quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Resistindo ao AFRICOM e para além disso

Rose Brewer [*] - entrevistada por T.A. Tran e Leanne Loo

A professora Brewer foi entrevistada pela Science for the People por T.A. Tran e Leanne Loo pelo seu trabalho com a Aliança Negra pela Paz (BAP), uma organização revolucionária que busca recuperar e desenvolver as posições históricas contra a guerra, anti-imperialistas e pela paz do movimento negro radical [1] Por meio da organização comunitária, do apoio aos movimentos e da educação política, o BAP faz frente à repressão militarizada dos EUA no país e a uma agenda de guerra permanente no exterior.

SftP: Pode dizer-nos sobre o trabalho que faz em torno da resistência contra o militarismo e o Comando dos Estados Unidos na África (AFRICOM) por meio da Aliança Negra pela Paz? [2]

Brewer: A Aliança Negra pela Paz tem pouco mais de cinco anos, e a iniciativa [de resistência] ao AFRICOM é um dos trabalhos mais robustos e significativos da BAP. A ideia de ter bases militares no continente africano ganhou força desde o governo Bush a partir da ideia apresentada pelo Departamento de Defesa em 2007, sendo realizada em 2008 [3]. Sempre houve resistência contra essas bases por parte dos países do continente, porém, mais recentemente, sob o mantra da "guerra contra a pobreza", cada vez mais países africanos têm permitido a entrada de bases militares. Nosso trabalho na BAP tem sido na realidade uma tremenda resistência contra isso por uma série de razões. O BAP é uma formação anti-imperialista, anticolonial, preocupada com a persistência das realidades neocolonialistas não só em África, mas noutras partes do mundo, e com o tremendo impacto negativo do império norte-americano em aliança com o que chamamos de "classe compradora" – as estruturas governantes dessas sociedades. Basicamente, isso significa que essas elites se relacionam com o Departamento de Defesa para essas bases. A mensagem pública é fornecer "treino militar" a essas nações para proteção e "garantir a democracia". Mas é claro que nada disso realmente acontece.

SftP: Qual o papel da ciência e da tecnologia, incluindo as ciências sociais, no neocolonialismo e no militarismo no continente africano?

Brewer: Tive que considerar isso, porque é muito significativo. Quero contar uma história, que é um aspeto muito significativo do militarismo dos EUA há bastante tempo. Temos membros que há muito dizem que os africanos foram roubados e que o militarismo desempenhou um grande papel. Se avançarmos para as Guerras Mundiais imperialistas e o período pós-Segunda Guerra Mundial, isso realmente aumentou bastante. A RAND Corporation desde 1948 recrutou elementos das ciências naturais e das ciências sociais para seu think tank. Muitos dos temas foram em torno de armas nucleares e do conflito entre a União Soviética e os Estados Unidos no período pós-Segunda Guerra Mundial – o início da Guerra Fria. Outra arena importante foi por volta de 1956, quando a American University criou algo chamado Gabinete de Pesquisa de Operações Especiais, recebendo dinheiro do Departamento de Defesa. Viu-se então um grande número de cientistas políticos, psicólogos e sociólogos relativamente a especialistas militares. Novamente, era a Guerra Fria – a tensão em torno do comunismo e da chamada democracia – e eles trouxeram cientistas sociais para olhar para a natureza do comunismo, organizações políticas, mobilizações e as mudanças sociais.

Contudo, a Guerra Americana no Vietname conduziu a um elevado nível de crítica contra cientistas sociais financiados pelo Departamento de Defesa para fins militares. Mas nunca desapareceram, podendo avançar até ao período atual. Muito do financiamento militar que flui para universidades vai para a ciência política. Sempre houve uma grande quantidade de engenheiros, físicos e das ciências naturais a receberem financiamento do Departamento de Defesa, dado o interesse quanto a armas. Mas há também o aspeto das ciências sociais, que realmente olham para a componente humana da guerra e do militarismo. Mas os estudos de relações internacionais também receberam bastante financiamento do Departamento de Defesa. Estamos falando de milhões de dólares e cientistas sociais que recebem grandes bolsas de mais de um milhão de dólares para fazer pesquisa e escrever. Portanto, há definitivamente uma interação e entrelaçamento com essas entidades académicas. Eu chamo de universidade corporativa, para colocar mais ênfase na relação entre a segurança estatal e a universidade. Eles leem o que vamos lendo e muito mais. Essa é a lógica, ou a ilógica, de como se movem.

