sexta-feira, 30 de junho de 2023

Angola | ANTES DE ESMAGAR O COLONIALISMO -- Artur Queiroz

 Agostinho Neto Derrotou a Morte no Mediterrâneo

Memória de uma Carta Dirigida ao Jornalista Veiga Pereira

Artur Queiroz*, Luanda

Hoje, dia 30 de Junho, faz precisamente 61 anos que Agostinho Neto e sua família, Maria Eugénia (esposa), Mário Jorge e Irene Alexandra (filhos ainda bebés), se evadiram de Lisboa escapando à vigilância da polícia política e à repressão fascista. Deixo-vos um trabalho que revela o primeiro Presidente da República Popular de Angola num retrato de corpo inteiro. Comecei pelo princípio do mundo.

O jornalista angolano Carlos Veiga Pereira, um símbolo do Jornalismo de Língua Portuguesa, era amigo de Agostinho Neto. Conviveram em Lisboa quando o futuro Presidente da República Popular de Angola foi concluir o curso de Medicina, que tinha começado em Coimbra. Teve uma carreira brilhante. Foi director da agência noticiosa portuguesa ANOP e director de informação da RTP. Também chefiou a redacção do Diário de Lisboa e do Jornal Novo. Tive a honra de trabalhar com ele.

No início da sua carreira profissional foi perseguido pela PIDE e exilou-se em Paris com outros patriotas angolanos e antifascistas portugueses. Esteve preso com Agostinho Neto por defender a independência das colónias portuguesas. No exílio (esteve mais de dez anos exilado…) manteve sempre contactos com o seu amigo e camarada Agostinho Neto. Carlos Alberto de Veiga Pereira nasceu em Março de 1927 no Sumbe (antiga cidade de Novo Redondo). Faleceu em Lisboa no dia 29 de Dezembro de 2018, com 91 anos.

Numa das cartas que recebeu de Agostinho Neto, expedida de Leopoldville (Kinsasa), diz que o seu amigo está a receber uma carta “do futuro Presidente de Angola”. Pela leitura do documento histórico, percebe-se que Veiga Pereira e outros jovens angolanos exilados em Paris querem juntar-se à luta armada de libertação nacional. Leiam uma passagem da carta manuscrita por Agostinho Neto, cheia de amarga ironia:

“Esta sanzala africana em que nos metemos é o mais espantoso dos mundos!

1 – Sou suspeito de ter fugido de Portugal com o auxílio da PIDE (Holden e Viriato da Cruz)

2 – Sou suspeito de contactos com o governo fascista de Salazar uma vez que a minha mulher (BRANCA!) escreve para a minha sogra que, por sua vez… compreendes? (Holden mais Viriato mais Mário)

3 – Sou suspeito de querer favorecer portugueses em Angola, por advogar a presença de angolanos brancos na luta (Holden mais Viriato mais Mário mais muitos anónimos). 

4- Sou suspeito de manter contactos directos com Salazar… Eu ainda não percebi porquê.

Nesta situação só um imbecil como eu continua a defender a “vossa” participação na luta.

Mas garanto-te que (neste particular) a vitória não vem longe e antes voarei a Paris para falar convosco.

Acredita que eu desejo-o com todas as minhas forças e lutarei sempre por aquilo que me parece justo.

Um abraço do Agostinho Neto"

Um esclarecimento. O jornalista angolano Veiga Pereira era mestiço. E Viriato da Cruz defendia que brancos e mestiços não podiam (excepto ele que também era mestiço) ser militantes do MPLA na primeira linha. Apenas podiam desempenhar serviços auxiliares, como apoio aos refugiados angolanos na República Democrática do Congo. 

O aspecto mais grave desta carta de Agostinho Neto a Veiga Pereira tem a ver com o ponto primeiro da carta: ”Sou suspeito de ter fugido de Portugal com o auxílio da PIDE (Holden e Viriato da Cruz)”. Mário Pinto de Andrade um dia contou como foi possível tirar Agostinho Neto de Lisboa, onde vivia em regime de prisão domiciliária (Residência Vigiada como diziam os carcereiros colonialistas).

