Viagem à cidade insular italiana. Lá, militares estão em guerra permanente. O inimigo: africanos que remam até a Europa, onde são presos e humilhados. O socorro humanitário é proibido. E o mar traz às praias roupas, sapatos e histórias
Berenice Bento* | Outras Palavras | # Publicado em português do Brasil
No aeroporto de Palermo, na aérea de embarque para Lampedusa, tentava compreender o porquê daquela presença ostensiva de militares. Entre um parágrafo e outro, baixava meu livro e os observava. Eram carabineiros, com mochilas, armas e uniformes. O embarque começou. Ali estavam eles, cerca de 15, todos na fila de embarque. No curto voo de uma hora até a ilha tive como vizinho um militar que portava sua arma como se ela fosse sua prótese identitária, o que só aumentava minha falta de ar.
Durante os 11 dias (de
Ano de 2022. Cheguei a Portugal com um desafio: visitar alguns fronts em que a guerra não declarada da Europa contra os imigrantes está acontecendo. Lampedusa, um desses fronts, é uma ilha no extremo sul da Europa, um dos principais pontos de chegada de pessoas africanas que partem da Líbia e da Tunísia. Os meus objetivos eram acompanhar a chegada de barcos com os imigrantes na ilha e conhecer o local em que são transferidos depois que pisam no continente.
Para limpar minha retina da imagem daqueles militares que estavam no voo, resolvi caminhar pela ilha. Do alto, olhei para as areias de uma praia e desisti de me aproximar porque só conseguia ver sujeira. Desloco-me para outra orla. Outra vez, mais sujeira. Conforme me aproximava, apertei bem o olhar e comecei a identificar melhor a “sujeira”: casacos, sapatos, mochilas, calças, blusas, abrigos. Alguns desses objetos ainda flutuavam na água. Como esses pertences pessoais chegaram até aqui? São dos “inimigos” que se afogaram no mar e deixaram suas presenças fantasmagóricas. Somando-se a esses objetos dispersos, pequenas montanhas de roupas distribuem-se na beira-mar. Parei diante de um monte de roupas. Aproximou-me e vi sapatos desencontrados e novos, com os solados sem marcas de uso.
Ao lado de um sapato feminino, vejo um tênis infantil, com motivos de oncinhas. Imaginei a mãe, segurando a mão da filha e com um sorriso de esperança lhe dizer: “Vamos para Europa, minha filha. Precisamos chegar bem apresentadas”. A filha escolhe o tênis e a mãe paga com o dinheiro contado. A menina põe o sapato de oncinha e entra no barco, guiada pelas mãos da mãe. Desvio meu olhar daqueles sapatos. Olho o movimento das pequenas ondas e vejo uma mochila cheia. Decidi que iria pegá-la. Ali poderia ter objetos que ajudassem a identificar o/a dono/a. Antes que o meu pensamento desse o comando às minhas mãos, um bando de carabineiros se aproximou. Recuei.
Após quatro dias na ilha, os barcos com os sobreviventes começaram a chegar no Cais de Favaloro. Sem permissão para entrar na área, eu tentava entender de longe os procedimentos. As pessoas que atravessam o Mediterrâneo o fazem porque não conseguem ter acesso aos vistos de entrada na Europa. Com as fronteiras fechadas, sobrou o mar. A larga bibliografia sobre as motivações do desejo de migrar aponta uma pluralidade de razões: guerra, fome, perseguição, sonho de conseguir uma vida melhor. A maioria dos imigrantes são de países subsaarianos e quando embarcam já trazem histórias de uma longa peregrinação pela África. Além das fronteiras fechadas da Europa, há um controle minucioso das saídas pelas guardas costeiras da Líbia e da Tunísia, financiadas diretamente pela União Europeia. Para evitar a chegada das pessoas em Lampedusa, essas guardas tentam interceptar, com poderoso arsenal bélico, os barcos e os obrigam a voltar. Muitas vezes, as ONGs que fazem resgates são ameaçadas e impedidas de prestar socorro às pessoas que estão se afogando.
