Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
Há uma recorrente promiscuidade, uma indistinção, uma confusão entre as missões da gestão pública e da gestão privada que me parecem ser uma das várias bases de escândalos como o que animou em Portugal o final do ano 2022.
Como os leitores sabem, o motivo desse clamor, que desembocou na demissão do ministro Pedro Nuno Santos, foi o incompreensível pagamento de 500 mil euros de indemnização a uma gestora demissionária da nacionalizada TAP, que a seguir foi presidir a outra empresa pública e dali caminhou para efémera secretária de Estado.
Esse pagamento teve como base uma discutível interpretação da lei que retirou o apuramento do valor dessa compensação dos regulamentos dos contratos dos gestores públicos (por aí o pagamento a Alexandra Reis, se devido, seria sempre muito menor) para a colocar na alçada do Código das Sociedades Comerciais.
Não me interessa aqui debater o específico valor jurídico dessa interpretação, interessa-me antes analisar o mecanismo que, simplesmente, suscita o levantamento dessa hipótese: esse mecanismo, errado e enraizado, pressupõe que a gestão de uma empresa pública, no fundo, não difere muito da gestão de uma empresa privada.
Essa confusão começa nas missões que os governos dão aos gestores. Nas últimas décadas a boa ou má reputação de um gestor público decorre mais de um determinado resultado financeiro do que do resultado qualitativo do serviço que é prestado.
A gestão da Caixa Geral de Depósitos, por exemplo, é mais avaliada nos comentários nos jornais e da classe política dominante pela capacidade de obtenção de lucros do que, por hipótese, pela capacidade de prestar serviços bancários em zonas desfavorecidas, por um eventual papel de regulador indireto do mercado, pela qualidade de atendimento ao cliente, pelas normas gerais de concessão de crédito ou, até, pelo valor das comissões que cobra aos clientes...
Outro caso: a gestão da RTP responde mais vezes ao julgamento da opinião pública pelas despesas que apresenta e pelas receitas que obtém do que pela missão, deveras complexa, que a televisão e as rádios públicas contratualmente têm de cumprir. Essa missão junta necessidades coletivas de serviço público com a obrigação de atingir amplas audiências, tudo isso dependente de um financiamento periclitante. Mas, na verdade, para a "bolha mediática", o que interessa é saber quais os políticos que aparecem no Telejornal e, no final do ano, se há ou não há prejuízos. Esta situação "de facto" e não "de jure" acaba por obrigar a RTP, na prática, a ter de seguir muitos critérios de gestão, de produção e de edição típicos de um operador privado.
Do outro lado desta confusão temos o exemplo dos CTT: a distribuição de correio, que foi privatizada em 2011, presta agora um serviço público cuja degradação de qualidade é evidente e pronunciada (vivo isso quotidianamente), suscitou o fecho de centenas de postos de correios e permitiu o despedimento de milhares de trabalhadores. O resultado financeiro é bom para os acionistas, mas a básica correspondência não-prioritária só nos chega... quando chega.
A missão da gestão da TAP, nacionalizada e na expectativa de uma reprivatização, está também corrompida por essa confusão, similar à de outras empresas. Ela apresentará em breve resultados financeiros positivos, mas falha no serviço: por exemplo, diminuiu a sua oferta no Porto, cobra preços muito elevados para voos com destino à Madeira e aos Açores, serve mal o Porto Santo e países onde há muitos emigrantes portugueses.
A sua gestão, supostamente pública, acha ainda que os contratos com administradores devem estar sujeitos as regras de confidencialidade, remunerados ao nível das maiores concorrentes e com crónico direito a prémios. Despede outros trabalhadores com indemnizações reduzidas, pagas a prestações. Corta fatias de salários dos funcionários que ficam. As entidades reguladoras e o poder político admitem a normalidade de tudo isto - todos eles infetados pelo "vírus" dos critérios dos privados aplicados no público.
Não admira, por isso, que todo o processo de despedimento de Alexandra Reis da TAP reproduza práticas milionárias de gestores de grandes empresas capitalistas - um hábito escandaloso, mesmo no setor privado que, lembro-me bem, quase todos os dirigentes ocidentais juraram ir acabar quando aconteceu a crise financeira internacional de 2008.
Ter empresas públicas dominadas por critérios de gestão privada e empresas privadas a prestarem serviço público tem uma consequência lógica: corrompe o próprio conceito de serviço público. É a mãe de muitas outras corrupções.
*Jornalista
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