PORTUGAL
Com o fim anunciado dos vistos gold, olhamos para um problema que está longe de acabar: os passaportes gold. O programa de residências distorceu o mercado imobiliário e criou riscos de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Fomos à compra de vistos gold e encontrámos um sistema sem controlos.
Diogo Augusto | Setenta e Quatro *
No final de 2013, em visita à Rússia, Paulo Portas, então vice-primeiro-ministro do governo liderado por Pedro Passos Coelho, anunciava falando dos vistos gold: “Portugal é Schengen”. Em três palavras, ficava transparente o que verdadeiramente estava em causa: acesso livre ao Espaço Schengen.
A concorrência era feroz. Outros países, como Grécia, Espanha ou Irlanda, tinham programas semelhantes e, em plena execução do memorando de entendimento com a troika, e mesmo depois de rebentar a Operação Labirinto, sobre corrupção relacionada com vistos gold, era posição do governo PSD/CDS que Portugal não podia perder este investimento.
Em 2014, meses depois das palavras ditas em Moscovo, surgiram suspeitas ligadas ao programa e Paulo Portas disse na Comissão de Economia da Assembleia da República que não era uma “porta aberta à lavagem de dinheiro” e que seria “insano” recusar o investimento que poderia ir para um dos outros 14 países da UE com programas semelhantes.
Outros países, como Malta, implementaram programas que iam mais longe. Ao passo que os programas de vistos gold dão acesso a uma autorização de residência a troco de investimento, Malta implementou um de passaportes gold. Neste tipo de programas - uma área de negócio particularmente ativa nas Caraíbas -, o investidor tem acesso não só a residência, mas também a nacionalidade.
Do lado da União Europeia, Didier Reynders, Comissário Europeu para a Justiça, alertou recentemente para os riscos destes programas: “Consideramos que a venda de cidadania através de ‘passaportes dourados’ é ilegal face à lei da UE e constitui um risco sério à nossa segurança. Ele abre a porta a corrupção, branqueamento de capitais e elisão fiscal". Dois meses depois, em maio, o Parlamento Europeu, que em 2019 já tinha defendido o fim dos vistos dourados, aprovou um relatório que recomendava à Comissão Europeia uma série de medidas que pusessem cobro ao seu uso para fins ilícitos.
Na verdade, a Comissão Europeia já em setembro de 2022 havia levado Malta ao Tribunal Europeu de Justiça alegando que o seu programa era contrário aos princípios legais da UE. Malta contestou e o processo decorre. As recomendações do Parlamento Europeu ainda não saíram do papel. Dois meses depois, em maio, o Parlamento Europeu, que em 2019 já tinha defendido o fim dos vistos dourados, aprovou um relatório que recomendava à Comissão uma série de medidas que pusessem cobro ao seu uso para fins ilícitos.
Os riscos apontados pela Comissão
Europeia estão essencialmente ligados a estes programas de passaportes
dourados, de natureza diferente dos vistos dourados implementados
A lei da nacionalidade portuguesa prevê a possibilidade de atribuição de nacionalidade após residência no país por um período de cinco anos. No entanto, os detentores de vistos gold são considerados residentes se passarem um total de sete dias em território nacional no primeiro ano e 14 dias nos anos seguintes. Ou seja, ao todo um proponente à nacionalidade portuguesa tem de passar 63 dias em território nacional ao longo de cinco anos.
Em contraste, os estrangeiros no regime geral de autorização de residência têm, segundo a lei portuguesa, a obrigação de não se ausentarem do país por períodos superiores a seis meses consecutivos ou oito meses interpolados. Não é, no entanto, a única desigualdade entre estrangeiros em Portugal: o atendimento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (agência em vias de extinção) tem sido caracterizado por longas filas, permitindo até a formação de redes criminosas que vendem supostas vagas, e longos prazos de espera, com muitos estrangeiros a não conseguirem regularizar a sua vida no país.
