segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Brasil | ELEIÇÕES: O PERIGO DE JOGAR NA RETRANCA

Jean Marc von der Weid* | Outras Palavras

Sob ventos de virada, Bolsonaro trama nova (e selvagem) rodada de jogo sujo. Já Lula limita-se a costurar um insuficiente apoio de parte da direita. Vitória exige mais: ampliar votação no Nordeste, mais ativismo digital e olhar o Brasil de hoje

#Publicado em português do Brasil

Em dois dias de campanha de segundo turno, Bolsonaro já mostrou a que veio.

A derrama de dinheiro vai continuar sem limites: liberação antecipada das prestações do Auxílio Brasil, inclusão de mais 500 mil famílias neste programa, um auxílio excepcional para mulheres chefes de família, mais quedas nos preços da gasolina, do diesel e do gás, mais liberações do orçamento secreto, e sabe-se lá que mais ele vai inventar. As ilegalidades vão se acumulando sem qualquer freio do Judiciário. Diz-se que até agora estas benesses não tiveram efeito sobre o eleitorado e confia-se que continuarão sem tê-lo. Discordo. A derrama não deu a Bolsonaro a vitória no primeiro turno como ele esperava e anunciava, mas certamente arrastaram votos, inclusive no Nordeste, onde Bolsonaro capturou mais um milhão de votos, em relação à sua votação em 2018.

Seu segundo movimento foi atrair os governadores reeleitos, entre eles Zema e Castro, e até um derrotado, Garcia. Com as máquinas dos governos estaduais jogando a seu favor nos três estados com maior concentração de eleitores (além de mais outros cinco), Bolsonaro tem um potencial significativo para arrastar pelo menos parte dos 8 milhões votos que precisa para bater Lula. Analistas apontam para casos anteriores de insucesso no uso deste aparato público nas eleições de 2006 e 2010, mas no caso presente estabeleceu-se uma tal desfaçatez no uso da máquina, em particular no Rio de Janeiro, que algum ganho pode ser previsto no segundo turno. Os governadores da oposição não têm no seu pedigree esta sem-cerimônia e dificilmente vão adotar a mesma prática.

Podemos esperar uma ação muito mais contundente dos candidatos bolsonaristas eleitos no Nordeste, já que não correm mais o risco de atrelar seu voto na rejeição de Bolsonaro. Devem arrastar mais uns votinhos neste turno.

A tática de demonizar a candidatura de Lula, adotada com furor especial nos últimos dias do primeiro turno, deve prosseguir. Nada de discutir programas e políticas públicas. Bolsonaro vai centrar no discurso sobre a ameaça comunista, na desqualificação de Lula como o anticristo, o inimigo da religião, o favorável ao aborto, ao casamento gay, à sexualização da infância (retorno ao tema da “mamadeira de piroca”), na proteção dos criminosos (como se qualifica a defesa dos direitos humanos), e outras cositas más (com duplo sentido).

Apesar de todos os escândalos da família Bolsonaro e de seu governo, a acusação de corrupção dos governos de Lula e do PT continua na pauta sem o menor pejo.

Para além de tudo isso, o bolsonarismo está triunfante com a arrancada de última hora e acusando as pesquisas de opinião como forjadas para favorecer Lula. Isto prepara a eventual recusa dos resultados do pleito, no caso deste festival de horrores não ser suficiente. Se os analistas acreditavam que a aparente maré lulista das últimas duas semanas atrairia o voto indeciso, o vento de vitória no momento sopra a favor de Bolsonaro. A campanha de Lula pode cantar vitória pelo fato de ter chegado muito perto de vencer no primeiro turno, mas o sentimento do eleitorado, exceção dada à região Nordeste, aponta para a vitória de Bolsonaro. Isto dá garra à sua militância e desânimo na de Lula.

Some-se a isto a agressividade dos fanáticos bolsonaristas, que já deram mostra do que serão capazes de fazer para intimidar a campanha de Lula nas ruas.

