quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Angola | A Mão Invisível e o Triunfo do Jornalismo -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Com as amigas e amigos sou sempre devedor, nunca credor. Por isso tenho de responder a um amigo que me absolveu dos elogios ao Presidente José Eduardo mas me condena por apoiar e estar solidário com Carlos São Vicente. Diz mesmo que se o conhecesse bem lhe virava as costas. Lá tenho que responder.

Os amigos dos meus amigos, meus amigos são. Os filhos dos meus amigos, meus filhos são. Carlos São Vicente É filho da Ilda, uma mulher excepcional! É filho do jornalista Acácio Barradas o maior e mais completo profissional que alguma vez serviu o Jornalismo Angolano. Abriu-me as portas da profissão, quando eu não sabia nada de nada, além de umas coisitas aprendidas com imensas dificuldades nos bancos das escolas e da universidade. 

Carlos São Vicente pertenceu à Brigada Jovem de Literatura. Uma preciosidade num país em estado de guerra desde 1974, ameaçado pela morte cultural. Um feito importantíssimo patrocinado pelo MPLA. Executado por jovens militantes do MPLA. Nunca virei as costas a um camarada, mesmo quando me reformei da militância activa. Não viro as costas a Carlos São Vicente, meu camarada do MPLA.

Eu sei como nasceu e cresceu o edifício da Justiça em Angola. Ninguém respeita mais o Poder Judicial do que eu. Ninguém admira mais os operadores da Justiça do que eu. Porque o sector estava de tal forma depauperado na hora da Independência Nacional que fui mobilizado para servir como adjunto do Procurador Popular no Julgamento dos Mercenários, em 1976. David Moisés (Ndozi) dividia o seu tempo de comandante da IX Brigada com o de juiz do Tribunal. Mas acredito na inocência de Carlos São Vicente. Está preso um inocente!

Esta convicção foi formada com o conhecimento do processo. O comportamento do Tribunal de primeira instância e daí até ao fim da linha. A minha posição foi reforçada de uma forma inquebrável e inamovível quando li esta declaração da Veneranda Conselheira Luzia Sebastião:

“Há uma situação que não é normal e que está a pôr em causa o crédito desta instituição que se chama Justiça. É muito sério, o judiciário é a reserva moral da sociedade. Quando esta reserva moral é afectada da maneira que actualmente está a ser, significa que temos aqui um problema que denota a falência do sistema”.

A minha convicção na inocência de Carlos São Vicente foi reforçada com estas palavras da Veneranda Conselheira do Tribunal Constitucional Maria da Conceição Sango: 

“A decisão de aplicar ou manter a privação de liberdade muitas vezes tem trilhado atalhos distanciados da Constituição da República. (…) A valoração da dignidade humana e liberdade do arguido na decisão de aplicação ou manutenção da privação da liberdade, muitas vezes tem trilhado atalhos distanciados de uma jurisdição verdadeiramente constitucionalizada (…) O controlo jurisdicional das medidas de coacção não deve distanciar-se da dosimetria entre a necessidade da medida de coação restritiva da liberdade e a tutela da dignidade da pessoa humana (…) A lei já surgiu com algumas deficiências de parto, sobretudo no que às medidas restritivas de liberdade diz respeito, designadamente, a atribuição de competências ao Ministério Público para, em fase de instrução, aplicar medidas cautelares restritivas de liberdade”.

Meu amigo. Sentes-te bem num país onde num litígio, uma parte envolvida tem o poder de mandar prender a outra parte e mantê-la na prisão até às calendas gregas? Eu não. O Ministério Público é uma parte. A Defesa é outra parte. Ambos se apresentam em Tribunal com as suas verdades. Os magistrados judiciais, imparciais, decidem qual das partes tem razão. Mas está tudo inquinado à partida. É cilindrada a presunção de inocência. Libertem Carlos São Vicente porque ele é inocente e vítima, entre outras maldades, de racismo. O actual poder não pode admitir que um “colorista” seja milionário! Racismo. Vingança. Inveja.

Combate à corrupção? Brincadeira de mau gosto. Só um exemplo fresco, destes dias. José Severino, da Associação Industrial de Angola (AIA) disse que “a não prorrogação do Documento Único Provisório (DUP) para importação trava a sistematização do uso destas licenças, sobretudo de operadores desonestos que se servem das divisas do país no exterior”.

Só mais esta: “Há operadores honestos, mas há desonestos, que sistematizam as prorrogações, ficando com os capitais lá fora para obterem vantagens de financiamento”. Depois com a conivência (conluio mafioso…) de muitos importadores “usam as divisas nacionais em seu benefício”. João Lourenço está no poder há seis anos. Quantos exportadores e importadores mafiosos foram a Tribunal ou estão presos? A base social de apoio é intocável.

A piada do ano pertence ao Presidente João Lourenço. No seu discurso na 78.ª Assembleia Geral das Nações Unidas disse esta coisa espantosa: “Cada vez ficamos mais convencidos da existência de uma mão invisível interessada na desestabilização do nosso continente, apenas preocupada com a expansão de sua esfera de influência, que sabemos não trazer as garantias necessárias para o desenvolvimento económico e social dos países africanos”. 