Houve retrocesso no final dos anos 1960, porque tudo estava rebentando por aqui [EUA], desde o movimento Black Power até a resistência nos campus universitários e a resistência contra as universidades que capitalizavam o financiamento da Defesa. De facto, houve uma explosão na Universidade de Wisconsin-Madison sobre esse mesmo assunto [4], bem como a resistência à eliminação do Corpo de Formação de Oficiais da Reserva (ROTC). Aliás, à medida que eu entrava em toda a questão da universidade corporativa, ainda mais recursos foram canalizados para as ciências sem ser colocado um conjunto de questões críticas. O que estamos fazendo com essa investigação para os militares?

A universidade corporativa parece-se muito com as corporações do século XXI, com uma estratégia de cima para baixo, onde as elites realmente impulsionam uma determinada agenda. As áreas humanísticas na realidade receberam apenas pequenas parcelas, como os estudos étnicos. Então, a academia reflete muito do que a sociedade representa ao realizar as necessidades e interesses da máquina de guerra. E os orçamentos que poderiam ir para as necessidades humanas não vão para lá.

SftP: O que foi feito com toda essa pesquisa de guerra produzida a partir da academia? Como tem sido utilizada?

Brewer: Está publicada. Foi produzida como material para esses think tanks. Pensamos na guerra, como os media olham para ela, simplesmente do aspeto técnico: as máquinas, as bombas,os soldados. Mas a guerra não é apenas isso. Há uma sociologia: especialistas, generais, entidades decisórias. Quem são? Como se movem? Então eles usam esse material de uma forma muito dura e nefasta, que é sobretudo para uso militar. E não recebe tanta atenção.

Esta é uma questão de ciência social que está sendo implantada como uma questão de segurança e como uma questão de interesse dos EUA, em termos de inter-relação entre a psicologia social, a ciência social e o aspeto material.

SftP: O AFRICOM desempenha um papel nessa história, especificamente sobre como a ciência e a tecnologia são alavancadas para fins militares?

Brewer: Nós realmente não exploramos isso tanto quanto olhamos para o número de golpes que aconteceram no continente – dois em Burkina Faso apenas em 2022. Muitas vezes por militares que foram treinados pelo AFRICOM que também treina militares em África, na medida em que várias nações já não têm militares independentes na maioria dos casos. Então, potenciais comandantes militares e líderes, são selecionados usando as ferramentas dos militares dos EUA para posicioná-los em relação aos interesses dos Estados Unidos. O Mali, por exemplo, tem ouro e imensos outros recursos minerais que são necessários noutras partes do mundo, mas especialmente no interesse dos Estados Unidos. A economia política do militarismo no continente africano tem tudo a ver com os recursos de que as empresas multinacionais dependem. Um número desproporcional é destinado aos Estados Unidos. Então é esta a necessidade de entender politicamente o terreno económico em que o AFRICOM assenta e entender a dinâmica política nesses lugares.

SftP: Você diria que o uso da ciência e da tecnologia para o neocolonialismo e o militarismo é inevitável?

Brewer: Permitam-me que coloque isto num contexto ligeiramente diferente. Inevitabilidade, no sentido de que tempo, lugar e condição situaram a sociedade mais capitalista do mundo (os Estados Unidos) articulando o seu próprio domínio de espectro global – ou seja, sendo a principal força do mundo – enquanto a maioria do mundo está pressionando pela multipolaridade. Quando a Segunda Guerra Mundial (a Segunda Guerra Imperialista) terminou, os Estados Unidos eram a principal força. A complexidade a que agora chegámos, significa que para que esse império continue o que chamamos de seu domínio em grande escala, o status quo da ciência e da tecnologia é necessário. Mas se temos um mundo catalisado para a paz, esse é um tipo diferente de questão. Então faço uma distinção. Se os EUA mantiverem a posição de domínio, sim: ciência e militarismo serão convergentes. Se estamos lutando e resistindo, e articulando uma visão onde a possibilidade de paz, o desarmamento nuclear, a possibilidade das pessoas e o planeta viverem em boas relações, então não: eles não são uma inevitabilidade, embora exija necessidades políticas específicas.

SftP: Existe uma relação entre como a ciência e a tecnologia são usadas para a repressão interna nos Estados Unidos versus como elas são usadas para guerras no exterior?