Em 1962, Agostinho Neto foi colocado no regime de “residência vigiada” pela PIDE devido a um movimento internacional de políticos, artistas e intelectuais que exigiam a libertação do futuro Presidente da República Popular de Angola. O comité director do MPLA elegeu Neto seu Presidente de Honra. A direcção do movimento estava exilada desde o famoso “Processo dos 50”.

No início de 1962, Mário Pinto de Andrade, presidente do MPLA e Viriato da Cruz, secretário- geral, foram a Moscovo pedir mais apoio para a luta armada de libertação nacional. O maoista Viriato já nesta altura tinha pelo menos duas caras e vestiu a farda de oportunista. Na capital soviética tiveram uma reunião com Álvaro Cunhal, líder do Partido Comunista Português. 

Segundo relatou mais tarde Mário Pinto de Andrade, Cunhal ofereceu a solidariedade e o apoio dos comunistas portugueses à luta de libertação de Angola. O que precisam? Mário Pinto de Andrade respondeu: Precisamos que nos ajudem a tirar Agostinho Neto de Portugal. Viriato da Cruz confirmou o pedido.

Viriato da Cruz, maoista de faca na boca, quando Agostinho Neto chegou a Leopoldville (Kinshasa), após uma passagem por Rabat, pôs a circular que Agostinho Neto saiu de Portugal ajudado pela PIDE, polícia política do regime colonialista e fascista! 

O homem que pediu a Álvaro Cunhal que ajudasse à evasão do Presidente de Honra do MPLA, enveredou pelo caminho da intriga e da calúnia. Elegeu Neto como seu principal inimigo porque defendia que a luta armada de libertação nacional tinha tudo a ganhar se o MPLA conseguisse nobilizar mestiços e brancos. Porque estes, ao pertenceram à classe dominante, tiveram acesso à educação primária, média e superior, o que não acontecia com a esmagadora maioria dos angolanos fossem ou não militantes do MPLA.

Em 1962, Viriato da Cruz disparou contra mestiços e brancos do MPLA. Em 1972 (dez anos depois) Daniel Chipenda repetiu a dose mas incluiu na exclusão os angolanos oriundos do Norte! Em 27 de Maio de 1977 foi a vez dos golpistas de Nito Alves. Neto tinha que ser derrubado porque o seu governo tinha muitos mestiços e brancos! Andaram a estudar nas escolas médias e superiores. Foram oficiais e sargentos no cumprimento do serviço militar obrigatório. Eram médicos, engenheiros, professores, arquitectos, profissionais de todas as artes e ofícios.

Em 1976, poucos meses depois da Independência Nacional, Nito Alves vociferou, esganiçado, da varanda do edifício do Governo Provincial de Luanda: “Angola só é independente quando os mulatos e brancos andarem a varrer as ruas!” Chegou demasiado tarde. Aos sábados as brigadas de limpeza das vilas e cidades incluíam voluntários de todas as cores. Até ministros! Os alfabetizados participavam nas brigadas de alfabetização, depois de dias duros de trabalho. Havia pouca mão-de-obra…

E hoje? Até me tremem as mãos. Não vou responder. Mas sempre digo que estamos a afastar-nos dramaticamente do Manifesto do MPLA e da Matriz Revolucionária do 4 de Fevereiro. Tremo só de escrever que muitos mestiços e brancos foram barbaramente reprimidos pelos colonialistas. Vejam quem foram os condenados no “Processo dos 50”.

O maoista de faca na boca e poeta sem obra, Viriato da Cruz, esqueceu que todos podiam ser militantes do MPLA, independentemente da sua cor, ideologia e religião. Felizmente, como se depreende pela parte da carta que transcrevo, Agostinho Neto triunfou e no dia 11 de Novembro de 1975 proclamou ante África e o Mundo, a Independência de Angola. Como sempre, teve razão antes do tempo. Como sempre, a sua clarividência conduziu-nos a mil vitórias e  ao ponto em que estamos. Muito obrigado Camarada Neto. Muito obrigado ao MPLA.