Por fim, a ação das igrejas pentecostais vai continuar e intensificar a pressão. Os capos das igrejas estão ameaçando de expulsão os pastores que não aderirem por inteiro à ofensiva contra Lula. A ordem é mobilizar todos os obreiros e obreiras de todas as igrejas para um corpo a corpo, casa a casa, enquadrando os fiéis, que ainda serão submetidos a uma doutrinação fanática nos cultos semanais.

Não se pode esquecer que a campanha do Gabinete do Ódio tem peso suficiente para enfrentar a forte crítica ao bolsonarismo na mídia convencional. Não é tão fácil como foi em 2018, quando a oposição não tinha ainda entrado no combate através das redes sociais, mas ainda pesa, nem que seja para fidelizar os eleitores já conquistados.

Para além da ofensiva da campanha de Bolsonaro, temos ainda que contar com um problema que já se verificou no primeiro turno, a abstenção. Como o mais forte contingente favorável a Lula se encontra entre os mais pobres, os eleitores que ganham até dois salários mínimos, é o ex-presidente quem mais perdeu votos para a abstenção no primeiro turno e quem arrisca de perder mais ainda no segundo. Isto se explica quer pelas dificuldades inerentes à pobreza quer pelo desânimo provocado pela derrota aparente de Lula.

A campanha de Lula está centrada em ganhar os votos que não foram para ele ou para Bolsonaro no primeiro turno. São mais ou menos 10 milhões de eleitores ou 9% do eleitorado. Ele precisa ganhar menos de um quarto deste número, mas embora pareça relativamente fácil, a tarefa vai ser duríssima. Com a campanha criminosa de Ciro no primeiro turno, atuando praticamente como linha-auxiliar de Bolsonaro, vai ser muito difícil levar mais do que uma pequena parcela deste contingente pedetista. E temos que torcer para que os eleitores de Ciro que não fizeram voto útil no primeiro turno e ajudaram Bolsonaro a dar o surpreendente salto de última hora, não corram para apoiar o energúmeno. A meu ver, os ciristas mais à esquerda também fizeram voto útil no primeiro turno e o melhor que podemos esperar, apesar do apoio do PDT e até de Ciro (muito de má vontade) à Lula, é que se abstenham ou anulem seus votos.

Quanto aos votos de Tebet, embora ela tenha sido menos virulenta que Ciro nos seus ataques a Lula, eles representam um eleitorado conservador e antipetista. O apoio de Tebet e do MDB/Cidadania dificilmente vai atrair muitos votos para Lula. Mais uma vez, o melhor que se pode esperar é que se abstenham ou votem nulo. O mesmo pode ser dito dos votos de Soraya Thronicke e do União Brasil. A candidata já deu apoio a Bolsonaro e, apesar dos esforços de Lula, dificilmente ela e seu partido vão entrar em campo para apoiá-lo. As missangas do candidato do “Novo” já estão garantidas para Bolsonaro e as minúsculas votações da extrema esquerda arriscam de ir para o voto nulo ideológico. Não vi declaração de apoio do PSTU, do PCO ou da UP à Lula, mas mesmo que estes partidos se posicionem contra Bolsonaro, o que podem carrear vai ser pouco, embora deva ser buscado neste quadro de dificuldades.

E que dizer dos eleitores do PSDB? Lula tentou atrair o partido para um acordo, oferecendo apoio ao último reduto sobrevivente daquilo que foi, no começo, um partido de centro-esquerda. Apesar da óbvia necessidade de Eduardo Leite em conseguir o apoio do PT e da esquerda gaúcha para tentar bater Lorenzoni, o PSDB optou por “liberar as bancadas”, terminando de enterrar o partido. E tudo isto para tentar um acordo com Tarcísio para preservar os empregos dos apaniguados. É um suicídio inútil. Tarcísio e Bolsonaro não vão deixar pedra sobre pedra da administração do PSDB em São Paulo, independentemente das promessas que possam fazer agora. Os próceres mais antigos do PSDB, Serra, Fernando Henrique, Tasso, José Aníbal e outros, estão apoiando Lula (e alguns deles fazendo dobradinha com Tarcísio), mas quantos votos podem carrear? Poucos. Vários destes “cabeças brancas” nem conseguiram se eleger. O PSDB é carta fora do baralho.