Mas, para quem tem capacidade financeira para pagar o apoio de advogados, a situação é bem mais fácil. “Somos capazes de completar de imediato o requerimento [para os vistos gold] em menos de três dias por termos delineado um procedimento express”, respondeu ao Setenta e Quatro uma empresa especializada em negócios imobiliários para obter vistos gold. “Temos várias oportunidades de investimento prontas a transacionar para que possa preencher imediatamente a candidatura.” Um escritório pediu 12 mil euros para tratar do processo para uma família.
A lei que, a 8 de outubro de 2012, entrou em vigor estabelecendo o regime de autorização de residência para fins de investimento era, na prática, uma forma de instituir também um programa de passaportes gold. Dito por outras palavras, trata-se de vender a cidadania portuguesa a troco de investimento a cidadãos que não têm obrigação de passar mais de 63 dias ao longo de cinco anos em Portugal ao fim dos quais se tornam cidadãos nacionais.
Mesmo com o anunciado fim dos vistos dourados e do aperto no controlo da renovação dos atribuídos com base em investimento em imobiliário de habitação, o acesso à naturalização após cinco anos transforma a falta de escrutínio dos investidores num problema que estará para ficar.
UM PROGRAMA SEM MECANISMOS DE CONTROLO
É de assinalar que, segundo a lei da nacionalidade portuguesa, uma vez atribuída a nacionalidade, há apenas duas formas de reverter o processo: por vontade expressa do requerente ou caso se venha a verificar que o processo de aquisição de nacionalidade foi sustentado por documentos ou informações falsas.
Apesar dos riscos associados a programas desta natureza, como os apontados no relatório da Transparency International de 2018, as autoridades portuguesas não dispõem de dados sobre quantos cidadãos adquiriram nacionalidade portuguesa depois de terem entrado no país ao abrigo dos vistos gold.
“A análise dos programas oferecidos por Chipre, Malta e Portugal”, lê-se no relatório, “mostra as formas como as medidas de diligência insuficientes, os poderes discricionários e conflitos de interesses abrem as portas da Europa aos corruptos”.
Isto acontece porque, segundo um porta-voz do Instituto de Registos e Notariado (IRN), “os pareceres que este Instituto recebe do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no decorrer da tramitação de processos para a obtenção da nacionalidade portuguesa, referem apenas (como devem referir) a existência, ou não, de residência legal do requerente em território nacional, sem especificar o fundamento da concessão da respetiva autorização de residência”.
Acresce que, por sua vez, aquando do processo de requisição do visto gold, o SEF também não leva a cabo qualquer tipo de verificação de origem dos fundos ou do perfil de risco do requerente.
“Quanto à problemática da origem ilícita de recursos, esta extravasa a área de atuação e competência do SEF”, disse ao Setenta e Quatro o porta-voz do SEF. “Todo e qualquer pedido ARI (exceto a criação de 10 postos de trabalho) assenta no pressuposto de uma transferência internacional de capitais, obedecendo à legislação em matéria de branqueamento de capitais em vigor, por transposição de Diretivas Comunitárias.”
A Diretiva Comunitária em vigor explicita medidas de diligência a serem aplicadas pelas entidades bancárias quando têm lugar transferências de fundos de fora da UE. Essas medidas de diligência são a confirmação da identidade do ordenante, a identificação dos beneficiários efetivos quando a transferência é ordenada por sociedades, fundos fiduciários ou outros, a apreciação, caso necessário, da natureza do negócio e, finalmente, a vigilância contínua do negócio.
Dito por outras palavras, uma vez que as autoridades portuguesas não aplicam qualquer tipo de medidas de diligência, cabe aos bancos fazê-lo. Segundo informações prestadas pelo Banco de Portugal ao Setenta e Quatro, as entidades bancárias são obrigadas a tomar medidas de diligência limitando-se a confirmar a identidade de quem ordena a transferência e potencialmente verificar a origem do dinheiro, mas apenas do que é usado na transferência em causa.
Ou seja, ao contrário do que acontece com as nações das Caraíbas com programas de passaportes gold ou com Malta, um caso que tem sido duramente criticado pela UE, as autoridades não fazem, em ponto algum, uma análise do grau de risco dos requerentes de autorização de residência e, posteriormente, de nacionalidade. A única verificação que é feita é a levada a cabo pelas instituições bancárias que processam as transferências de capitais e esta não incide sobre a origem da riqueza do indivíduo em causa
Segundo dados do SEF, entre 2012 e 2022, 29.666 indivíduos entraram em Portugal ao abrigo do programa como investidores ou familiares de investidores. Mais de metade são originários dos 30 países com maior risco de branqueamento de capitais.