Leiam agora o relato de Jaime Serra, dirigente do Partido Comunista Português, que organizou a evasão de Agostinho Neto. Dias Lourenço, também dirigente comunista, e Arménio Ferreira, médico cardiologista, amigo e camarada de Agostinho Neto, militante do MPLA, também participaram na organização da fuga clandestina:

Aquele que veio a ser o primeiro presidente da República Popular de Angola, o Dr. Agostinho Neto, saiu clandestinamente de Portugal, onde estava com residência vigiada pela PIDE, no dia 30 de Junho de 1962, num pequeno iate. Foi ajudado pelo Partido Comunista Português.

Agostinho Neto viveu em Portugal durante bastante tempo. Aqui estudou e iniciou a luta pela libertação do povo angolano, tendo-se tornado num dos mais prestigiados dirigentes do MPLA - Movimento Popular de Libertação de Angola. Foi perseguido pelo regime fascista e esteve várias vezes preso.

Em 1961, face ao grande movimento de solidariedade nacional e internacional, foi libertado da prisão e desterrado para Cabo Verde, onde esteve com residência fixa.

A 4 de Janeiro de 1961, com o assalto às cadeias de Luanda organizado pelo MPLA, dá-se início à luta armada que, ao cabo de 13 longos anos de guerra colonial, havia de conduzir à independência de Angola.

Também na Guiné-Bissau havia começado a luta de guerrilha sob a direcção do PAIGC, o partido de Amílcar Cabral, ao qual pertencia também o destacado militante Vasco Cabral que, tal como Agostinho Neto, organizava para a luta os seus compatriotas que viviam em Portugal.

Foram estes dois destacados dirigentes da luta libertadora dos seus povos, oprimidos pelo colonialismo salazarista, que o Partido Comunista Português, fiel aos princípios internacionalistas que o guiam, ajudou a sair clandestinamente de Portugal.

Com esse objectivo, e por intermédio de um militante do Partido, o camarada José Nogueira, foi comprado um barco adequado para o efeito, um pequeno iate de recreio a motor.

Como o José Nogueira era oficial da Marinha de Guerra, embora dos serviços administrativos, foi fácil a legalização do barco, assim como a sua manutenção em estado operacional nas próprias instalações da Armada, na Doca da Marinha de Paço de Arcos.

Agostinho Neto havia, entretanto, regressado de Cabo Verde, passando a viver em Lisboa com a mulher e dois filhos pequenos em situação de residência fixa, sendo obrigado a apresentar-se regularmente na sede da PIDE.

Deve dizer-se que, ainda quando Agostinho Neto se encontrava em Cabo Verde, o PCP mandou um seu militante àquele arquipélago com o objectivo de estudar a hipótese de compra de um barco por meio do qual Agostinho Neto pudesse passar para África.

A sua súbita transferência para Portugal inviabilizou esse projecto.

Nos finais do mês de Junho, estando tudo preparado tecnicamente para a saída de Portugal por via marítima da família de Agostinho Neto e de Vasco Cabral, a Direcção do Partido incumbiu-me de dirigir esta operação.

Foi tudo preparado para que o embarque se fizesse na Doca do Bom Sucesso, em Pedrouços, onde o iate ia por vezes atracar ou estacionar para estudar o ambiente.

Na tarde de sábado de 30 de Junho de 1962 cheguei à referida doca, onde estacionavam muitas outras embarcações, entrando em contacto com o tenente José Nogueira, que entretanto acostou o nosso iate ao molhe norte da doca. Inteirei-me de que tudo estava em ordem para a viagem, desde o combustível necessário até aos mantimentos para cinco adultos e duas crianças de tenra idade.

À hora combinada apareceram todos acompanhados pelo camarada Dias Lourenço que organizou esta parte da operação ajudado pelo Dr. Arménio Ferreira (médico cardiologista), figura destacada do movimento anticolonial, cuja ajuda foi preciosa no complicado processo da saída da família Neto da casa que habitava, conhecida pela PIDE, para uma situação de clandestinidade, a partir da qual se deu início à saída também clandestina.