Brewer: A BAP faz essa conexão aqui e em todo o mundo. Há o programa 1033, onde equipamentos militares podem ser adquiridos por departamentos de polícia e são usados predominantemente contra comunidades de cor [5]. Por exemplo, aqui em Minneapolis, a cidade está a debater uma proposta do departamento de polícia para empregar drones para policiamento [6]. Moro na cidade onde aconteceu o assassinato de George Floyd, e todo aquele equipamento militar estava em pleno vigor. O treino militarista da polícia é comparável. Na verdade, você pode lembrar-se do treino militar que Derek Chauvin recebeu, usando o joelho no pescoço. Não dá para lidar com questões internas isoladamente. Elas estão inextricavelmente ligadas às questões globais.

Isso também não está desconectado com o que acontece no continente africano. O orçamento de defesa nos Estados Unidos é tremendo, e a extensão com que esses recursos são empregados está além do limite. A ligação entre os departamentos de polícia e os militares foi solidificada ainda mais profundamente. O programa 1033 permitiu que isso acontecesse.

SftP: Como seria uma ciência alavancada para a luta anti-imperialista?

Brewer: Ciência para o povo! É assim que seria. A ideia de ciência para o bem da humanidade, que não emprega recursos para explorar e expropriar. Construir um mundo justo e equitativo e usar informações, conhecimento e experiência para esse fim.

Estamos num tremendo período de catástrofe climática. Centenas de cientistas assinaram um documento há apenas algumas semanas dizendo que não podemos continuar como estamos. O planeta está em chamas [NT]. Aqui, os cientistas podem alavancar sua posição para o bem social, para a paz. Como a tecnologia é usada? Quem a controla? No interesse de quem? Essas são as perguntas que eu acho que importam e nos movem em direção ao tipo de ciência para as pessoas que a vossa pergunta coloca.

SftP: Vê forma de as comunidades que vivem em África fazerem o que nos diz: reivindicando a ciência para a luta anti-imperialista, para a luta contra a guerra, ou de outra forma resistindo ao seu uso para o militarismo?

Brewer: Há muita resistência a acontecer. Uma das coisas menos conhecidas é quem são os aliados e colaboradores do BAP. Muitos desses colaboradores estão fazendo tudo o que está a dizer. Temos uma série de organizações que estão enraizadas no continente, que trabalham com a equipa da África, com “Estados Unidos Fora da África”, [7] comprometendo-se na resistência política e organizando o povo com o tipo de educação política e conhecimento necessário. Por exemplo, em 1 de outubro de 2022, tivemos uma sessão por vídeo composto inteiramente por ativistas do continente que falaram sobre militarismo, o AFRICOM e a classe dominante no continente, o tipo de solidariedade para desmontá-lo, para tirá-lo do continente, que é uma parte importante do que essas organizações estão a fazer. E isso tem peso não apenas no continente. Deveria terem-se visto os comunicados dos media sobre o Haiti e a reação contra o envio de tropas dos EUA. [8] Muito disso tem a ver com autodeterminação. Se se tem um militar ligado à sociedade civil, é uma coisa. Se se tem um militar treinado pelo império, é algo muito diferente.

SftP: Quais são as demografias e geografias desses movimentos que têm surgido em toda a África? Como as mulheres estão desempenhando um papel? Como os jovens estão desempenhando um papel? Há tipos particulares de resistência mais vistos nas áreas rurais do que nas áreas urbanas? Surge de pessoas que também foram impactadas pelas mudanças climáticas e como elas interagem com o militarismo?

Brewer: Há muitas camadas no que acabou de colocar. Como mencionei antes, o continente é muito jovem, então muitos dos resistentes são jovens. As pessoas que foram mais prejudicadas pela ordem neocolonial são jovens, mulheres e pessoas que tradicionalmente vivem da agricultura. Isso catalisa as pessoas a responderem, a levantarem-se.

Se olharmos para a África do Sul, que eu diria que está mais ligada à economia política do capitalismo, onde a economia tem residido nas mãos da minoria branca. Aqui, até mesmo o acesso à habitação e à água potável é contestado. Grande parte dos protestos e resistência na África do Sul é contra a falsificação de documentos de propriedade de terras.[9] “As pessoas mais prejudicadas são as que menos contribuíram para as alterações climáticas”. [NT]

SftP: E o que os movimentos de libertação que construimos aqui nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar devem aprender com as lutas dos povos africanos contra o Africom, o militarismo e o imperialismo?

