André Singer para A Terra é Redonda | em Outras Palavras
“A Itália, fascista ou não,
continuava sendo meu país” (Primo Levi)
#Publicado em português do Brasil
Movimento e regime
A verdadeira natureza do fenômeno
que transtornou a democracia brasileira, entre 2019 e 2021, só será
verdadeiramente compreendida quando o governo de Jair Bolsonaro tiver
completado o percurso que lhe couber e for devidamente colocado no contexto
mundial que, em certa medida, o explica. Segundo o cientista político Larry
Diamond, os indicadores democráticos globais estavam em declínio desde 2006. Na
esteira do crash financeiro de 2008, o quadro se agravou e, no
quinquênio após 2016, adquiriu caráter de urgência, refletindo-se diretamente
no Brasil.
Os fatos são conhecidos.
Declarado vitorioso em 8 de novembro de 2016, Donald Trump tornou-se, à frente
dos EUA, difusor, assim como o Brexit, de uma era “pós-factual” que,
rapidamente, se espalharia pelo mapa-múndi, entrando para a pauta prioritária
da ciência política. Desde que Jair Bolsonaro, um ex-capitão paraquedista do
Exército e deputado federal obscuro por trinta anos, foi eleito presidente da
República, o Brasil viu-se submerso pela vaga vinda do norte, tornando-se um
caso relevante a ser decifrado. Escrevendo antes do pleito presidencial,
Diamond já identificava “declínio na qualidade e estabilidade da democracia” no
Brasil e Stanley (2018) chamou Bolsonaro de “tropical Trump”.
Steve Bannon, principal ideólogo
do trumpismo, articulou figuras de distintas origens numa espécie de comintern direitista
(BBC, 2018), incluindo Bolsonaro no balaio. O inglês Nigel Farage,
impulsionador do Brexit em 2016, a francesa Marine Le Pen, segunda
colocada na disputa presidencial de 2017 e o italiano Matteo Salvini,
vice-primeiro ministro da Itália em 2018, foram conectados pelo assessor da
Casa Branca. Como Trump continuou a comandar uma porção do eleitorado
estadunidense, mesmo depois de deixar a presidência, de maneira complementar
prosseguiram as atividades de Bannon com o brasileiro ganhando projeção nelas.
Bannon chegou a dizer que Bolsonaro e Salvini tinham se tornado “os políticos
mais importantes do mundo” e que o pleito de 2022 no Brasil convertera-se no
“mais importante da história da América do Sul”.
Teria sido o país atingido por um
relâmpago neofascista intercontinental? Como qualquer fato emergente na
sociedade, é raro compreendê-lo quando embrionário e incerto. Leon Trotsky
registra que os italianos não vislumbraram “os traços particulares do fascismo”
quando este apareceu pela primeira vez na face da terra, justamente na pátria
de Dante Alighieri, em 1921. “Exceto Gramsci”, excepcional analista, os
compatriotas nem mesmo admitiam “a possibilidade da tomada do poder pelos
fascistas” e desconheceram que havia “um fenômeno novo que estava ainda em vias
de se formar”. Gramsci, entre outras contribuições, notou o aspecto cesarista
do monstro, com a personalidade de Benito Mussolini (1883-1945) centralizando
as atenções (Antonini, 2021). Trotsky foi pioneiro ao diagnosticar o rasgo bottom-up do
nazismo, inédito no campo reacionário.
Max Horkheimer e Theodor W.
Adorno, dois pensadores alemães de inspiração marxista, mas incorporando ideias
da psicanálise, perceberam que a capacidade nazista de mobilizar desde baixo
relacionava-se com a ativação de camadas inconscientes dos indivíduos, o que
transcendia as classes, embora de modo algum as eliminasse. Passadas sete
décadas, o filósofo Jason Stanley, da Universidade Yale, observando Trump, fala
no uso de táticas fascistas, as quais dispõem de técnicas específicas, entre
elas as teorias da conspiração, para destruir os espaços de informação e
ruptura com o real.