Tudo isto foi levado a cabo num espaço de tempo muito curto, antes que a PIDE se apercebesse da mudança.

Dias Lourenço ficou à distância, sentado num cabeço da muralha ali existente, observando toda a operação de embarque.

Este fez-se calmamente como se tratasse de uma qualquer família burguesa que vai dar um passeio pelo rio, ou fazer uma pescaria na costa num fim-de-semana. Tudo isto, ali mesmo nas “barbas” da Guarda Fiscal, que tinha próximo um posto de vigilância da fronteira marítima, então à sua guarda. 

Após o embarque dos “passageiros” e da sua volumosa bagagem, e depois de eles receberem de Dias Lourenço os comprimidos para o enjoo que haviam encomendado, manobrando no emaranhado de embarcações estacionadas dentro da Doca do Bom Sucesso (nome que foi para nós um bom augúrio), saímos para o rio Tejo. A partir daqui procurámos o mais rápido possível alcançar o mar alto.

Com toda a gente mais calma, descemos em direcção ao sul, sempre com as belas praias da costa à vista. Contornando o cabo de São Vicente, chegámos próximo de Olhão e lançámos ferro numa pequena enseada, onde descansámos até ao dia seguinte.

Manhã cedo, levantámos ferro, deixando para trás a costa algarvia e entrando na Baía de Cadiz, na costa espanhola, já ao fim da tarde.

Na zona do cabo Trafalgar esperavam-nos as maiores dificuldades desta parte da viagem, com um mar muito agitado, em virtude das fortes correntes marítimas que entram e saem do Mediterrâneo.

Para as crianças, e sobretudo para a mulher de Agostinho Neto, foram horas de grande angústia. Os homens aguentavam como podiam o enjoo. Como eu já conhecia o fenómeno por ali ter passado cinco anos antes, procurava encorajá-los.

A violência do mar, o vento e as correntes marítimas impediam-nos de avançar com a rapidez que desejávamos, ficando por largos momentos no mesmo local, com a hélice a trabalhar fora de água.

Ultrapassado finalmente o cabo de Trafalgar, encontrámo-nos numa bonita e tranquila baía, também já minha conhecida, onde lançámos ferro e fizemos o balanço da situação.

Com a violência do mar tínhamos perdido um dos dois salva-vidas de que dispúnhamos. Os “turcos” que o suportavam, uns fortes tubos de ferro colocados à popa do iate, ficaram dobrados quase em ângulo recto devido à violência do mar a que foram sujeitos, juntamente com o barco salva-vidas, que acabou por desaparecer nas ondas que caíram sobre nós na passagem do Trafalgar.

Havíamos também perdido uma âncora, arrastada pelo temporal. Tudo o mais, o pessoal, o combustível, os mantimentos, a bagagem, haviam-se mantido a salvo.

O medo e o choque emocional de uma mãe que leva consigo dois filhos pequenos abalaram profundamente a moral da Maria Eugénia, a ponto de o Agostinho Neto ter sugerido a hipótese de desembarcar em qualquer local da costa espanhola. Tal hipótese foi discutida e posta de lado.

Com a ditadura franquista instalada em Espanha, onde a perseguição aos comunistas era tanto ou mais violenta que em Portugal, era quase certo que em caso de prisão seríamos todos entregues a Salazar.

Além disso, o pior estava passado e só era necessário um pouco mais de coragem e paciência. Estes e outros argumentos acabaram por convencer todos de que não havia outra saída senão continuar a viagem.

Passámos a noite calmamente nesse local e, na manhã seguinte, avançámos junto à costa até próximo da Baía de Tarifa, já no estreito de Gibraltar.

A partir daqui, com o mar de feição, navegámos à bolina em direcção à costa marroquina, atravessando o Estreito calmamente. Por volta do meio-dia alcançámos a Baía de Tânger.

