sexta-feira, 21 de julho de 2023

Angola | A Morte da Rainha e o Sistema Moribundo – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

A Rainha Nhakatolo Tchissengo um dia foi visitar o Presidente Agostinho Neto a Luanda. Levou um abraço da sua gente ao Fundador da Nação. Ela é o símbolo vivo de uma sociedade matriarcal que conseguiu sobreviver à esquizofrenia do capitalismo. No meu Livro “Jenny a Noiva do Vestido Azul” (Memórias de Maria Eugénia Neto), a então Primeira-Dama da República recorda o acontecimento:

“A rainha Nhakatolo, dos Luvales, veio do Moxico para te dar apoio e carinho. Naquele dia fui arranjar a sala das visitas. Coloquei folhas de mamoeiro nos jarrões, colhi flores do nosso jardim, enfeitei o centro de mesa com rosas de porcelana, ajeitei as almofadas. Estava tudo pronto para receber tão distinta visita. Entrei no teu gabinete e vi que estavas com ar preocupado. Quando te via assim, não dizia nada, nunca por nunca quis dar-te a impressão que me queria intrometer nos teus assuntos de Estado ou partidários. Apenas te beijei e depois informei que estava tudo a postos para receber a soberana Nhakatolo. Foi então que com aquela tua voz suave e doce me disseste que era uma indelicadeza não convidá-la para nossa casa e não lhe dar uma prenda. Tirei-te logo todas as dúvidas e as preocupações:

- Vou imediatamente preparar acepipes e meter cerveja na geleira.

Tu continuaste preocupado e disseste que não tínhamos nada para lhe oferecer. Beijei-te e deixei a garantia que a prenda estava garantida. Saí, atravessei a rua, entrei em casa e comecei a preparar os acepipes. Depois revirei a casa ao contrário à procura de algo para presentear a rainha Nhakatolo. Nada. Armários, gavetas, caixotes, tudo estava vazio. Só o meu coração transbordava de amor por ti, doutor Neto!

Mas no nosso quarto encontrei um tesouro. Quando foste ao Zaire fazer a paz com o presidente Mobutu Sesse Seko ele deu-nos aqueles panos do Congo lindíssimos, autênticas preciosidades. Disse-te que ia fazer com ele bubus, kimonos, vestidos, echarpes e lenços para a cabeça. Alguns ficavam para eu levar vestidos às actividades da OMA (Organização da Mulher Angolana). Nunca tive tempo para costurar aqueles panos tão belos. Vou oferecer estas maravilhas à soberana!

Valentina Tereshkova, a primeira mulher que foi ao o espaço, ofereceu-me um conjunto lindíssimo: anel, broche, brincos e colar, com pedras amarelas, muito belas. Eram âmbares, as pedras preciosas de eleição dos egípcios. Tu sabes que sou apaixonada pela civilização egípcia, por isso aquele estojo de joias ficou sempre fechado, sempre à vista, para eu apreciar todos os dias o seu recheio. A prenda foi-me oferecida por uma mulher que muito admiro. Nunca usei os brincos, o anel, o broche, aquele colar que parecia feito à medida do meu pescoço. Vou oferecer este conjunto à rainha Nhakatolo! Tinha o hábito de guardar todos os papéis bonitos que embrulhavam as prendas que me davam. E os sacos de papel ou plástico mais atraentes. Fui à minha reserva e embrulhei o estojo das joias. Depois arranjei dois sacos bonitos e coloquei lá dentro os panos que Mobutu me ofertou. Sabes que ele esteve no teu funeral? Abraçou-me a chorar. Espero que todos os presentes tenham compreendido que até os ditadores têm bondade para dar. Por isso, devemos fazer tudo para ver nos outros o seu lado bom.

Quando acabou a audiência e chegaste com a soberana, abracei-a e pedi-lhe que se sentisse em casa, me considerasse uma luvale. Ela agradeceu muito. Fui buscar as prendas e entreguei-as. Ao abrir o estojo das joias sorriu e agradeceu. Olhei para ti e estavas com ar de quem te caiu o mundo em cima. Tu sabias o que aquelas joias ofertadas pela Valentina Tereshkova significavam para mim. A rainha certamente gostava mais de malaquites, a belíssima flor do cobre. Mas quando viu os panos deu um gritinho de espanto e alegria. Adorou. Depois do convívio, a soberana partiu, deixando-nos a sua amizade. Tu chegaste perto de mim, de mansinho, e deste-me um abraço doce e amoroso. Percebi que tinha feito o melhor negócio da minha vida. A troco de panos do Congo e joias de âmbar, ganhei um abraço que todas as riquezas do mundo, todas as honrarias jamais conseguirão pagar. Nós precisávamos de pouco para sermos felizes. A felicidade dos outros era a nossa felicidade.”

A sua sucessora, Rainha Nhakatolo Tchilombo, faleceu em Luanda, vítima de doença. O jornalista Garrido Fragoso tinha entrevistado a soberana e o Jornal de Angola acaba de publicar de novo esse texto fabuloso. Os que defendem as eleições autárquicas imediatamente e a qualquer preço, deviam ler e estudar a entrevista, assinada por um dos bons jornalistas do nosso tempo. 