Na mesma trilha, um segundo
filósofo, Peter E. Gordon, da Universidade Harvard, sublinha no trumpismo o
método fascista de estimular a raiva contra quem supostamente usurpou a antiga
grandeza do povo. Trata-se da estratégia do “scapegoating”, isto é, transformar
um grupo específico, no caso os imigrantes, em bode expiatório. Na composição
do roteiro aqui encetado, adotaremos estes dois marcadores como guias – a
tática da ruptura com a realidade e a estratégia do bode expiatório –, sem
pretender que eles esgotem uma definição de fascismo. Trata-se, somente, de destacar
traços que, porventura, iluminem procedimentos atuais no Brasil.
O eventual uso de certos meios de
agitação e propaganda, entretanto, não resolve o problema de saber a que tipo
de regime elas conduzem. Conforme Fernando Henrique Cardoso, ainda pensando com
categorias marxistas, “sem a definição de um espaço teórico para uma teoria dos
regimes, acaba-se correndo o risco de confundir […] a própria dominação
de classe com o controle de partes do aparelho burocrático”. De acordo com
Przeworski, a atual erosão da democracia – incremental, por dentro das leis e
dirigida por líderes eleitos – pode resultar tanto em “autocracia, ditadura ou
autoritarismo”. A indefinição explica a quantidade de neologismos surgidos nos
últimos tempos: “democracia iliberal”, “democratura” e “neoditadura”, por
exemplo.
As ações de Bolsonaro no plano do
regime nos levaram a resgatar uma passagem de Norberto Bobbio, na qual o
filósofo italiano assinala que, para Marx, as instituições representativas da
França, depois de 1848, desembocaram no “governo pessoal, ou seja, em uma
autocracia”. Referindo-se à derrocada da Assembleia Nacional, Marx assinala
que “na pessoa de Luís Bonaparte”, o Executivo colocou o Parlamento “para
fora”, estabelecendo o Segundo Império, regime que o sobrinho de Napoleão
encarnou por duas décadas.
A autocracia, entendida como
forma de autoritarismo que se caracteriza pelo “governo pessoal”, pareceu-nos
corresponder ao norte de Jair Bolsonaro entre 2019 e 2021, período que
analisamos nas linhas a seguir. Diferente dos regimes resultantes dos golpes
militares dos anos 1960 e 1970, em que o aparelho estatal “podia também estar
na mão de um grupo”, o presente projeto parece concentrar-se em um indivíduo
que, no vértice da máquina pública, substitui uma “convenção”, “assembleia” ou
“partido revolucionário”.
Se uma vez, eventualmente
vitorioso, tal regime adquiriria conotações fascistas, com o surgimento de um
“partido único de massa hierarquicamente organizado”, de uma orientação
imperialista e de uma “tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido
ou do Estado […] a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e
culturais”, só o tempo, talvez, dirá. Por ora, as evidências nos parecem
suficientes para falar em autocratismo, o que coincide com estudos
internacionais que identificaram uma terceira “onda de autocratização”,
começando em 2017 – a primeira teria ocorrido entre 1926 e 1942 e, a segunda,
entre 1961 e 1977. Mas é claro que, ao usar técnicas fascistas de
mobilização, as chances de conversão a tipos de governo que atualizem aqueles
dos anos 1930, justificadamente, ligam os sinais de alerta históricos.
Este trabalho sugere que, na
experiência brasileira entre 2019 e 2021, houve uma combinação entre pressão
autocrática e mobilização fascista. Pesquisado e escrito enquanto o mandato de
Jair Bolsonaro estava in fieri, buscou-se extrair dos
acontecimentos, tomados como base empírica, sentidos possíveis, sabendo que um
verdadeiro esquema interpretativo terá que ser obra coletiva. Deixa-se para
pesquisas posteriores a necessária comparação com hipóteses concorrentes. O
roteiro exploratório a que se refere o título, portanto, não exclui,
necessariamente, outros.