Como eu já conhecia a topografia da Baía, ancorámos num sítio apropriado, a cerca de cem metros da praia. Com a embarcação salva-vidas a remos, começámos por transportar a mulher e as crianças para a praia, depois as bagagens, que eram bastantes, e finalmente o Agostinho Neto e o Vasco Cabral.

Em terra firme, eles acabaram por se desembaraçar. Chegaram à fala com as autoridades marroquinas, identificando-se como combatentes africanos, bem conhecidos internacionalmente, tendo sido encaminhados para o seu destino, segundo soubemos posteriormente.

Pelo nosso lado, cumprida a tarefa, tratámos imediatamente do regresso a Portugal.

Nesse mesmo instante saímos da Baía de Tânger e pusemo-nos a largo.

Como dispúnhamos de uma bússola, traçámos o rumo da viagem de regresso, de modo a alcançar a costa algarvia directamente, sem os contornos da costa e as demoras da viagem de ida.

Só a nossa ignorância das lides do mar nos levou à aventura de percorrer directamente 140 milhas marítimas no alto mar, sem terra à vista, numa embarcação daquele género e com uma bússola rudimentar. Recordo que o José Nogueira era oficial da administração naval e eu era um leigo na matéria.

Nas primeiras horas tudo bem. Porém, já bem no mar alto, começaram os nossos problemas.

Com o mar já bastante alteroso, encravou-se a roda do leme, ficando o barco à deriva, fustigado pelo temporal.

Pelo que me apercebi, dado que a estrutura dos barcos não me era estranha, pelo facto de a minha profissão estar ligada à construção naval, a avaria situava-se dentro da caixa da roda do leme.

A única solução que me ocorreu na emergência foi destruir à machadada a referida caixa para chegar ao local da avaria, o que foi feito, embora com algum desgosto do José Nogueira, que tinha orgulho naquela bonita caixa de mogno envernizada...

Solucionada a avaria, a viagem continuou pela noite fora, com o mar cada vez mais violento, exigindo esforços tremendos para segurar a roda do leme na posição correcta.

Com as ondas de mais de cinco metros de altura a caírem-nos em cima, era difícil aguentar mais de meia hora seguida ao leme.

Alternávamo-nos constantemente, eu e o José Nogueira, procurando, cada um de nós, descansar um pouco nos curtos intervalos. Valeu-nos bastante, na ocasião, uma garrafa de vinho do Porto que havia a bordo, para reanimar as forças periodicamente. Finalmente, pela madrugada do dia 3 de Julho, após uma noite tormentosa, o mar mudou subitamente para uma relativa calmaria. Interrogámo-nos mutuamente sobre o significado de tal facto.

Por feliz acaso, avistámos ao longe uma grande embarcação que nos pareceu ser um barco de pesca de arrasto.

Através de um megafone existente a bordo, entrámos em comunicação com a tripulação do referido barco, que verificámos ser espanhola. Fomos por eles informados que nos encontrávamos a algumas milhas ao sul de Olhão, na costa algarvia.

Esta informação encheu-nos de alegria e passadas algumas horas ancorávamos junto à costa portuguesa, onde fizemos uma pescaria de robalos e com eles uma boa caldeirada.

Depois do almoço retomámos a viagem de regresso a Lisboa, tendo na noite desse dia alcançado o porto de Sesimbra, onde ancorámos até à manhã do dia seguinte. Entrámos na barra do Tejo na manhã do dia 4 de Julho de 1962.

Dirigimo-nos directamente para a Doca da Marinha, em Paço de Arcos, onde o barco foi entregue aos cuidados do marinheiro que habitualmente desempenhava esse serviço, o qual ficou bastante espantado perante o estado lastimoso que o barco apresentava, meio desmantelado. Mal sabia o dito marinheiro que estava ali o resultado de uma viagem de mais de 600 milhas em quatro atribulados dias.

Mas não só o barco sofreu as consequências. Pelo meu lado, passados oito dias, quando caminhava na rua ainda me parecia que o chão balouçava à minha volta.

