quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Angola | A MÚSICA O VERBO E OS FALSÁRIOS – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

No princípio era a música. O senhor Vidigal era um branco pobre, vivia na aldeia da Missão e de madrugada, na sua cubata desconjuntada, ia fazendo mestiços. Passava os dias entre o bar Benfica e a Pousada do Congo, cantando e tirando sons roufenhos de uma sanfona mais cansada do que um cavalo louco. Ai ai ai ai. Ai o cheiro q’a rosa dá. Ai ai ai ai. Vem à jinela morena vem cá. 

E nós replicávamos: Quem te ensinou a beber/foi o senhor Vidigal/ Foi foi foi moreninha/ foi o senhor Vidigal. Um dia apareceu no barracão do clube o Milo Vitória Pereira acompanhando à viola uma cantadeira triste e ele cantava tirolês. Isto foi antes do Duo Ouro Negro, conjunto baptizado pela Maria Lúcia numa festa do Rádio Clube do Uíje.

Depois veio o verbo. No barracão do clube apareceu João Vilaret com uns números de ilusionismo e declamando poemas de Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, António Boto, Florbela Espanca. Também Fernando Pessoa do tempo em que não era flagelado com teses de doutoramento, apenas um poeta apaixonado pelo vinho tinto e o bagaço, mais uns quantos produtos que constroem paraísos artificiais. Não há deus que lhes chegue aos pés a esbanjar felicidade e amor por esta vida descontente. 

Anos depois, no palácio da Cuca, estava a dormir debaixo da mandioqueira mais para o bêbado do que para o lúcido e acordei com o vozeirão do Ernesto Lara Filho declamando o Grande Desafio do António Jacinto. Despertei. Engrenou logo no Namoro do Viriato da Cruz. Rua da Maianga do Mário António. E Adeus à Hora da Largada de Agostinho Neto. Desatei a chorar. Desde então apaixonei-me pelo verbo e sendo um infiel por natureza e índole, mantive-me fiel à palavra, até hoje. Um contra-senso, porque odeio o difícil comércio da arte literária.

Um dia estava a curtir o desemprego, confinado a uma crónica semanal que me dava vinte paus, fui convidado por um amigo para uma sessão de bebida e conversa. Ele era um génio do desenho e das cores. O maior artista plástico angolano de todos os tempos. Tudo começou pelo verbo. Ele contou-me que estava prestes a entrar num negócio de kamanga. Desenhou notas de mil mais perfeitas do que as verdadeiras. Um tipógrafo, mestre na arte dos fotolitos, fez o modelo e imprimiu o material em grandes quantidades. O papel, de gramagem especial, foi comprado em Portugal. Com esse dinheiro ia ao Cafunfo comprar um garrafão de diamantes. Mas precisava de testar o material. Passou-me um vulo com dez contos! 

Nessa noite fui a um cabaré e gastei 300. Paguei com a nota falsa e recebi 700 de dinheiro sujo. O negócio pegou. Arranjei trabalho. Encomendaram-me a cobertura das Festas do Mar em Moçâmedes. Levei mais um maço de dez contos. À noite ia a casa da dona Benvinda. Um recinto nocturno que metia fados e meninas me beijavam e tratavam por doutor. Eu oferecia-lhes taças de gasosa que elas chamavam champanhe. Fazia despesa de 500 pagava com mil falsos e recebia 500 de dinheiro sujo. Um sucesso.

Nas terras do Bero, um dia entrevistei a Riquita, que foi Miss Angola, Portugal e resto do mundo. No fim da conversa disse-lhe que a Guida Bento César, sua dama de honor, era mais bonita do que ela. E a Riquita, entusiasmadíssima, respondeu: Também acho! É uma mulher muito bonita como ser humano. 

Mutos anos mais tarde entrevistei a Riquita naquele jardim abaixo do Casino Estoril. Mostrou mais uma vez a sua beleza como pessoa. No fim da conversa e das fotos fomos almoçar num restaurante chinês ali perto. Apareceu Ed (Eduardo Nascimento) o autor, em parceria com Tazinha de Mascarenhas e Jorge Macedo, do primeiro hino de Angola. 

Já tinha sido gravado por um coro afinado mas foi vetado porque alguém descobriu que o Ed Nascimento tinha representado Portugal no festival da Eurovisão, logo colaborou com o colonialismo. O autor do hino substituto, em vigor, foi para a guerra colonial em Moçambique como brioso oficial do exército português. Logo, não foi colaboracionista. Adiante. O Ed nunca pegou numa arma! Só no microfone.

O meu amigo artista plástico fez o negócio da kamanga. O comerciante do Cafunfo que lhe vendeu os diamantes era sócio do governador. E deu-lhe a sua parte no negócio. O chefe, gente fina, depositou a massa no banco do Champallimaud, acho que se chamava BCCI. O gerente resolveu testar uma nota e descobriu que era falsa. Outra e mais outra. Todas. Dinheiro falso. O governador ficou furioso e não descansou enquanto o meu amigo artista do desenho e o génio dos fotolitos não foram presos. 

O destino dos falsários é mesmo esse, a prisão. Mas os meus amigos não! Ia vê-lo ao cárcere todas as semanas. Poucos meses depois foi libertado porque ameaçou contar tudo. Acabou fazendo desenhos a carvão de camones, numa esplanada à beira-mar em Cascais. Um dia desenhou um ricaço angolano. Pagou-lhe tanto dinheiro que amigou com uma menina mais nova do que ele, 60 anos. Morreu a fazer amor. Esse é o meu sonho dourado. 

Todas as senhoras deviam morrer suspirando de amor ao lado, por cima ou por baixo de um rapaz espadaúdo com dureza para dar e vender. Todos os senhores fora de prazo deviam morrer gemendo prazeres retardados com uma menina de bom coração.Ee tão paciente que é capaz de esperar uma noite inteira que as partes baixas decidam dar sinais de vida. 

Adalberto da Costa Júnior, Abel Chivukuvuku e Filomedno Vieira Lopes falsificaram actas de mesas e assembleias de voto. Senhor Procurador-Geral da República! Esses falsários estão acima da Lei? Falsificam documentos oficiais para fomentarem rebeliões de bandidos, atentam contra o bom-nome das nossas instituições e particularmente do Poder Judicial, atiram com o nome de Angola para as ruas da amargura e nada lhes acontece? Para cúmulo querem sair por cima, cuspindo no prato onde Isabel e Welwitschia dos Santos lhes deram de comer. 

Falsários para a prisão! Os sicários da UNITA não podem continuar a viver na total impunidade. Mataram até os dirigentes do Galo negro. Foram amnistiados. Mataram milhares de civis inocentes. Praticaram hediondos crimes de guerra e estes não prescrevem. Nada lhes aconteceu, De cinco em cinco anos atentam contra o bom-nome e a consideração social das instituições que organizam as nossas eleições. Nada lhes acontece. A conivência dos poderes públicos com  os crimes dos dirigentes da UNITA e seus sócios têm de acabar.

*Jornalista

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