Os dez países de onde originaram mais pedidos foram, por ordem: China, Brasil, Turquia, África do Sul, Rússia, Vietname, EUA, Líbano, Índia e Jordânia. Até 2023, o programa gerou quase sete mil milhões de euros em investimento, 10,7 milhões em aquisições de imóveis e criou apenas 22 postos de trabalho.
É, assim, impossível determinar quantos dos quase 30 mil que, até dezembro de 2022, tinham conseguido um visto gold requereram nacionalidade. Aliás, mesmo com o anunciado fim dos vistos gold, os seus efeitos durarão muito para além de 2023 com os últimos a conseguir o visto a ter de esperar até 2028 para poderem pedir a nacionalidade portuguesa.
Ainda que com as devidas cautelas, é ainda assim possível identificar algumas alterações nos números de pedidos de naturalização do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN). Como os vistos gold apenas entraram em vigor na reta final de 2012, só em 2013 começaram verdadeiramente a ser processados. Cinco anos depois, em 2018, os pedidos de naturalização em Portugal dispararam de 28.430 para 36.741. A tendência continuou nos anos seguintes: 48.825 (2019), 50.202 (2020) e 70.087 (2021).
Os dados disponibilizados pelo
IRN são limitados e indicam apenas o “top
A haver números que permitam perceber o impacto dos vistos gold no número de naturalizações, eles estarão para lá do top 5 disponibilizado pelo IRN, mas o organismo não respondeu aos pedidos do Setenta e Quatro de partilha desses dados.
É de ressalvar que, mesmo que fosse possível aceder à totalidade dos dados do IRN, seria difícil, se não impossível, distinguir entre os pedidos de naturalização feitos por cidadãos com visto gold e os restantes. O Brasil, por exemplo, ocupa um lugar no top 5 desde 2010, mas é, ao mesmo tempo, o segundo país de onde mais originam pedidos de visto gold. Enquanto as autoridades portuguesas não registarem dados sobre o tipo de autorização de residência dos requerentes de nacionalidade, não será possível ter uma ideia clara destes impactos.
UM RISCO À ESCALA EUROPEIA
Depois de um escândalo no Chipre que envolvia a atribuição de passaportes gold a culpados por branqueamento de capitais, Georgios Pavlidis, professor de Direito Económico Internacional e Europeu na cipriota Universidade de Neapolis, publicou em 2022 um estudo sobre os riscos deste tipo de programas.
Pavlidis fala de uma mercantilização de um direito que proporciona aos mais ricos ferramentas inacessíveis (ou de acesso muito mais dificultado) a quem, apesar de potenciais laços profissionais ou familiares com o país de acolhimento, não tem os mesmos recursos financeiros.
Fala ainda de dois grandes riscos associados aos vistos e passaportes gold. Por um lado, a potencial criação de uma economia desequilibrada, sujeita a bolhas de especulação e dependente de fluxos de capitais extremamente voláteis. E, por outro lado, a abertura de portas a situações agravadas de risco de branqueamento de capitais, corrupção e evasão fiscal.
Contactado pelo Setenta e Quatro, Pavlidis mostrou-se preocupado sobre os riscos deste tipo de programas na União Europeia. “Temo que a situação seja bastante desanimadora”, disse o académico cipriota. “Parece-me que uma proibição ao nível da UE de passaportes dourados e equivalentes (tais como programas de vistos dourados que se transformam em passaportes dourados) seja a única solução razoável para o problema.” Resumindo, qualquer alteração não irá ao âmago dos riscos presentes neste programa.