O PCP havia cumprido, com êxito, uma missão de ajuda internacionalista de grande importância.

Antes deste depoimento foi publicado outro, do comandante José Nogueira, no livro “AGOSTINHO NETO UMA VIDA SEM TRÉGUAS”. Este militante comunista, oficial das Marinha de Guerra Portuguesa, foi trabalhar com Agostinho Neto após a Independência Nacional. O Fundador da Nação nunca esqueceu os amigos e camaradas. Ficou com o líder da Revolução Angolana até ao seu falecimento em Moscovo, no ano de 1979, três anos e nove meses depois de iniciar o seu mandato.

O livro tem uma história. Por razões que desconheço, ficou encalhado na gaveta de quem assumiu a sua produção. O empresário Carlos São Vicente pediu ao pai, Jornalista Acácio Barradas, que desencalhasse a obra. Uma noite, alta madrugada, recebi um telefonema do meu mestre:

- Kitó, vamos fazer um livro sobre Agostinho Neto? Já convidei o Moutinho Pereira e ele aceitou. Se tu aceitares vamos para a frente.

Já não fui dormir. Fiquei logo a imaginar o plano de edição, as peças, a paginação. Acácio Barradas era o arquitecto da notícia na página. Ninguém como ele atingiu a perfeição na organização do espaço. Ninguém mais do que ele conseguiu dar uma dimensão estética e plástica à notícia.

Uma das minhas contribuições foi entrevistar a nossa Mamã Maria Eugénia Neto. E escolhi para título esta frase: “O meu marido teve uma vida sem tréguas”. Acácio Barradas telefonou-me (sempre fora do relógio, quando a cidade dormia…) e anunciou:

- Kitó já temos título para o livro: “AGOSTINHO NETO UMA VIDA SEM TRÉGUAS”. Não estava a homenagear-me. Estava a citar-se. Porque tudo o que sei das técnicas de ancoragem, aprendi com ele. Dizia que o título era o resumo da notícia. Quanto mais resumido melhor. O título perfeito só tem uma palavra! Foi assim que me tornei especialista em ancoragem. Produtor de títulos resumidíssimos.

O outro parceiro de Acácio Barradas no livro AGOSTINHO NETO UMA VIDA SEM TRÉGUAS, Moutinho Pereira, um dos maiores jornalistas angolanos de sempre, escreveu:

“A independência de Angola em relação aos grandes poderes externos voltaria a ser posta em questão na primeira visita de Estado que Neto realizou, em Outubro de 1976, à URSS, então liderada por Leonid Brejnev, e à Bulgária de Todor Jivkov. No regresso, Iko Carreira confidenciou a Carlos Alberto Van-Dúnem que 'as coisas não correram lá muito bem'. Numa reunião com o senhor do Kremlin, 'abandonou a reunião, refugiou-se nos seus aposentos e jamais quis qualquer contacto'. 

Em ocasião propícia, Mendes de Carvalho, na presença do diplomata Carlos Amaral, que dá este testemunho, pergunta 'Camarada Presidente, segundo nos constou, parece que as conversações na URSS não correram bem? O Presidente Neto (...) fixou-nos por alguns segundos e disse em tom severo e peremptório: 'Enquanto o Povo Angolano confiar em mim, eu não serei lacaio de ninguém, nem tão-pouco corrupto.' 

Neto era, sem dúvida, um homem de esquerda, mas não era um homem dos soviéticos."

Termino reproduzindo a sinopse do livro AGOSTINHO NETO UMA VIDA SEM TRÉGUAS. Quem não leu a obra fica a conhecer o plano de edição:

Trinta anos depois da independência de Angola, o seu principal obreiro é evocado numa obra que desvenda muitos aspectos da sua personalidade excepcional. Ao longo das 222 páginas do livro “Agostinho Neto, uma vida sem tréguas”, o fundador da Nação Angolana ressurge do passado com os contornos que o tempo esculpiu, sendo evocado por uma vasta e diversificada plêiade de jornalistas, historiadores, políticos, velhos condiscípulos, correligionários, familiares, amigos e admiradores.

