sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Angola | AMOR ETERNO AOS CAPATAZES -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

O António Kiangala era um grande capataz. Serviu na tropa, foi desmobilizado no início dos anos 50 e regressou ao Bindo. Como tinha sido militar, conseguiu trabalho na grande roça Pumbassai. O seu desempenho foi tão bom que o dono da Muzekano chamou-o para a sua fazenda. Ele aceitou porque ficou mais perto do Bindo, a sua terra. Ali começou um verdadeiro calvário. O patrão queria que castigasse os contratados com chicotadas e palmatoadas. Mas ele não era capaz de tais violências sobre os seus patrícios. Perdeu o emprego.

De volta ao Bindo ficou a trabalhar na sua tonga, poucos pés de café, domínios diminutos, pouca terra para tanta vontade de triunfar na vida, ele que até foi soldado no Regimento de Infantaria de Luanda e já tinha visto o mar, uma lagoa imensa com água margosa e que faz compressão na barriga. 

O senhor Moka estava a precisar de um capataz e deu-lhe trabalho. Este fazendeiro negro era familiar do senhor Teta, que tinha um turismo Chevrolet rabo de peixe e usava relógio de ouro no pulso. Ambos eram das elites negras do Congo Português que sobreviveram aos confiscos de governadores, administradores e chefes de posto.

O António Kiangala foi abordado pelo administrador de Camabatela para ser cabo dos sipaios. Recusou porque não podia dar chicotadas e palmatoadas aos seus irmãos. De vingança pela nega, o administrador pressionou o senhor Moka para despedir o recusador. O fazendeiro teve que ceder. Foi nesta fase que ficámos amigos de férias. Quando ia ao Bindo no final do ano escolar tornava-me companhia inseparável de António Miangala. Nesta altura ele vivia da caça com armadilhas e depois vendia a carne fresca ou seca. Com ele aprendi que a melhor carne seca do mundo é a de impala, porque não tem gordura e por isso não sabe a sebo.

Nas suas andanças de caçador muitas vezes matava as mães e ficava com as crias. Foi assim que ganhei uma onça bebé, um gato bravo que mal abria os olhos e um kipite mansinho que alimentei ao biberão com leite em pó Nutrícia, porque era mais barato do que o Nido. Para guardarmos as crias, fizemos um cercado com troncos de pau-ferro. Às tantas a onça começou a ameaçar a restante população e fomos largá-la numa baixa onde se espraiava a grande lagoa das cobras. Perdi o António Kiangala e toda a minha família em 15 de Março de 1961. Nunca mais voltei ao Bindo. Tudo perdido, até a minha cadelinha Negrita. Ninguém tenha a mínima dúvida, eu sou vítima do imperialismo.

O Presidente João Lourenço recebeu esta tarde um telefonema de Antony Blinken. O Jornal de Angola garantiu-me que os dois abordaram questões bilaterais e sobretudo da África Austral. Os serviços de Imprensa da Presidência da República informaram que “a conversa serviu para um balanço da cimeira Estados Unidos-África, que teve lugar Dezembro último em Washington, tendo a parte americana garantido a implementação das decisões tomadas naquele fórum”.

Mais importante ainda. Os serviços da Presidência da República garantem à opinião pública angolana uma bomba! As personalidades que o Presidente Joe Biden indigitou para acompanharem de perto o processo posterior da Cimeira de Washington, vão visitar o continente africano em Fevereiro. Angola está na agenda. 

Importantíssimo: O investimento dos gringos no mercado angolano vai passar de zero para zero vírgula zero, tipo votação do Bloco Democrático quando vai a eleições. Sua excelência o Presidente João Lourenço salvou-nos dos marimbondos mas para não ficarmos órfãos, foi à cimeira de Washington buscar aves da rapina insaciáveis. Já não era sem tempo. 

O MPLA liderou o Povo Angolano na luta contra o colonialismo. Os colonialistas portugueses eram meros intermediários de “investidores” norte-americanos, britânicos, holandeses, franceses e outros predadores colonialistas. Estávamos há tantos anos sem patrões nem capatazes e quando a orfandade nos ameaçava com tristeza pesada eis que fomos salvos pelos Biden e Blinken de serviço.

Espero que os capatazes que os novos donos nos arranjaram sejam como o António Kiangala e se recusem a dar-nos chicotadas e palmatoadas. Levem o dinheiro mas deixem-nos a pele. 

Profundamente comovido, li hoje a crónica do Manuel Frui Monteiro. Nem de propósito. Ele descobriu que os norte-americanos são amigos dos angolanos desde os anos 20! Amicíssimos! Mandaram-nos missionários negros que ajudaram a comprar telhas e tijolos.

No seu frémito amoroso pelos gringos, o bom do Manuel Rui remata assim: “Alguém devia escrever sobre estas Missões (dos norte-americanos) em vez de adorarmos ruínas de uma Igreja do tempo da escravatura e Inquisição”. Meu caro ex-camarada. Não te esqueças que a Igreja da escravatura e da Inquisição deu-nos o cónego Manuel das Neves, o cardeal D. Alexandre do Nascimento, o arcebispo D. Filomeno Vieira Dias, o cónego Apolónio Graciano (meu querido amigo) ou os padres revolucionários Vicente Rafael e Joaquim Pinto de Andrade, deportados de Angola para Portugal. 

Isto para não falar dos meus professores de Moral no Liceu Salvador Correia, padre Franklim da Costa (mais tarde arcebispo) e no Colégio da Casa das Beiras, padre André Muaka (bispo depois da Independência Nacional). Bons professores, bons cidadãos, bons angolanos.

E que dizer de Monsenhor Alves da Cunha? Foi um dos grandes obreiros do Liceu Salvador Correia que, apesar do mobutismo reinante, ainda não perdeu o estatuto de escola formadora de grandes dirigentes angolanos, entre os quais António Agostinho Neto.

As instituições não têm data nem podem ser vistas pelo que fizeram há 500 anos com os olhos de hoje. Nunca frequentei religiões, a minha fé vale menos do que um bago de jinguba, mas para agradar ao capataz de serviço não vou deitar abaixo a Igreja fazendo broches aos gringos. Tenham um nadinha de decoro senão eu viro bicho!

*Jornalista

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