A mão invisível estava na Grande Batalha do Ntó. A operação foi montada pela CIA. A mão invisível abriu as válvulas de segurança nas instalações petrolíferas da Cabinda Gulf (Chevron). A mancha de petróleo chegou a Ponta Negra! A mão invisível enxameou Angola de tropas estrangeiras e mercenários de várias nacionalidades, sobretudo britânicos e norte-americanos, para impedir a Independência Nacional. 

A mão invisível mandou para Angola estes matadores visíveis: Tony Callan, Andrew McKenzie, Derek J Barker, Michael Wiseman, Kevin Marchant, John Lawlor, Colin Evans, Cecil Fortuin, Malcolm McIntyre e John Nammock (Reino Unido), Gustavo Grillo, Daniel Gearhart, John Gary e Martin Acker (EUA). A minha mão, visivelmente orgulhosa, redigiu o texto base da Acusação Popular. Quatro mercenários foram condenados à morte. Os condenados a penas de prisão foram libertados entre 1982 e 1984. Gustavo Grillo participou em conferências internacionais contra o mercenarismo.

A mão invisível deu apoio político, diplomático, financeiro e militar ao regime nazi de Pretória obrigando o Povo Heroico e Generoso a entrar na Guerra pela Soberania Nacional e Integridade Territorial. A mão invisível armou a UNITA com mísseis Stinger. Jovens pilotos angolanos foram mortos com essa arma terra-ar. A mão invisível estrangulou Angola desde 11 de Novembro de 1975 até 1992. A mão invisível empurrou Jonas Savimbi para a recusa dos resultados eleitorais e o regresso à guerra. A mão invisível quer mostrar as suas patas disformes e fazer de Angola um protectorado com bases militares. O secretário da Defesa Lloyd Austin, accionista de uma multinacional da indústria bélica, é o corpanzil visível dessa mão invisível e chega a Luanda na próxima semana.

Eu sei que João Lourenço cultiva o sentido de humor. Ele dotou o MPLA de uma rede telefónica exclusiva para facilitar os contactos entre todos, durante a campanha eleitoral de 1992. Um dia precisávamos de contactar Lopo do Nascimento com urgência. Ele não respondia às insistentes chamadas do homem que comandava a campanha no aparelho do partido. Face ao insucesso, virou-se para mim com um sorriso largo e disse: - Este camarada pensa que tem o telefone para os rastros lá de casa fazerem ninho!

A manchete do Jornal de Angola “online” de ontem era muito visível: “Novo Rei de Mavinga, Pedro Mivanga Muquissi, na província do Cuando-Cubango, foi entronizado, este sábado, com a designação de “Mwangana Tchiengo III”. Espero não atrapalhar ninguém se recordar que Angola é uma República que adoptou a democracia representativa onde só são admitidas mãos visíveis. Querem mesmo regressar ao tempo dos sobados? A ignorância não conhece limites e a estupidez humana é infinita.

O ideólogo do regime não declarado (extrema-direita alimentada pela mão invisível do estado terrorista mais perigoso do mundo), Ismael Mateus, escreveu esta pérola no Jornal de Angola:

Com a chegada ao poder do Presidente João Lourenço quebraram-se as principais dificuldades que impediam o aparecimento de mais rádios privadas no país e, num ápice, o número quadruplicou. Luanda tem hoje cerca de 30 rádios privadas, que deveriam oferecer ao público ouvinte um serviço diversificado e mais democrático. Embora haja diversidade, as rádios privadas estão muito longe de prestarem um bom serviço à sociedade.” 

Se Angola tiver um milhão de rádios, o mau serviço à sociedade é multiplicado por esse número. No Jornalismo não basta ter um papel, seja comprado em escolas angolanas, portuguesas ou de outro qualquer país do ocidente alargado, onde mãos invisíveis conspiram contra Angola. É preciso saber fazer. Ofício e oficina. Estamos fora de jogo desde a Independência Nacional. Até criámos cursos médios de jornalismo para multiplicar os papéis e a incompetência. Em nenhum sector da vida nacional é mais premiada a mediocridade. Quem no Jornalismo subir além desse nível é imediatamente destruído.

Os Media que nasceram depois de 1992 onde estão? No caixote do lixo da História do Jornalismo Angolano. Tornaram-se antros de crimes contra os jornalistas e o Jornalismo. Espaços de extorsão e chantagem. Insultos gratuitos. Promoção do racismo e do tribalismo. Kitandas de intrigas e mentiras. Nem o dinheiro oferecido pelas mãos invisíveis os salvou. E os jornalistas do “sector privado” desse tempo onde estão e o que fazem?

Tenho resposta mas não dou. Não respeito os profissionais que destruíram a honra e a credibilidade do Jornalismo Angolano. Mas não sou capaz de lhes apontar o dedo. Tenho a esperança de um dia nos encontrarmos na mesma Redacção e fazermos um grande jornal da Imprensa Livre como se fazia há 170 anos. É bom acreditar no impossível. Falo por mim que estou a cair da tripeça e fico cansado quando escrevo duas palavras seguidas.

*Jornalista

Sem comentários:

Mais lidas da semana