Sendo múltiplas as revelações que este livro apresenta, poder-se-ia perguntar a cada um dos seus potenciais leitores: sabe quem foi Agostinho Neto? Ou julga que sabe? Porque seja qual for o grau do conhecimento individual dessa figura ímpar da História de Angola, por certo que este livro irá desvendar-lhe muitos aspectos novos da sua vida e da sua obra como homem e como cidadão, como poeta e como político.

Esta edição reúne textos e imagens que reconstituem a vida e acção de Agostinho Neto, fazendo como que a sua biografia, à luz de testemunhos, fotografias e documentos que, em muitos casos, o apresentam sob facetas ignoradas ou pouco conhecidas, nomeadamente sobre a sua juventude em Angola e em Portugal, as vicissitudes que enfrentou como estudante, as prisões que sofreu, o julgamento de que foi réu no Tribunal Plenário do Porto, as circunstâncias do seu noivado e casamento, o desterro em Cabo Verde e o episódio rocambolesco da fuga de Lisboa para Tânger, antecedendo o capítulo final sobre a luta acérrima que teve de travar para a Independência de Angola, a actividade que desenvolveu como Presidente do MPLA e, por último, o papel que desempenhou como Presidente da República Popular de Angola.

O retrato biográfico de Agostinho Neto - retrato que foi confiado a três jornalistas e não a historiadores, mas nem por isso menos rigoroso nos critérios de investigação -, é ainda enriquecido com o testemunho de quem melhor o conheceu e apoiou, ao longo de uma vida intensamente vivida (e muitas vezes sofrida) em comum: a escritora Maria Eugénia Neto, sua viúva. Eugénia Neto participa nesta edição com uma oportuna entrevista em que recorda não apenas o homem da sua vida, mas põe os pontos nos is sobre um conjunto de adulterações históricas e também de manobras hodiernas que visam eliminá-lo da memória colectiva.

A par do homem e do político, também o poeta Agostinho Neto - sem dúvida dos maiores de Língua Portuguesa em todo o continente africano - merece a devida atenção, num ensaio especialmente elaborado por um dos mais conceituados mestres de literaturas africanas, Pires Laranjeira, da Universidade de Coimbra. Ainda no campo literário, o poeta Luís Veiga Leitão está presente com uma ode em que presta homenagem “ao amigo e camarada das prisões e tribunais plenários nos tempos do fascismo”. A ilustrar este poema figura um notável retrato à pena de Agostinho Neto pelo artista António Domingues, recentemente falecido.

O líder angolano é ainda recordado numa série de depoimentos de numerosas personalidades que com ele privaram. Tais depoimentos abrem com um texto evocativo de sua filha Irene Alexandra Neto, actualmente vice-ministra das Relações Exteriores para a Cooperação. Seguem-se outras personalidades angolanas como Adriano Sebastião e Ruy Mingas, que foram embaixadores de Angola em Portugal; o ex-primeiro-ministro angolano, Lopo do Nascimento; o ex-Procurador da República, ex-embaixador e também poeta, Antero Abreu; a magistrada Maria do Carmo Medina, jubilada do cargo de juiz do Tribunal Supremo de Angola; o deputado, poeta e artista plástico Costa Andrade; e Fernando Costa Campos, que foi condiscípulo e colega de quarto de Agostinho Neto em Coimbra.

Entre os portugueses, colaboram nesta obra com importantes testemunhos o general Pedro de Pezarat Correia, que como representante do MFA teve participação activa na transição de Angola para a independência; o ex-Presidente da Assembleia da República e actual Presidente do PS, António de Almeida Santos, que privou de perto com Neto em Coimbra; o historiador Pedro Ramos de Almeida, que esteve preso e foi julgado com Neto, no Porto, quando ambos eram dirigentes do MUD Juvenil; Júlio Pequito, que foi companheiro de quarto de Neto quando este era estudante em Lisboa; e Carlos Antunes, ex-dirigente do PRP-BR, que o líder angolano nunca ostracizou, não obstante incorrer no desagrado do PCP.

