Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião
A revolta do Grupo Wagner contra Putin, para além da óbvia evidência de um conflito interno russo com repercussões imprevisíveis, mostra também o perigo das parcerias público-privadas para a guerra.
Com o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética, na década de 1990, o cenário geopolítico mundial, como todos sabemos, mudou significativamente e uma das consequências dessas mudanças foi o aumento do uso de empresas militares privadas (Private Military Companies, PMCs).
No Ocidente, especialmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, este aumento foi em parte devido à perceção, dado o entusiasmo globalizante e neoliberal, de que as PMCs poderiam oferecer serviços militares e de segurança de forma mais económica e que seriam capazes de acompanhar com maior prontidão as inovações tecnológicas.
Além disso, as PMCs ofereciam uma maneira de contornar obstáculos políticos, diplomáticos e logísticos associados ao envio de tropas regulares para territórios estrangeiros -- basicamente, fugiam ao escrutínio político e da opinião pública.
Um exemplo notável disso foi o uso de PMCs pelos Estados Unidos durante a Guerra do Iraque, na sequência do 11 de setembro de 2001 que levou George. W. Bush a legislar de forma a estabelecer um crescimento exponencial de parcerias público-privadas para fazer a guerra.
Empresas como a Blackwater foram contratadas para fornecer uma variedade de serviços, incluindo operações de combate.
Os contratos da Blackwater (que aqui serve apenas de exemplo, porque há centenas de operadores privados nas Forças Armadas norte-americanas e inglesas), de acordo com um relatório de 2010 do Congresso dos EUA, ascenderam a um valor superior a mil e 500 milhões de dólares entre 2001 e 2010.
Em 2007 soldados desta empresa mataram em Bagdad 17 civis e feriram 20. Foram julgados, condenados e depois indultados por Donald Trump.
Após a Guerra do Iraque, a empresa, já rebatizada de Academi, recebeu um contrato de mais de 22 milhões de dólares para serviços de segurança no Afeganistão.
Já vi estimativas (os números são secretos) de que, por ano, só os Estados Unidos entregaram cerca de 125 mil milhões de dólares a empresas destas. É metade do PIB português...
Na Rússia, o uso de PMCs seguiu uma trajetória semelhante. Após a queda da União Soviética, muitos ex-militares encontraram-se desempregados e alguns agarraram no armamento que conseguiram apanhar e voltaram-se para o setor privado, operando durante anos numa zona de legalidade duvidosa.
É daí que, mais tarde, já com as instituições russas estabilizadas e com Putin no poder, surgiu em 2014 o Grupo Wagner, que se envolveu em vários conflitos, incluindo nesse mesmo ano a anexação da Crimeia pela Rússia e a defesa da população russófona do Donbass. Depois trabalhou na Síria, no Sudão, na República Centro-Africana, na Venezuela, em Moçambique e no Mali.
O grupo de trabalho da ONU, liderado pela escocesa Sorcha MacLeod, que monitoriza a atividade dos mercenários no mundo e, por extensão, a destes exércitos privados, relata que quando há exércitos privados numa guerra são mais frequentes assassinatos em massa, torturas, violências sexuais baseadas no género, desaparecimentos forçados, saques, agressões sistemáticas de civis.
Julgar estes crimes -- por os seus autores escaparem com facilidade ao controlo das autoridades ou por terem o beneplácito dos Estados contratantes -- é quase sempre impossível.
E aqui chega-se ao ponto principal: a delegação de missões de soberania em exércitos privados, estas parcerias público-privadas, são muito mais difíceis de controlar pelos Estados do que os tradicionais exércitos regulares. Por exemplo, a antecipação de um processo de paz que retire tempo de missão e receitas a uma empresa destas cria, como é claro, a tentação de o sabotar... e isso já aconteceu várias vezes, diz a ONU.
Uma das coisas que a revolta do Grupo Wagner demonstra é que quando os interesses do exército privado, com as dimensões gigantescas que hoje têm, conflituam com os interesses dos governos, estes até correm perigos sérios de serem atacados e derrubados.
Foi mais ou menos assim que a República Romana caiu às mãos da legião, tornada exército pessoal, de Júlio César.
Imaginemos que Prigozhin, o líder do Grupo Wagner, em vez de ter decidido fazer uma marcha de protesto tivesse ocupado um depósito de armas nucleares e tomado posse delas...
Aceitamos um mundo com exércitos privados sedentos de lucros e detentores de armas nucleares?
*Jornalista
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