Das démarches de Lula sobra apenas definir a posição do PSD de Gilberto Kassab. A raposa, se estava simpática a apoiar Lula no segundo turno, passou a adotar um silêncio absoluto neste momento. Eles apoiaram Tarcísio no primeiro turno e deixaram a candidatura a presidente em aberto, mas tudo leva a crer que, se não apoiarem Bolsonaro diretamente, não vão fazer campanha para Lula.

Em outras palavras, toda a estratégia da campanha do PT, de costurar apoios por cima com as direções dos partidos não comprometidos com o bolsonarismo, já deu com os burros n’água. Vai ser preciso redefinir a estratégia e ganhar com os apoios com que já contava no primeiro turno. E não ajuda nada o bater de cabeças entre a campanha de Lula e a de Haddad.

Neste quadro, como deveria se colocar a campanha? Devemos entrar no esforço de desmentir e desmascarar a enxurrada de fake news do gabinete do ódio e dos pastores bolsonaristas? Devemos centrar fogo nos riscos do bolsonarismo para a democracia?

A meu ver a campanha vai ter que tentar ampliar o voto nordestino e levar os índices de votos em Lula dos 65% em média para 75% em média. É nos estados do Nordeste que a maré continua favorável, pelos resultados obtidos e pela reação contra as ofensas dos bolsonaristas ao povo da região. A militância está em pé de guerra, há governos estaduais a ganhar (o que diminui a abstenção) e os governadores vitoriosos podem ter um papel significativo.

A meu ver, Lula vai precisar de centrar em alguns temas de forte impacto na população, em particular o tema da fome. Ele vai ter que criar fatos novos e isto significa lançar projetos ambiciosos do tipo Programa Fome Zero. Para isto, não tem sentido repetir que o novo governo Lula vai fazer o que já fez no passado. Apresentem um programa concreto e abrangente para contrastar com todos os desastres do governo Bolsonaro. Não há tempo para atacar de frente e com profundidade os temas da saúde e da educação, mas nem que seja uma promessa de garantir uma substancial merenda escolar já terá impacto, dada a falência total do PNAE no governo Bolsonaro. Lula deveria lançar uma cruzada nacional pela erradicação da fome, apelando para a participação da sociedade civil, inclusive as igrejas.

Infelizmente, o tema que é, estrategicamente, o mais importante para nós e para o planeta, a necessidade de controlar o desmatamento e as queimadas, não tem apelo eleitoral e deverá ficar para mais tarde.

A batalha nas redes sociais vai ter um papel ainda maior neste segundo turno do que no primeiro. Para ampliarmos o nosso impacto neste terreno, teremos que organizar melhor a nossa intervenção. Uma boa ideia é a proposta do movimento G68 de constituir uma rede de redes de comunicação que unifique os temas e os conteúdos, ampliando o impacto no Whatsapp, Facebook, Tiktok, Twitter e Youtube.

O tempo é curto e o caminho árduo. Mas se queremos salvar o que resta do nosso desgraçado país temos que retomar o combate com todas as nossas forças. Chega de mimimi e de busca por culpados. É hora de levantar a cabeça e “lutar, lutar, lutar outra vez, até que os cordeiros virem leões”.

Gostou do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROSQUINHENTOS

*JEAN MARC VON DER WEID -- É um economista agrícola e ambientalista brasileiro. Foi presidente da UNE, entre 69/71. É fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA) e ex-membro do CONDRAF/MDA 2004/2016.

Sem comentários:

Mais lidas da semana