Lá no Alto Zambeze, quem quer terra para trabalhar, pode cultivar a que quiser. A rainha Nhakatolo autoriza, sem restrições. Quando existem problemas graves, reúne o Conselho do Reino, constituído pelo príncipe consorte, regedores, sobas e sekulos. Se esta instância não resolver os diferendos, então a rainha decide. É a última instância. Quem viola as Leis da República fica a contas com as autoridades (Polícia Nacional e Administração Municipal) e a Justiça. É muito clara a linha que separa as intervenções das autoridades tradicionais das nacionais. Se o Poder Local Democrático conflituar com o Poder Tradicional é o princípio do fim. Lá se vai a coesão social e a estabilidade. Pensem nisso.

A rainha Nhakatolo Tchilombo na entrevista a Garrido Fragoso referiu o problema do escoamento dos produtos agrícolas. Porque as estradas são más e não há meios de transporte. Lembrou que “nos primeiros anos após a Independência Nacional, o Presidente António Agostinho Neto enviou-nos autocarros e camiões de marca Ifa, que faziam o transporte dos produtos do Alto Zambeze e demais comunas para o município do Luau, de onde eram colocados no comboio para serem transportados e comercializados na sede provincial, Luena, e noutros pontos do país”. 

E agora? A rainha Nhakatolo Tchilombo respondeu: “O conselho que deixo ao Governo é prosseguir com o legado do Presidente António Agostinho Neto, que recomendava a criação de condições com vista à solução dos principais problemas do povo”. 

Até ao momento que escrevo, apenas o MPLA se pronunciou sobre a morte da rainha Nhkatolo. Todos os outros partidos ignoraram o infausto acontecimento. Porque não têm implantação nem expressão nacional. Tudo o que acontece fora dos seus quintais, não conta para nada. Nem o falecimento da soberana de um grupo étnico que protagoniza um dos mais espantosos mosaicos culturais de Angola. Aproveito para informar que não existe o “povo Luvale”. Em Angola só existe o Povo Angolano. Um só Povo uma só Nação.

Hoje chegou a Luanda a patroa de um banco (Exim Bank) do estado terrorista mais perigoso do mundo (EUA). Foi recebida por João Lourenço. Veio trazer um chouriço e leva na bagagem uma carrada de porcos. Só ficam os da direcção da UNITA. Que um ano depois das eleições continua a não reconhecer a derrota eleitoral, criando um pântano putrefacto na democracia angolana, que alastra até apodrecer tudo. 

O partido que venceu as eleições (MPLA) pouco pode fazer na casa alheia. Mas tem o dever de exigir que o seu cabeça de lista, eleito Presidente da República, não siga o mesmo caminho da UNITA, espezinhando a democracia. Porque desde a sua eleição à boleia da vitória do MPLA, está a demolir o Poder Judicial. Não, não está a violar o princípio da separação de poderes. Está mesmo a demolir o edifício da Justiça. 

O exemplo mais inquietante chama-se Hélder Pita Grós. Foi deprimente assistir às jogadas que precederam a sua continuidade no cargo. Primeiro ia embora porque atingiu o limite de idade. Depois ia ficar porque o Presidente da República lhe pediu muito. Depois o próprio disse que ia ficar porque queria. A seguir foram desencadeadas acções tendentes a destruir quem foi anunciado como candidato ao cargo. Ao mesmo tempo foi eliminado quem podia fazer frente ao ajudante do Titular do Poder Executivo na Procuradoria-Geral da República. Finalmente o chefe disse quem manda aqui sou eu e o meu ajudante continua.

Pouco tempo depois se percebeu porquê. O Procurador-Geral da República anda a cobrar o imposto revolucionário aos ricaços que não querem ser incomodados. Por isso não larga o Dubai. Toma lá dinheiro dá cá protecção. O Álvaro Sobrinho já pagou o imposto? 

Constitucionalmente, o Presidente da República é o Titular do Poder Executivo. Comandante em Chefe das Forças Armadas, Chefe de Estado. João Lourenço alargou os seus amplos poderes e fez do Poder Judicial a sua xitaca. O MPLA tem o dever histórico de defender a democracia destes ataques perigosos. E só é possível defender o regime democrático retirando a confiança política ao candidato a ditador. Se não agir, então os partidos passam a ser todos iguais e o eleitorado não tem que confiar o voto a quem ignora o programa de governo sufragado pelo voto popular.

A maioria absoluta do MPLA na Assembleia Nacional é o último reduto de defesa da democracia. Ou respeita o mandato popular ou morre a democracia. Como já morreu a República Popular, o Partido do Trabalho e a Democracia Popular.  

A cobardia política de hoje vai ficar registada nos arquivos implacáveis da História. João Lourenço é o maior aliado da UNITA nas suas manobras contra a Independência Nacional e a demolição do MPLA. Até 2027 há tempo para repor a democracia e a dignidade confiscada ao Povo Angolano. É gravíssimo que até agora apenas dois juristas ligados ao MPLA se tenham pronunciado sobre os perigos de morte que pairam sobre o regime democrático. Primeiro Sérgio Raimundo. Depois a Doutora e juíza jubilada Luzia Sebastião. Mas até hoje não se registou qualquer sobressalto cívico. Nem a mínima reacção pública da direcção do partido que ganhou as eleições há um ano, com maioria absoluta. Isto aqui está muito bom!

*Jornalista

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