E um desses riscos é precisamente o branqueamento de capitais, uma das principais preocupações de Pavlidis. “Qualquer cenário onde haja gente rica disposta a gastar dinheiro e governos ansiosos por arrecadá-lo, aumenta o risco de lavagem de dinheiro. Então encontramos, digamos, uma cegueira voluntária, encontramos salvaguardas reduzidas e toda a gente finge que o problema não existe”. O académico referia-se ao momento em que os Estados abraçaram os vistos e passaportes gold: quando têm grandes constrangimentos orçamentais (como aconteceu com a intervenção externa da troika em Portugal) e precisam urgentemente de captar investimentos.
Os riscos associados a estes programas não são estranhos à União Europeia. Em 2019, um relatório da instituição sobre atividades de risco no que diz respeito a branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo dedica-lhes um capítulo próprio.
O relatório afirma que estes programas apresentam “riscos de segurança, incluindo a possibilidade de infiltração de grupos de crime organizado de fora da UE, bem como riscos de branqueamento de capitais, corrupção e elisão fiscal. Tais riscos”, considera ainda o relatório, “são exacerbados pelos direitos transfronteiriços associados a programas de residência e cidadania por investimento”.
O primeiro governo de António Costa, sustentado pelos partidos de Esquerda no parlamento, inscreveu no seu programa o compromisso de rever o regime de autorização de residência para investimento. Em 2021, o executivo aplicou algumas alterações retirando a possibilidade de investimento em imobiliário de habitação em Lisboa e no Porto para dar acesso ao visto dourado, recusando no entanto pôr-lhe um fim definitivo. Um dos seus objetivos declarados era travar a especulação imobiliária e o aumento dos preços da habitação nas duas cidades.
Ainda assim, o investimento nestas cidades não abrandou: dos 808 vistos gold atribuídos entre janeiro e novembro de 2022, apenas 61 foram-no por investimentos fora de Lisboa e Porto. Por um lado, só as propriedades para habitação ficavam de fora, o que significou poder-se continuar a investir em propriedades comerciais ou de turismo. Por outro lado, continuava a ser permitido transferir dinheiro, desde que com um mínimo de 500 mil euros, para fundos de investimento como forma de obter o visto. Os fundos de investimento capitalizados com esse dinheiro podiam então investir em imobiliário de habitação em Lisboa e no Porto.
Sem que se observasse uma diminuição dos preços da habitação, o debate ganhou uma nova consistência em junho de 2022 com a apresentação de uma série de iniciativas parlamentares de revisão ou revogação dos vistos gold. O Partido Socialista e toda a Direita votaram contra as propostas de revogação do regime.
À Esquerda, as propostas foram de revogação do regime dadas as suas fragilidades e riscos, bem como o seu contributo para o aumento da especulação no mercado imobiliário. Já à Direita, as propostas apresentadas iam no sentido de agilizar os processos para diminuir o tempo de espera dos investidores requerentes (PSD) e alargar as áreas possíveis de investimento para a agricultura ou o turismo. Nenhuma das propostas dos partidos de Direita propunha intensificar as medidas de fiscalização da origem da riqueza dos requerentes.
Nas suas intervenções, quer PS, pela voz de Pedro Anastácio, quer PSD, através de Sara Madruga da Costa, não fizeram qualquer referência aos riscos associados a programas desta natureza. Pelo contrário, a intervenção do PSD centrou-se nos problemas enfrentados pelos requerentes de vistos gold e elogiava-os dizendo tratar-se de um “mecanismo muito importante para promover a coesão territorial e corrigir as assimetrias regionais destes territórios”.
No entanto, o Índice Global de Criminalidade Organizada coloca Portugal no 117º lugar num ranking com 193 países. O indicador, da responsabilidade da ONG Global Initiative Against Transnational Organized Crime, identifica os vistos dourados como um dos factores que tornam Portugal vulnerável à criminalidade organizada. “O programa de Vistos Dourados de Portugal é uma porta aberta para indivíduos e corporações corruptos entrarem na Europa e facilita o branqueamento de capitais e a evasão fiscal”, lê-se no relatório.
