terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Portugal | PREMIAR ESPECULADORES, PENALIZAR QUEM NÃO O FOI

Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

Há coisas muito bem-vindas, e que chegam com imenso atraso, naquilo que o governo apresenta como "pacote" para a emergência na habitação. Mas não há um programa - no sentido em que um programa deve ser algo com coerência e clareza e não um conjunto de ideias desconexas, contraditórias e até propiciadoras de mais iniquidade.

AHabitação foi sempre uma prioridade para nós e hoje damos mais um passo importantíssimo na sua consolidação como pilar do Estado Social."

Estas palavras de António Costa são a conclusão de um artigo no Público a 16 de fevereiro, dia do Conselho de Ministros especial sobre habitação, no qual enumera o que os seus governos já tinham feito nesta área.

Sendo verdade que os seus executivos já tinham apresentado medidas para a habitação, é incontroverso que algumas das agora anunciadas denunciam a inconsistência das anteriores, constituindo uma alteração radical de rumo.

Ainda em março de 2018, quando entrevistei a então secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho - que entrara para a nova pasta em julho de 2017 -, a propósito do lançamento da "nova política" para o setor, questionei-a sobre a possibilidade de aplicação de controlos e estabilização de rendas. A resposta foi negativa: "Controlo ou regulação de rendas por via legislativa não. (...) Estamos com um problema de preço porque há pouca oferta e a habitação está em concorrência com outras atividades; se a nossa reação for restringir ainda mais a rendibilidade do setor, a oferta diminuirá mais porque os proprietários vão optar por outra função".

Quando lhe chamei a atenção para o facto de que criar nova habitação demora muito, e de as rendas e o preço das casas estarem - já em 2018 - a subir desenfreadamente, Ana Pinho qualificou essa subida de "insustentável", garantindo: "Nunca subidas destas foram sustentáveis". E, certificando que, ao invés do sentimento implícito nas perguntas do DN, "se não acreditasse que ia a tempo não estava cá a fazer nada", sublinhou a importância de construir indicadores que permitissem "antecipar", em vez de "andar atrás do prejuízo".

Cinco anos depois, um governo com o mesmo primeiro-ministro e, agora, uma ministra da Habitação - Marina Gonçalves - propõe controlo de rendas por via legislativa, limitando a 2% o aumento na renovação do contrato.

Parece pois pacífico concluir duas coisas: o governo continuou a "andar atrás do prejuízo", acabando por perceber que intervir do lado da oferta, colocando casas no mercado, é algo muito mais fácil de anunciar que de fazer. E entretanto a situação agravou-se tanto que se viu obrigado a aceitar o que recusara. É uma conclusão particularmente irritante para quem como eu anda há muito a martelar na ideia da restrição do aumento na renovação do contrato - que a ter sido imposta em 2018 teria obviado ao aumento brutal desde então verificado, decerto evitando que muita gente fosse obrigada a abandonar as casas onde vivia.

O mesmo se pode dizer do que se anuncia quanto ao alojamento local: logo em 2017 deputados do PS apresentaram um projeto de lei que permitia ao condomínio opor-se à respetiva instalação num prédio, mas acabaram por deixá-lo cair por, noticiou-se à época, o PM, assim como os autarcas de Lisboa (na altura o hoje ministro Fernando Medina) e Porto (Rui Moreira) se lhe oporem. "A solução não é matar o turismo", disse na altura António Costa.

Tudo bem, as pessoas podem mudar de ideias, sobretudo quando a realidade se impõe - e se a realidade se impôs. Mais vale tarde que nunca, etc. Mas tais inversões de política em tão curto espaço de tempo relevam sobretudo de uma ausência de pensamento aprofundado sobre as matérias. Ausência de pensamento que, lamento, se reflete nas medidas agora apresentadas - e não apenas pelo facto de estarem deficientemente estruturadas e explicadas.

Há contradições insanáveis e até chocante iniquidade, para além de erros estratégicos evidentes (e não falo do chamado "arrendamento coercivo", que é sobretudo um sinal, e acertado), naquilo que é proposto.

