pouca cobertura de correspondentes profissionais, devidamente desinteressados. Mas apresento aqui minha suposição, e nada mais é do que isso.

Esta guerra tem prosseguido, mais ou menos inexoravelmente, numa direcção: na guerra real, os ucranianos estão em marcha lenta para a derrota desde o início. São demasiado corruptos, demasiado hipnotizados pela sua fanática russofobia para organizar uma força efectiva ou mesmo para enxergar direito.

Esta não é uma guerra de desgaste, como é suposto que pensemos. Tem avançado lentamente porque as forças russas parecem estar a tomar o cuidado de limitar baixas – as suas próprias e entre civis ucranianos. Deposito mais fé nos números da ONU do que naquela tonta, vazia “reportagem especial” que o Times publicou há pouco.

Não sei porque é que as forças russas se aproximaram dos arredores de Kiev pelo norte no início do conflito e depois se retiraram, mas não há indicação de que pretendiam tomar a capital. Houve combates, mas certamente não foram “feitos debandar”. Isso é puro disparate.

Aguardo as devidas investigações – reconhecidamente improváveis – das atrocidades que certamente ocorreram, mas sem, até agora, qualquer indicação conclusiva de culpabilização.

Avril Haines, directora dos serviços de informações nacionais, observou recentemente que o objectivo da Rússia continua a ser tomar a maior parte da Ucrânia. Num discurso no final de Junho em Ashgabat, capital do Turquemenistão, Putin parecia notavelmente à vontade e afirmou: “Tudo está a andar conforme o planeado. Nada mudou.” O objectivo, disse, continua a ser “libertar Donbass, proteger essas pessoas e criar condições que garantam a segurança da própria Rússia. É isto.”

Colocando estas duas declarações lado a lado, há muito mais evidências a apoiar Putin do que há para Haines.

Intencionalmente ou não – e muitas vezes tenho a impressão de que o Times não compreende as implicações do que publica – o jornal publicou no domingo um artigo intitulado “Ucrânia e o Concurso de Resistência Global”. O resultado deste conflito, informava, depende agora de “se os Estados Unidos e seus aliados podem manter os seus compromissos militares, políticos e financeiros para conter a Rússia”.

Será que na 8ª Avenida não podem entender que acabaram de descrever a Ucrânia como um caso perdido? Sabem eles que acabaram de anunciar que a guerra imaginária que travaram nos últimos quatro e qualquer coisa meses está a terminar em derrota, dado já que não há ninguém na Ucrânia para a vencer?

Fontehttps://consortiumnews.com/2022/07/13/patrick-lawrence-the-imaginary-war/

Publicado em O Diário.info

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