Há, no entanto, uma outra dimensão: a forma como o discurso de instigação ao medo em relação a imigrantes e requerentes de asilo contrasta com o acesso facilitado e muito pouco controlado para os mais ricos do mundo. É uma ironia que não passa despercebida ao académico cipriota. “Há, obviamente, governos e parte dos media que sobrerepresentam as histórias de imigrantes que nos vêm roubar os empregos,” disse, “mas eles poderiam facilmente apresentar o outro lado da história: os detentores de vistos dourados que nos vêm roubar as casas”.
Os impactos deste programa na oferta habitacional são há muito discutidos. O recente anúncio do governo de pôr termo aos vistos gold veio, precisamente, enquadrado num pacote de medidas destinado a resolver o problema da habitação em Portugal.
Segundo dados do Banco de Portugal, desde 2013, o primeiro ano de pleno funcionamento do programa, até ao terceiro trimestre de 2022, o preço das casas em Portugal mais do que duplicou.
Quando, em 2020, o Governo retirou Lisboa e Porto da lista de destinos possíveis de investimentos para, precisamente, tentar controlar a pressão especulativa no mercado imobiliário, o setor imobiliário protestou dizendo que Portugal arriscava-se a ver os fundos fugirem para outros países.
O NEGÓCIO DOS PASSAPORTES SEFARDITAS
Há um outro processo de atribuição da nacionalidade portuguesa semelhante aos passaportes dourados. Em 1496, D. Manuel I expulsou os judeus de Portugal, à semelhança do que os Reis Católicos já tinham feito em Espanha, e, sob a égide da reparação histórica pelas expulsões, os governos de Portugal e Espanha implementaram uma nova via de naturalização para descendentes de judeus sefarditas. No caso português, o pedido de nacionalidade custa 250 euros.
Neste programa basta que a pessoa requerente da nacionalidade portuguesa tenha um comprovativo de estatuto de pessoa coletiva religiosa, atribuído pela Comunidade Israelita de Lisboa ou pela do Porto, ou um documento que comprove a pertença a uma comunidade sefardita de ascendência portuguesa. Em consequência, criou-se um sector a favor deste programa, lucrando: escritórios de advogados e especialistas em genealogia.
“O número de aquisições de
nacionalidade por pessoas a viver no estrangeiro aumentou de duas mil para 30
mil entre 2011 e
O processo deu, no entanto, origem a investigações judiciais por corrupção, tráfico de influências ou fraude fiscal, o que levou a que houvesse quem tentasse alterar a lei que estipula este programa. Uma dessas pessoas foi a antiga ministra da Administração Interna Constança Urbano de Sousa dizendo, em entrevista ao Público, ter sofrido pressões de figuras do PS e uma onda de contestação, tendo desistido da iniciativa.
"Devido a pressões ao mais alto nível, acabei por recuar duas vezes [em 2020]. Primeiro, deixei cair a exigência de dois anos de residência, substituindo este requisito por uma qualquer conexão relevante a Portugal, que seria depois regulamentada, mas fui também obrigada a desistir desta proposta", afirmou a deputada do PS. O regime, salientou, é “muito mais favorável do que o existente para os imigrantes que já aqui residem”, além de nem exigir conhecimento da língua portuguesa.
O programa esteve ainda envolto em polémica por, ao seu abrigo, o oligarca russo Roman Abramovich, agora sob sanções internacionais por causa da invasão russa da Ucrânia, ter ganho cidadania portuguesa, como o jornalista Paulo Curado, do Público, revelou.
O SENHOR A. PROCURA RESPOSTAS
Em março deste ano, já depois do anúncio do fim dos vistos gold em Portugal no âmbito do pacote de medidas dirigidas ao sector da habitação, contactámos várias empresas que se especializam nos vistos dourados através do investimento no imobiliário. A revogação do programa encontra-se ainda em discussão e, portanto, as imobiliárias continuam a tentar angariar os últimos clientes.
As tentativas de contacto, sempre que ficava claro que se tratava de uma investigação jornalística, terminavam em silêncio imediato. Tendo em conta o interesse público em torno dos processos dos vistos e passaportes dourados, percebemos que o anonimato era a única forma de termos acesso a informação que considerámos essencial e de interesse público.
