domingo, 25 de junho de 2023

UMA GUERRA COMO NENHUMA OUTRA

PeterVan Buren *

Este artigo provém de uma publicação dos EUA que se assume como conservadora. Isso não impede o autor de condenar o “esforço cínico dos EUA para lucrar com o sangue de outra nação”. Chama-lhe “doutrina Biden”. Mas talvez mereça a pena recordar que o imperialismo EUA nunca desencadeou ou alimentou nenhuma guerra senão com esse objectivo. Ao colossal negócio do armamento junta-se a perspectiva da “corrida ao ouro” da reconstrução de um país devastado “até ao último ucraniano”. Que o mundo inteiro sofra o impacto desta insanidade não entra nas contas de tal “doutrina”.

Joe Biden criou para os EUA uma guerra como nenhuma outra, uma guerra em que outros morrem e os EUA simplesmente ficam sentados e pagam as contas numa escala gigantesca. Não há tentativas de diplomacia por parte dos norte-americanos, e os esforços diplomáticos de outros, como os chineses, são descartados como perversas tentativas de ganhar influência na área (semelhante à rejeição do trabalho diplomático chinês na guerra do Iémen). Biden está a aproximar-se do 1984: uma situação final de guerra perpétua, enquanto apenas coloca um punhado de vidas norte-americanas em risco. Ele aprendeu as lições da Guerra Fria e já as está a pôr em prática. Poderemos chamar-lhe já Doutrina Biden?

A estratégia de Biden é suficientemente clara agora, após mais de um ano de conflito; o que ele tem enviado para a Ucrânia saltou de capacetes e uniformes para F-16s em apenas quinze meses e não mostra sinais de parar. O problema é que as armas norte-americanas nunca são suficientes para a vitória e são sempre “apenas o suficiente” para permitir que a batalha continue até à próxima ronda. Se os ucranianos pensam que estão a jogar com os EUA em troca de armas, é melhor verificarem quem está realmente a pagar tudo em sangue.

Putin está, de certa forma, a jogar este jogo, com o cuidado para não introduzir nada demasiado poderoso, como bombardeiros estratégicos, e perturbar o equilíbrio e oferecer a Biden a oportunidade de intervir directamente na guerra: pode ouvir-se o velho Joe Biden na televisão, explicando que os ataques aéreos americanos são necessários para evitar um genocídio, a desculpa habitual que aprendeu com Obama. A Ucrânia vai descobrir que, mesmo com a promessa do F-16, não consegue adquirir aviões e treinar pilotos com a rapidez necessária (o tempo mínimo de treino é de 18 a 24 meses) e, a seguir, vai implorar aos EUA para servirem como sua força aérea. É isso que a actual escalada pressagia: poder aéreo.

De momento, é provável que os aviões fiquem baseados na Polónia e na Roménia, o que sugere que a OTAN se encarregará das tarefas altamente qualificadas (e dos custos) da sua manutenção e reparação. Não é claro o papel da NATO no reabastecimento aéreo necessário para manter os aviões no campo de batalha. F-16s à parte, um bónus de todas estas ofertas de armamento é que a grande maioria das transferências até agora têm sido “descargas presidenciais”. Isto significa que os EUA enviam armas usadas ou mais antigas para a Ucrânia, após o que o Pentágono pode usar os fundos autorizados pelo Congresso para reabastecer os seus stocks através da compra de novas armas. Não pode passar despercebida ironia de que as máquinas de guerra, outrora no Iraque sob o comando do Presidente Obama, sejam agora recicladas no terreno na Ucrânia sob o comando do seu antigo vice-presidente.

A estratégia dos EUA parece basear-se na criação de uma espécie de medonho empate, dois lados alinhados num campo a disparar um contra o outro até que um deles se retire. A mesma estratégia estava em jogo em 1865 e em 1914, mas o factor novo é que, hoje, esses exércitos enfrentam-se nesses campos com artilharia HIMARS do século XXI, metralhadoras e outros instrumentos de morte muito mais eficazes do que um mosquete ou mesmo uma pistola Gatling. É insustentável, está literalmente a mastigar homens - embora não americanos. A pergunta sobre quantos mais ucranianos terão de morrer é respondida em privado por Biden como “potencialmente todos eles”. Tudo o resto exige que se acredite cinicamente que Biden pensa que pode simplesmente comprar a vitória.

Até agora, tudo isto tem seguido o manual da Guerra Fria. Lutar até ao último afegão foi uma estratégia aperfeiçoada no Afeganistão sob controlo soviético na década de 1980. O que é diferente agora é a escala - desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, os Estados Unidos enviaram mais de 40 mil milhões de dólares de ajuda militar para apoiar o esforço de guerra de Kiev, a maior transferência de armas da história dos EUA e que não dá sinais de parar. Um único F-16 custa até 350 milhões de dólares por exemplar se for comprado com armas, equipamento de manutenção e kits de peças sobresselentes.

