Jesus nasceu numa terra ocupada e oprimida. A sua vida, morte e ressurreição exemplificam a luta por justiça. Ao fim de dois mil anos a luta do Povo Palestiniano continua a ser por justiça, igualdade de direitos, e liberdade.
Artur Pereira | AbrilAbril | opinião
Lamento, mas, por vergonha e aflita necessidade de me sentir vivo, não posso seguir a tradição e desejar festas felizes.
Lamento, não tem a ver consigo, tem a ver comigo. Desengonçado na minha condição, preciso de manter uma réstia que me ilumine de dignidade, mesmo que para outros olhares, tudo seja risível.
Lamento, não faz sentido celebrar o nascimento do menino, quando assistimos ao massacre dos inocentes num holocausto de horror. Ordenou Deus o genocídio? Como harmonizar as guerras de extermínio para a conquista da terra prometida com a perspetiva de um Deus de amor?
Salvos pela distância, invisíveis por opção, somos um povo eleito? Que cínicas narrativas sustentam o extermínio total de crianças, mulheres e homens? Na Palestina, na Galileia, em Belém, os Templos de todas as congregações não comemoraram a data, que seria feliz, se pela brisa não chegassem os gritos do pavor e o odor da matança.
Lamento, mas o grau da nossa compaixão não se pode medir pelos índices do nosso sectarismo, preconceito e ignorância. A nossa persuadida superioridade tem o valor do extermínio.
Crentes, ateus, gentios, brancos, negros, diversos nas opções e nas heranças culturais, todos somos a mesma raça.
Lamento, não estou a falar de guerra, estou a falar de terra ocupada. De um matadouro aberto ao céu onde o cheiro de sangue e carne queimada é perfume para o povo eleito. É a exibição do mal, cénico na prepotência, imundo e medieval. Dantesco.
Lamento o tom da mensagem, mas perante a infâmia não posso falar de horários de comboio, exibições de ginástica, ou inaugurações de autoestradas, tão do agrado dos espíritos modernistas.
Lamento, mas para isso existem doutores especialistas em montar qualquer sela, magalas avençados e concubinas, jornalistas de palha, excelências e prostitutos, seres oblíquos com horário nobre e cultura de rodapé.
Estes tempos sombrios não são tempos de festa, são tempos de luto, de combate e resistência.
Jesus nasceu numa terra ocupada e oprimida. A sua vida, morte e ressurreição exemplificam a luta por justiça. Ao fim de dois mil anos a luta do Povo Palestiniano continua a ser por justiça, igualdade de direitos, e liberdade.
As atrocidades sanguinárias do exército de ocupação israelita não poupam ninguém. Nem os mais velhos, nem os mais novos, nem muçulmanos, nem cristãos. Lamento, mas a justiça, para além de cega, também é muda e não tem coração.
As crianças de Gaza choram enquanto o mundo olha sem querer ouvir. As crianças de Gaza não olham o céu, porque lá estão os olhos dos assassinos à espreita para as matar.
Os assassinos estão em Telavive e em Washington com colaboradores que sem remorso balbuciam razões para a infâmia. A peçonha chega até nossas casas embalada por especialistas de pose canalha.
Netanyahu é um criminoso de guerra, o seu executivo é constituído por criminosos de guerra convencidos de um desígnio divino. Quem os justifica são igualmente cúmplices de crimes de guerra.
Gaza é pior que Oradour-sur-Glane1, pior que Khatyn2, pior que o Gueto de Varsóvia.
Hoje Gaza é a bússola moral do
mundo. Gaza já era um inferno antes de 7 de Outubro. Já o era no dia seis, no
dia cinco, em Setembro,
Lamento, mas se não se estiver chocado com o que se passa em Gaza, então algo de errado se passa com o sentido de humanidade. Se não sentirem náuseas perante as mentiras urdidas para desumanizar a vítima palestiniana e justificar o carrasco israelita, estão a comprometer aquilo em que dizem acreditar.
