Artur Queiroz*, Luanda
Ao lado do Diário de Luanda existia um botequim que lançou no mercado o katembe, bebida preciosa para quem sabe que a sede se espalha pelo corpo todo e ninguém consegue matá-la. A edição saía da máquina, estava tudo bem e eu ia beber um copinho, falar com o Jonika e conviver com os clientes habituais com quem não tinha uma conversa traduzível. Do outro lado da avenida era o manicómio, dirigido pelo Doutor Rosales. Naquela unidade hospitalar viviam vários doentes, abandonados pelas famílias porque eram “incuráveis”. Mas muito argutos. Faziam-me consultas médicas todos os dias e concluíam que eu, sim, era incurável.
O marechal Carmona mal me via entrar, puxava-me para a sua mesa e era logo a abrir: Hoje chamei o Salazar e demiti-o. Está demitido. Depois contava-me as maldades do ditador. Se eu o tratava apenas por “Carmona” ele emendava: Senhor Marechal Carmona dobra a língua! Outro cliente era o Director. Outro o Doutor. Na mesa do canto sentava-se um senhor “mistício”, casaco de linho branco com machas de vinho, capacete colonial e bigode fininho. Não falava com ninguém. Cabeça curvada sobre o copo de katembe, mãos pousadas na mesa e silêncio absoluto. Os outros chamavam-lhe Deus.
Eu mandava vir jarros de katembe e às tantas o convívio virava algazarra. Um dia deus saiu do seu canto, encostou o nariz ao meu e berrou: T’arrenego! Os outros mandaram-me sair do espaço comercial porque deus me excluiu.
Ai é seus sacanas? Então pagam vocês os jarros de katembe! Mas depois arrependi-me e continuei a pagar. Como fazia o fecho da edição tinha direito a um pacote de leite para desintoxicar das tintas e dos vapores do chumbo. Trocava o leitinho por vinho com pepsi-cola! Pagava a diferença.
Um dia fui resgatado. Aquele deus sorumbático saiu da mesa do canto, colocou-se à minha frente, passou a mão em cruz frente ao meu rosto e disse: És meu filho! Aquilo acabou em festa com muitos jarros de katembe que desafiavam o meu poder de compra. O enfermeiro da psiquiatria veio pedir-me para não embebedar os seus doentes. Isso podia matá-los. O Doutor, o Director, o Marechal Carmona e Deus nunca mais beberam comigo.
Os deuses são eternos, mesmo os que se embebedam com katembe e excluem um pobre repórter formado na velha escola da notícia. A prova é que Jeová fala todos os dias com os judeus. Até vai discursar na Knesset e debate com os deputados da extrema-direita política e religiosa. Um dia diz-lhes que podem ocupar tudo, desde o mar ao rio Jordão. Noutro dia manda-os abrir mais colonatos na Cisjordânia.
Ultimamente, devido à falta de katembe, ficou zangado e mandou matar todos os palestinos por andarem a conspurcar as propriedades que ele ofereceu aos judeus. Na última reunião do conselho de guerra até ameaçou fechar a agência imobiliária se os nazis de Telavive não exterminassem rapidamente os palestinos. Eu sabia, desde Baco, que os deuses são foliões. Mas nunca imaginei que fossem tão inimigos da Humanidade. É uma surpresa!
Deuses à parte, vou fazer umas perguntitas. Os nazis de Telavive mataram até ontem 6.150 crianças, número confirmado pela ONU. Entre os 8.000 palestinos desaparecidos sob os escombros das casas e prédios, calcula-se que mais de 80 por cento sejam mulheres e crianças. As organizações internacionais de jornalistas contavam, até ontem, a morte de 61 profissionais, uma redacção completa. Pergunto aos líderes políticos de todo o mudo: Se as vítimas dos nazis de Telavive fossem as vossas filhas e filhos o que faziam?
Biden, Blinken e Austin, se vossas mulheres e filhos fossem trucidados pelas vossas bombas fornecidas aos nazis de Telavive continuavam a fornecer? Continuavam a dizer que um regime que pratica o apartheid é democrático?
Israelitas de todas as religiões, todas as origens, todas as opções políticas, se os milhares de mortos em Gaza e Cisjordânia fossem vossas crianças e mulheres o que faziam? O Papa Francisco diz que os nazis de Telavive estão a fazer um massacre, não uma guerra. Acham que ele é a favor do terrorismo?
Ontem foi morto o cientista Sufyan Tayeh na Faixa de Gaza. Desde 7 de Outubro passado, os nazis de Telavive já mataram milhares de crianças que podiam vir a ser cientistas. Pergunto: Há crime mais grave contra a Humanidade? Mais uma pergunta estúpida: Não sabiam que o HAMAS é a organização política que ganhou as eleições na Faixa de Gaza e Cisjordânia? Não sabiam que o HAMAS é governo em Gaza há nove anos? Se eles são terroristas o que são os vossos nazis que governam Israel? Um deles, o ministro da Segurança, tem uma milícia provada e já foi condenado por terrorismo!
Os nazis de Telavive matam propositadamente crianças e mulheres. Destroem as casas e prédios na Palestina. Forçaram o deslocamento de quase dois milhões de seres humanos das suas terras em menos de um mês!
O mundo ficou horrorizado quando soube que ao longo de dois anos, 75.000 judeus foram deportados da França para os campos de concentração na Alemanha. O horror continuou quando se soube que 11 mil judeus foram deportados, ao longo de um ano, da Bulgária para territórios ocupados militarmente pela Alemanha. Mais 20.000 judeus foram forçados a ir para o gueto de Łódź, na Polónia, em pouco mais de um ano. Entre 8 de Novembro de 1941 e Outubro de 1942, os nazis de Hitler deportaram 49.000 judeus para Riga, Minsk, Kovno e Raasiku: Bielorrússia, Lituânia, Letónia e Estónia países que apoiavam o regime nazi. Os nazis de Telavive deportaram à força de bombardeamentos quase dois milhões de palestinos!
O meu cantautor favorito, Atahualpa Yupanqui, cantou assim: Dizem que Deus existe. Talvez sim ou talvez não. Mas é seguro que almoça à mesa do patrão. O Deus dos nazis de Telavive fala com eles e dá-lhes ordens de massacres, limpezas étnicas e genocídios. Que Deus nos livre dos deuses assim.
Depois do 7 de Outubro alguém acredita que Israel vai ter paz enquanto os nazis estiverem no poder? Alguém acredita que os judeus escolhidos por Jeová para operações imobiliárias e conversas íntimas vão alguma vez ser perdoados pelas vítimas dos crimes executados em nome da sua religião na Palestina? Se acreditam em milagres quem sou eu para vos contrariar.
Saia mais um jarro de katembe para a mesa do canto.
* Jornalista
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