No entanto, apesar das semelhanças com a Estratégia 101 da Guerra Fria, foram aprendidas algumas lições ao longo dos anos. Um dos fracassos dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e a Guerra contra o Terror foi o recurso a governos fantoches, em grande parte impostos ou mantidos em estado de sobrevivência pelo dinheiro e força americanos. Uma vez que estes governos não tinham o apoio do povo (ver Vietname, Iraque e Afeganistão), não tinham qualquer hipótese de se manterem em funções, com o tempo de vida das moscas da fruta. A Ucrânia é diferente; o governo fantoche é o governo, em dívida com os EUA para a sua própria sobrevivência mas que, por enquanto, é mais ou menos apoiado directamente pelo povo.

A outra lição aprendida tem a ver com a construção da nação, ou a reconstrução, ou o que quer que se chame às vastas despesas do pós-guerra neste conflito. Não haverá mais esforços governamentais directos como no Vietname, Iraque e Afeganistão. Desta vez, tudo será feito pela iniciativa privada. “É óbvio que as empresas norte-americanas podem tornar-se a locomotiva que, mais uma vez, impulsionará o crescimento económico global”, disse o Presidente Zelensky, gabando-se da BlackRock, JP Morgan e Goldman Sachs. Outros, disse ele, “já se tornaram parte do nosso caminho ucraniano”.

A câmara de comércio ucraniana apelidou o país de “o maior estaleiro de construção do mundo”. O New York Times fez eco de uma previsão que afirmava que os esforços de reconstrução custarão 750 mil milhões de dólares. A reconstrução da Ucrânia será, diz o Times, uma “corrida ao ouro…. A Rússia está a intensificar a sua ofensiva a caminho do segundo ano de guerra, mas a tarefa de reconstrução é já evidente. Centenas de milhares de habitações, escolas, hospitais e fábricas foram destruídos, bem como instalações energéticas essenciais e quilómetros de estradas, vias férreas e portos marítimos. A profunda tragédia humana é também, inevitavelmente, uma enorme oportunidade económica”. No início deste ano, o JP Morgan e Zelensky assinaram um memorando de entendimento que estipula que o Morgan ajudará a Ucrânia na sua reconstrução.

E talvez essas grandes empresas norte-americanas tenham aprendido as lições do Iraque e do Afeganistão. Dos milhares de milhões gastos, muito dinheiro foi desperdiçado em becos sem saída e muito foi desviado devido à corrupção. Mas, com sucesso ou sem sucesso, os empreiteiros foram sempre pagos nas nossas Guerras do Terror. Com isto em mente, mais de 300 empresas de 22 países inscreveram-se para uma exposição e conferência Rebuild Ukraine em Varsóvia. No Fórum Económico Mundial, na Suíça, uma multidão compacta participou numa conferência chamada Ukraine House Davos para discutir oportunidades de investimento.

A eventual corrida ao ouro na reconstrução constitui uma adenda interessante à estratégia de Biden de lutar até ao último ucraniano. Quanto mais se destrói, mais é necessário reconstruir, o que oferece mais dinheiro às empresas norte-americanas suficientemente espertas para esperar que a matança se esgote. Mas porquê esperar? Drones operados por empresas dinamarquesas já mapearam todas as estruturas bombardeadas na região de Mykolaiv, com o objectivo de utilizar os dados para ajudar a decidir quais os contratos de reconstrução que deveriam ser emitidos.

Vamos então pôr um pouco de batom nesta estratégia sórdida e chamar-lhe a Doutrina Biden. A Parte I consiste em limitar o envolvimento directo dos Estados Unidos em combate, ao mesmo tempo que se atiçam as chamas para outros. A Parte II consiste em fornecer quantidades maciças de armas para permitir uma luta até à última pessoa local. A Parte III consiste em transformar o governo local num fantoche em vez de criar de novo um governo impopular. A Parte IV consiste em transformar o processo de reconstrução num centro de lucro para empresas norte-americanas. A duração da guerra e o número de mortos não fazem parte da estratégia.

A saída da situação na Ucrânia, um resultado diplomático que repõe o mapa nos níveis anteriores à invasão de 2022, é suficientemente clara para Washington. A administração Biden parece despudoradamente satisfeita por não apelar a esforços diplomáticos e, em vez disso, sangrar os russos como se estivéssemos no Afeganistão de 1980, ainda que no coração da Europa.

Fonte: https://www.theamericanconservative.com/a-war-like-no-other/

* Publicado em O Diário.info

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