Se a isto não chamam genocídio, é um problema vosso. Se por minudências técnicas a isto não chamam limpeza étnica, é um problema vosso. Se por falta de unanimidade em assembleia não lhe chamam crimes de guerra, é um problema vosso.
Porém, isso não altera a natureza dos factos, nem vos limpa de culpa. E se assim pensam é porque decidiram por opção abraçar a escuridão.
O Estado de Israel, o poder político e militar de Israel, é racista e ideologicamente fascista.
O seu desprezo em relação ao direito internacional é equivalente ao de Mussolini e Hitler nos anos 30. O desrespeito pelos direitos humanos é igual a de qualquer ditadura. O comportamento das forças de segurança e militares é idêntico ao dos Nazis na Segunda Guerra Mundial. A permanente ameaça a quem se lhes opõe reproduz as práticas da Máfia.
Lamento, mas não me intimida a trágica realidade vivida do holocausto ao ponto de silenciar os crimes de guerra de Israel e o carácter nazista do seu comportamento hoje.
Gaza está destruída, mas não está derrotada. Em Gaza resistir é estar vivo. Em Gaza os chinelos abandonados ficam para o ocupante. Em Gaza a morte está sempre mais adiante. Em Gaza não existem lápides. Em Gaza os pais escrevem os nomes dos filhos nos braços destes, para quando mortos se saiba quem são. Nassen Mohra, doente renal de 10 anos de idade, diz para a jornalista, com voz de menino, que tem medo de morrer sem ver a família. É um momento televisivo.
Lamento, mas perante o massacre, da morte pela fome e doença, dos assassinatos, do desespero, não me peçam que sossegue o ódio legítimo, ou atenue a cólera que me faz desejar que os carrascos implorem pelas sua vidas.
A fúria em exterminar crianças palestinianas, já são mais de 9000, tem uma razão. Israel sabe que o Messias revolucionário que irá organizar a luta do seu povo até à libertação está hoje entre as crianças perseguidas de Gaza. Sabe que elas são os homens e mulheres que amanhã os irão vencer.
O povo da Palestina tem o direito de se defender do ocupante. Tem o direito de lutar para expulsar o invasor que mata os seus filhos, destrói as suas casas pilha os seus bens, destrói as suas lápides, envenena a sua água e arranca as suas oliveiras. Os palestinianos têm o legítimo direito de atacar o agressor.
A Palestina existe, apesar da catástrofe, os palestinianos irão levantar-se, erguer-se no meio da destruição e construir a sua pátria.
As crianças de Gaza que hoje resistem entre os escombros de rosto no chão respiram a terra de Gaza. A terra onde com as suas mãos irão construir a nova velha Gaza.
Aconteça o que acontecer, após a tragédia, casa a casa, rua a rua, os parques, os souks4, as escolas, e os templos tornarão a encher-se de vida.
As crianças de Gaza terão filhos que vão brincar e rir nas ruas de Gaza. Com eles subirão aos minaretes a ver o mar, passearão pela vegetação dos jnan5, onde contarão aos netos as batalhas pela liberdade, e eles, por sua vez, contarão aos que virão a nascer.
Lamento, mas hoje ainda não. Um dia.
«Um dia, serei o quero ser.
Um dia, serei um pensamento que nenhuma espada
nem livro carregará para a terra devastada.
Um pensamento como chuva na montanha fendida por uma folha de erva onde o poder não triunfará e a justiça não será fugaz.
Um dia, serei o quero ser.
Um dia, serei um pássaro, e arrancarei o meu ser do nada.»
Mahmud Darwish poeta e ativista político palestiniano.
- O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)
Notas:
1. Aldeia francesa alvo de massacre nazi em 1944.
2. Vila bielorrussa exterminada em 1943 por nazis.
3. Termo árabe que significa Catástrofe ou Desastre, utilizado para definir a ocupação israelita desde 1948.
4. Souk – derivação francesa da palavra árabe para designar mercado.
5. Palavra árabe que significa jardim.
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