Brewer: Isso traz-nos de volta ao papel de uma organização como a BAP. Há um tal isolamento na nossa sociedade [EUA] acerca da profundidade e amplitude do que os Estados Unidos fazem em nome do povo, tudo envolto em questões de segurança e terrorismo, que são realmente fachadas para o que está subjacente. Um posicionamento de esquerda neste país, não pode lidar com questões internas isoladamente. Elas estão inextricavelmente ligados às questões globais. Não se podem resolver as questões internas, sem saber que esta é uma nação imperial com um império global, com oitocentas bases militares em todo o mundo. É com isso que estamos lidando: é assim que o poder é implantado. É assim que se mantém. É assim que é ameaçado.


[1] "Missão", Aliança Negra pela Paz, 11/novembro/2022, https://blackallianceforpeace.com/background-rationalization .
[2] Através do AFRICOM, o Departamento de Defesa dos EUA envolve-se em operações militares e treino com governos aliados em África com o objetivo de promover os interesses da política externa dos EUA na região. Desde que o AFRICOM foi criado, o número de ataques com drones, atividades militares, incidentes de violência mortal e grupos islâmicos insurgentes na África disparou. Oficiais militares treinados pelos EUA também foram responsáveis por várias tentativas de golpe em países como Burkina Faso, Mali, Guiné, Mauritânia e Gâmbia nos últimos anos. Ver "What We Do", United States Africa Command, de 14/novembro/2022, https://www.africom.mil/what-we-do; Nick Turse, "A violência aumentou na África desde que os militares fundaram o AFRICOM, segundo estudo do Pentágono", The Intercept, 29/julho/2019, https://theintercept.com/2019/07/29/pentagon-study-africom-africa-violence/.
[3] Biblioteca do Congresso dos EUA, Serviço de Pesquisa do Congresso, Comando da África: Interesses estratégicos dos EUA e o papel dos militares dos EUA na África, por Lauren Ploch, RL34003 (2011), 1.
[4] Preston Schmitt e Doug Erickson, "A explosão que mudou tudo", em Wisconsin (verão de 2020), https://onwisconsin.uwalumni.com/features/the-blast-that-changed-everything/ .
[5] Sob o programa 1033, o Departamento de Defesa transferiu mais de sete mil milhões de dólares em equipamentos militares excedentes dos EUA para quase dez mil jurisdições policiais, essencialmente gratuitamente. Veja também Charlotte Lawrence e Cyrus J. O'Brien, "Federal Militarization of Law Enforcement Must End", União Americana pelas Liberdades Civis, 12 de maio de 2021, https://www.aclu.org/news/criminal-law-reform/federal-militarization-of-law-enforcement-must-end.
[6] Devlin Epding, "MPD to Begin Using Drones", The Minnesota Daily, 20/outubro/2022, https://mndaily.com/274024/news/mpd-to-begin-using-drones/
[7 Para saber mais sobre a campanha US Out of Africa da BAP, veja https://blackallianceforpeace.com/usoutofafrica.
[8] Em fevereiro de 2021, o presidente do Haiti, Jovenel Moïse, recusou-se a renunciar quando seu mandato terminou. Enquanto o povo haitiano respondia com protestos em massa, os Estados Unidos apoiavam Moïse. Consulte "Últimas Declarações e Comunicados de Imprensa sobre o Haiti", Aliança Negra pela Paz, em 14/novembro/2022, https://blackallianceforpeace.com/haiti.
[9] Ver Nnimmo Bassey, Para cozinhar um continente: extração destrutiva e a crise climática na África (Pambazuka Press: Cidade do Cabo, 2012), p. 159.


[NT] Com toda a consideração que nos merece, a Dra. Rosa Brewer não é uma climatologista. Ela desconhece certamente que em 2019, um conjunto de 500 cientistas e profissionais de 13 países enviou uma carta ao secretário-geral da ONU contestando a doutrina da descarbonização, que a ignorou. Sobre este tema resistir.info, tem apresentado variados textos, de reputados cientistas na matéria ou trazendo o resultado do seu trabalho, nomeadamente: aquiaquiaquiaqui.

[*] PhD, ativista especializada em economia política, movimentos sociais e estudos na África e na diáspora africana. É professora de Estudos Afro-Americanos e Africanos na Universidade de Minnesota e ex-presidente do Departamento de Estudos Afro-Americanos e Africanos.

O original encontra-se em magazine.scienceforthepeople.org/vol25-3-killing-in-the-name-of/resisting-africom-and-beyond/

Esta entrevista encontra-se em resistir.info

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