Outros testemunhos (coligidos de várias fontes) contribuem para definir a personalidade de Agostinho Neto. Tais testemunhos são de: José Eduardo dos Santos, Presidente da República de Angola; Pedro Pires, Presidente da República de Cabo Verde; Ramalho Eanes, ex-Presidente da República Portuguesa; Joaquim Chissano, ex-Presidente da República de Moçambique; Luís Cabral, ex-Presidente da República da Guiné-Bissau; Boaventura Cardoso, ministro da Cultura de Angola; Paulo Jorge, deputado e ex-ministro das Relações Exteriores de Angola; Iko Carreira, ex-ministro da Defesa de Angola; Silvino da Luz, diplomata e antigo membro do Governo de Cabo Verde; Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar; Mendes de Carvalho e Conceição Cristovão, escritores e deputados angolanos; Carlos Amaral, diplomata; António Pinto da França, ex-embaixador de Portugal em Angola; Carlos Brito, escritor e ex-dirigente do PCP; Basil Davidson, escritor e jornalista britânico; Augusta Conchiglia, jornalista italiana; Janet Elizabeth Carter, ensaísta sul-africana; Carlos São Vicente, poeta, ensaísta e economista angolano; Russel Hamilton, publicista norte-americano; Edmundo Rocha, médico, militante do MPLA desde os primórdios; Jofre Rocha, escritor e poeta angolano; Patrick Chabal, ensaísta britânico; Luís Fernando, escritor e jornalista angolano (hoje é porta-voz da Presidência da República); e António Calazans Duarte, engenheiro português, protagonista do primeiro processo político julgado em Luanda.

O elenco desta edição é também enriquecido por vários textos de Agostinho Neto escritos na prisão, um dos quais, com reflexões sobre o racismo e a ambicionada independência, lhe foi apreendido pela polícia política. São ainda apresentadas, numa secção intitulada “Discurso directo”, várias frases seleccionadas dos seus discursos e conferências.

Complementarmente, o livro inclui uma cronologia dos acontecimentos (pessoais, nacionais e internacionais) que marcaram o tempo em que Agostinho Neto viveu. Se outro mérito não tiver, esta cronologia evidenciará que, a par da luta de muitos angolanos pela independência e da solidariedade internacional com essa luta, também em Portugal não faltaram os abaixo-assinados, as greves, as vigílias e outras manifestações em defesa da autodeterminação e contra a guerra colonial, com o inevitável cortejo de represálias, que muitos pagaram com a prisão, a tortura e o exílio. Dessa unidade na luta contra o poder colonial fascista, Agostinho Neto sempre se mostrou consciente como ninguém, conforme o demonstrou por diversas vezes, nomeadamente na altura dramática da Independência de Angola, em que - perante a ausência de representantes oficiais de Portugal -, dirigiu ao povo português uma expressiva mensagem cujo manuscrito se reproduz nesta edição, atendendo ao seu carácter histórico.

No seu conjunto, é indubitável que este volume concorrerá para reavivar a memória de Agostinho Neto junto daqueles que ainda o conheceram, mas sobretudo para despertar entre os mais novos a curiosidade e o interesse por esse gigante da história africana que - nas palavras do famoso jornalista britânico Basil Davidson - esteve “no centro do furacão”, ao assumir com firmeza a liderança da luta pela independência de Angola. Poucos, como ele, se podem vangloriar de terem colocado “pedras nos alicerces do mundo”. E de merecerem, por isso, o seu “pedaço de pão”.

Editado pelo jornalista Acácio Barradas, que é também o autor de grande parte dos textos (com destaque para os que traçam a evolução de Neto desde o nascimento até à fuga de Portugal), este livro tem a colaboração de outros jornalistas bem conhecedores das realidades angolanas, como Moutinho Pereira (que narra a trajectória política de Neto, desde que fugiu de Lisboa até à sua morte) e Artur Queiroz (que fez a entrevista a Maria Eugénia Neto).

*Jornalista

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