No e-mail inicial, anónimo, apresentámo-nos como um cidadão da Jordânia, o Sr. A., com cargos políticos, que desejava obter um visto dourado em Portugal com vista a, mais tarde, obter cidadania. O Sr. A. explicou também, desde o início, que as coisas no seu país de origem funcionam de uma certa maneira e que grande parte da sua riqueza estava em nome de empresas offshore.
Para o Sr. A., a grande questão era até que ponto ele teria de apresentar documentos de justificação da sua riqueza. Teria de declarar os bens que tinha em sociedades offshore? As autoridades portuguesas iriam verificar isso? Ou, por outro lado, podia esconder das autoridades portuguesas informação sobre a origem da sua riqueza?
Uma firma de advogados multinacional, líder na área do direito de imigração, respondeu com clareza: ”A melhor forma de ver o que seria possível seria nós fazermos um processo de due diligence sobre si baseado em dados publicamente acessíveis. A informação que obtivermos será a mesma que qualquer governo obterá na sua própria pesquisa”.
Ora, de facto, não é possível verificar a propriedade de sociedades offshore em muitas jurisdições do mundo porque é parte central da atratividade dessas jurisdições proporcionar esse segredo. Mas as autoridades portuguesas fariam, sequer, essas verificações no momento da apreciação do visto gold ou no momento posterior de apreciação de um pedido de naturalização?
Falámos com o parceiro sénior de uma grande firma de advogados sediada em Lisboa (apresentado pela Directora de Vendas e Marketing de uma imobiliária portuguesa especializada em vistos gold).
Por e-mail, disse: “Por favor note que ser uma pessoa politicamente exposta (PEP) não é uma condição que seja avaliada no processo de requisição de residência ou cidadania. (…) As condições que podem impedir alguém de obter residência ou cidadania estão sobretudo ligadas à existência de um cadastro criminal.” E rematou: “Por favor note que as autoridades não solicitam informação sobre a sua vida financeira”.
Perguntámos, para confirmar, se as autoridades portuguesas não olhariam para a informação financeira do Sr. A. mesmo quando, daí a cinco anos, ele fizer o pedido de cidadania. “Sim, está correcto”, respondem.
Outra empresa especializada em imobiliário para a obtenção de vistos dourados, esta com escritórios em Portugal e no Dubai, fornece a mesma informação quando o Sr. A. diz que quer esconder das autoridades portuguesas a origem da sua riqueza: “O programa exige que o dinheiro venha de fora [da UE] com a finalidade de ser investido e que tenha o registo criminal limpo”.
Mais tarde, perante a insistência sobre se será preciso facultar informação sobre a origem da riqueza, a empresa com escritório em Portugal garante perentoriamente: “não precisa de facultar informação nenhuma”.
O sentimento de urgência é visível depois do anúncio do governo em acabar com os vistos gold. Uma imobiliária, entre críticas ao governo por ter feito um “grande anúncio” sem primeiro falar com as partes interessadas, diz que é possível avançar com o negócio sendo que, se as alterações legislativas impedirem o acesso ao visto, o dinheiro será reembolsado.
Outra imobiliária diz: “Sim, está a discutir-se o fim dos vistos gold, mas [o programa] ainda está válido e, se os seus fundos estiverem disponíveis, podemos fazer já o pedido em menos de três dias uma vez que implementámos um procedimento express”. E acrescenta: “Temos múltiplas oportunidades de investimento prontos para serem transacionadas para que possa completar a sua candidatura imediatamente”.
OS VISTOS GOLD VÃO ACABAR, MAS O PROBLEMA VAI CONTINUAR
Ainda que vá por diante a promessa do governo de pôr fim ao programa, o risco associado à entrada pouco controlada destes cidadãos permanecerá. Isso mesmo disse-nos Karina Carvalho, diretora executiva da Transparência Internacional Portugal (TI). “Pode ter sido autorizada residência a indivíduos e familiares de indivíduos que enriqueceram ilicitamente, mas também porque as pessoas que compraram um vistos gold desde 2012 podem já ter adquirido a cidadania, estar em vias de a obter ou ainda vir a requerê-la”, disse a dirigente. “Ou seja, de casas de meio milhão de euros no centro de Lisboa nascem um sem número de novos cidadãos com passaporte português e livre acesso à Europa e Espaço Schengen, pouco ou nada se sabendo sobre a origem do seu dinheiro e a natureza dos seus negócios.”