Esse seria o primeiro movimento da guerra contra os imigrantes oriundos de ex-colônias europeias: impedir a saída e a chegada na Europa. Mas como se consegue furar esse cerco? Os barcos de resgate das ONGs humanitárias estão conectados por uma rede informatizada. O coletivo Alarm phone em parceria com o SeaBird (um pequeno avião que sobrevoa o Mediterrâneo) fazem o trabalho de monitoramento. Quando localizam um barco em situação de perigo, emitem um alarme e avisam às autoridades portuárias e aos barcos próximos. Foi assim que o barco Louise Michel conseguiu resgatar 180 pessoas. A guarda costeira italiana só se aproximou depois de horas de contínuos pedidos de ajuda.
O Louise Michel chegou no porto com os sobreviventes e voltou para o mar. Quando retornou no sábado (25/03) com mais 200 pessoas, foi apreendido. As autoridades italianas determinaram que ficaria retido por 20 dias, como penalidade por descumprir um decreto que criminaliza as ONGs que prestam o socorro humanitário. Não foram apenas os resgatados de Louise Michel que chegaram à Lampedusa nos dias em que estive na ilha. Os dados que circularam na imprensa falam de 2.400 pessoas. Era impossível para as autoridades negar o salvamento. Isso seria repetir a tragédia de dias antes no Porto de Crotone, sul da Itália, quando mais de 100 pessoas perderam a vida com o conhecimento do Estado. Nos dias em que estive na ilha, também aconteceram desaparecidos por naufrágios, mas não há dados precisos.
A cada saída de uma fragata eu já sabia: foram fazer resgaste. Saiam para o mar como se estivessem indo para uma guerra bacteriológica. Todos os corpos dos militares italianos são inteiramente cobertos. Algum tempo depois, retornavam com os barcos pesados de pessoas grudadas umas às outras, produzindo uma estranha sensação de massa humana, o que contrastava com os uniformes brancos dos astronautas militares. Depois de horas esperando, os sobreviventes começavam a desembarcar. As pessoas tinham dificuldades de andar, não traziam malas, apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Levantavam-se e caminhavam com dificuldades, alguns amparados por companheiros de travessia. Esses são os inimigos? Sim, seus corpos negros parecem portar o verme que a Europa branca quer aniquilar. O rico Estado italiano não oferece um copo d’água, um prato de comida. Nada. Depois de horas de espera eram transferidos para o “lugar de acolhimento” (hotspot). Legalmente, deveriam permanecer nesses espaços por apenas 48 horas, onde são feitos os cadastramentos iniciais, mas a espera pode levar meses. O passo seguinte seria a transferência para outros centros de detenções espalhados pela Itália, quando aguardam uma definição dos seus destinos: refúgio ou deportação.
Metros antes de chegar ao hotspot pude identificar um cheiro conhecido. Aquele mal odor, uma mistura de urina, fezes, sujeira e comida podre foi reconhecido por meu olfato. Através das grades, vi um amontado de pessoas, em uma fila que se formava e se desfazia, pessoas dormindo ao relento sem nenhum cobertor e muita sujeira. Lembrei: o odor era das prisões brasileiras. Ali, naquele lugar confinado, encontrei o inimigo europeu. O continente que gasta milhões de euros no controle das fronteiras não tem recursos para oferecer uma acolhida humanizada? Para humanos, sim. Outra vez, o não-ser fanoniano se encarnou diante dos meus olhos.
Voltei para o hotel e comecei a escutar uma reportagem sobre o resgate de um corpo de uma mulher negra. A jornalista se compadecia com os esforços dos militares que tentavam levar o corpo para o bote, “que heróis”, dizia. O corpo da mulher estava de bruços, boiava, como a mochila que não tive coragem de abrir. Seus pés estavam descalços. Seus dois braços abertos e esticados para frente, como se estivesse tentando alcançar alguém. Talvez sua filha que perdeu seu sapato de oncinhas.
*Doutora em Sociologia e professora do Departamento de Sociologia da UnB
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