Desde logo começando num princípio estruturante de qualquer política de habitação: aquilo que se considera, para efeitos de apoio aos agregados, insuficiência económica e taxa de esforço aceitável.

Já antes escrevi sobre a iniquidade no que respeita ao contraste entre o acesso a habitação social e o regime das chamadas rendas congeladas; aparentemente nada foi feito para a resolver. Os apoios do Estado ao arrendamento e ao pagamento de prestação de crédito à habitação são anunciados para agregados com rendimentos brutos até ao sexto escalão do IRS e de modo a que a taxa de esforço não ultrapasse 35%. Ao mesmo tempo, as rendas do regime "congelado", cujo ónus recai inteiramente sobre proprietários privados, são calculadas com base em critérios muito mais favoráveis aos locatários. Neste último caso, a taxa de esforço nunca pode ir além dos 25% (mesmo para rendimentos de mais de 3000 euros/mês) e considera-se que a "insuficiência económica" vai até ao sétimo escalão.

Por outro lado, se o governo propõe que o Estado arrende casas a preços do mercado livre - que sabemos estarem altíssimos nas zonas de maior carência (Lisboa, Porto e respetivas áreas metropolitanas) - para depois as subarrendar mais baratas a agregados necessitados, decidiu recongelar para sempre os contratos anteriores a 1990 (quando o mercado de arrendamento foi liberalizado), que têm rendas controladas há décadas.

Diz que o faz para "proteger esses inquilinos". Mas na verdade desde 2006 que uma lei (apresentada pelo então ministro da administração interna António Costa) prevê, para esses contratos, uma vez "descongelados" - e descongelamento nestes casos implicaria, para os inquilinos idosos ou deficientes, uma renda vitalícia tabelada, ou seja, não "livre" - um subsídio de renda no montante da diferença entre o que se considerava a taxa de esforço adequada ao rendimento do locatário e o valor da renda final. Só a ignorância geral sobre estes contratos permite ao governo alegar que fez isto para "proteção" de inquilinos, quando o objetivo é só poupar ao Estado o dito subsídio. Alegar, como fez a ministra, que se vai "estudar uma compensação" para estes senhorios, porque "não se sabe de que rendas se está a falar", é uma piada de bastante mau gosto.

Mas pior: é a mais eficaz das propagandas negativas quanto à confiança que o governo diz querer fomentar nos proprietários.

Após 17 anos de certificações de que "lá mais para a frente" os senhorios com rendas congeladas iam poder receber finalmente algo de parecido com uma renda justa, é-lhes revelado que foi tudo mentira. Como é que se pretende, face a isto, convencer os proprietários em geral de que é boa ideia confiar no Estado, e acreditar que se lhe arrendarem, para que este subarrende, no fim do contrato o locado lhes será devolvido, e igual ao que estava? Ou que podem descansadamente optar por contratos de longa duração, obtendo assim desconto no IRS, porque doravante será o Estado a assumir o pagamento da renda se os inquilinos incumprirem?

E as iniquidades não ficam por aqui. Ao determinar que nas renovações de contrato o aumento de renda é limitado a 2% mais - se bem entendi - atualizações com base na inflação, o governo não distingue na sua proposta entre quem cobra "valores de mercado" e quem aderiu ao programa de apoio ao arrendamento, no qual se fixam rendas 20% abaixo desse mesmo valor.

Poder-se-á dizer que, sendo o objetivo do governo que as rendas baixem o mais possível, não deve preocupar-se com a injustiça que faz aos - muito poucos, diga-se, e como se constata, pour cause - que quiseram participar na "primeira geração" das suas políticas de habitação. Mas uma segunda geração de políticas na qual quem investiu no Alojamento Local pode, até 2030, passar para o arrendamento habitacional fixando a renda que entender obtendo o mesmíssimo prémio - isenção total de IRS - que quem cobra uma renda abaixo do valor de mercado no programa de apoio ao arrendamento é capaz de não ser assim muito de molde a dar o sinal certo.

Premiar quem monetizou a habitação e quem pratica rendas especulativas, fazendo quem optou por um uso socialmente responsável da sua propriedade sentir-se enganado: que fantástica mensagem ao mercado.

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