domingo, 29 de janeiro de 2023

"JOGOS OLÍMPICOS" DO RACISMO NOS EUA É SECULAR E SISTEMÁTICO

A história não se repete, mas rima

José Mendes* | Diário de Notícias | opinião

Nos Estados Unidos há uma espécie de jogos olímpicos policiais, que consistem em espancar cidadãos de cor escura. Este ano, foi a equipa de Memphis, constituída por cinco agentes da autoridade, que protagonizou o espancamento do jovem negro Tyron Nichols, causando-lhe a morte. Não há tradição de o acontecimento ser objeto de transmissão televisiva, mas uma câmara de vídeo pendurada num poste de iluminação pública estragou o secretismo daquele que é um dos mais mal guardados segredos da nação americana: a violência policial de motivação racial. No final desta semana, as pessoas vieram para a rua em várias cidades para, de novo, protestar. Ao ler a notícia e ver o vídeo, a minha mente recuou 31 anos.

Abril de 1992. Bem no centro da América, na cidade de Brookings do estado de North Dakota, senti uma rabanada de vento gelado do norte, seguramente oriundo do Canadá. O meu treino diário estava completo e a noite aproximava-se, pelo que me dirigi para o "dorm" da SDSU, a Universidade Estadual que, juntamente com uma estação próxima de rastreamento de satélites, me havia atraído para fazer parte da investigação do meu doutoramento. Pelo caminho, alguém me avisou, num inglês indígena, nem sempre percetível, que estavam a pegar fogo à América!

Quando liguei a televisão, lá estava. Multidões em grandes cidades como Los Angeles, São Francisco, Las Vegas, Atlanta e Nova Iorque pegavam fogo a tudo. As ruas e as montras eram destruídas por hordas de pessoas, numa mescla de protesto, de roubo e de violência que assustavam só de ver. A situação foi resolvida com intervenção militar, deixando para trás 59 mortos, mais de dois mil feridos e prejuízos de um bilião de dólares.

A razão de tudo aquilo tinha sido a absolvição dos quatro polícias brancos que, um ano antes, tinham espancado um condutor negro, de nome Rodney King. No dia do acontecimento, o jovem de 25 anos, que estaria em liberdade condicional, conduzia um automóvel, com dois amigos, alegadamente alcoolizados. Deu-se a perseguição até à detenção, após o que a equipa policial, com o homem no chão e indefeso, iniciou o ritual de murros, pontapés e bastonadas que só está ao alcance dos mais motivados racistas. Tal como em 2023, a cena não deveria ter sido registada, mas uma câmara de vídeo inoportuna filmou o feito e a gravação tornou-se pública.

O julgamento de King foi repetido um ano depois e dois dos quatro agentes foram condenados. Num processo separado, a cidade de Los Angeles foi obrigada a entregar uma indemnização de 3,8 milhões de dólares.

Apesar da força e dos méritos da democracia americana, há um substrato racial, sobretudo nos estados do sul, que se esconde, mas que emerge demasiadas vezes. Remete historicamente para os séculos da escravatura, inventada pela Europa, praticada em África e exportada para a América. Em pleno século XXI, nenhum de nós esperaria que existisse em organismos coletivos e públicos, como as polícias. O advogado de King foi muito enfático quando afirmou o seguinte: "Finalmente, conseguimos filmar o Monstro do Lago Ness".

Confirma-se a frase atribuída a Mark Twain: "A História não se repete, mas rima". Assim foi com Rodney King, em 1991; e com Tyron Nichols, em 2023.

*Professor catedrático

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