Ao Setenta e Quatro, a Comissão Europeia declarou ver com bons olhos o anúncio do fim do programa português. O porta-voz da Comissão disse que “estes programas dão origem a múltiplos riscos: segurança, branqueamento de capitais, evasão fiscal e corrupção, quer para o Estado-Membro em causa, quer para a União como um todo”.
No entanto, e apesar de reconhecer os riscos associados à compra de residência e de cidadania, não se pronunciou em relação à ausência de medidas de controlo destes riscos por parte do Governo português aquando da atribuição do visto nem na eventual atribuição da nacionalidade.
A verdade, no entanto, é que os estrangeiros que fizeram pedidos vistos gold até 16 de fevereiro deste ano vão poder pedir a nacionalidade até 2028, caso respeitem as exigências mínimas para o fazerem. Os pedidos a partir dessa data ficarão congelados, como consta da proposta de lei apresentada pelo executivo.
Do lado do Governo, o Setenta e Quatro deparou-se com um muro de silêncio: não respondeu às nossas perguntas até ao fecho da edição. Uma situação que, salienta Karina Carvalho, demonstra a clara necessidade de prestação de responsabilidades . “Acabar com os vistos gold não liberta os sucessivos governos das suas responsabilidades quanto a terem mantido o esquema ativo durante anos, e absolutamente sem qualquer controlo”, disse. “Não somos nós que o dizemos, mas o SEF, que já por diversas vezes assumiu que nunca desenvolveu qualquer tipo de diligência extra, monitorização ou avaliação. Se o SEF não a fez, alguém no Governo tem de a fazer, e com urgência.”
Entre as oito perguntas feitas ao Governo estavam o porquê de só agora, depois de anos de avisos vários de organismos, se punha fim ao programa dos vistos gold e porque é que nunca foram implementadas medidas de diligência para minimizar o risco de branqueamento de capitais. Perguntámos ainda se este acesso facilitado à cidadania preocupava o executivo, mas também, agora que terminado o programa, os indivíduos que já tinham obtido visto gold e que poderão ainda vir a obter cidadania portuguesa.
A responsabilidade, no entanto, reparte-se e a Transparência Internacional chama a atenção para a ação dos restantes intervenientes. Para a organização não governamental que se dedica a combater a corrupção, a “lei determina que imobiliárias e escritórios de advogados são entidades obrigadas a deveres especiais de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo”. “No caso das imobiliárias, o IMPIC [Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção] é responsável por garantir a aplicação da lei e a sua fiscalização. Quem se dedica a apoiar esquemas de lavagem de dinheiro deve ser punido exemplarmente. Mas também falta muita formação e monitorização. Além de quem regula, também as ordens profissionais e associações dos diferentes setores deviam justificar-se perante as falhas dos seus membros”, conclui.
Enquanto a Europa está de olhos postos em imigrantes e refugiados que atravessam o Mediterrâneo (mais de 17 mil morreram a tentar desde 2014), os programas de vistos gold abriram as portas aos mais ricos, numa clara diferenciação entre estrangeiros com e sem capital. “Poder-se-á dizer que os imigrantes constituem uma ameaça à segurança porque a comunicação social nos diz que há terroristas entre eles”, disse o académico cipriota Georgios Pavlidis. “Para mim, a ameaça à segurança de quem lava dinheiro e de oligarcas que entram sorrateiramente na nossa sociedade é maior. Não todos, mas uma grande parte deles constitui um maior risco à nossa segurança do que todos os imigrantes juntos.”
*A ilustração de capa é da autoria de Rafael Medeiros.
O Setenta e Quatro precisa de leitoras e de leitores, de apoio financeiro, para continuar. Em troca damos tudo o que tivermos para dar. Acesso antecipado às edições semanais e às investigações, conversas e publicações exclusivas, partilha de ideias e muita boa disposição.
APOIAR O SETENTA E QUATRO -- CONTRIBUIR AGORA
Sem comentários:
Enviar um comentário