terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Afegãos em Portugal pedem o reconhecimento do genocídio do povo hazara

“NINGUÉM FAZ PERGUNTAS”

João Biscaia* | Setenta e Quatro

Dezenas de afegãos hazara a viver em Portugal reuniram-se em Lisboa, no passado dia 21 de janeiro. Denunciaram os recorrentes ataques terroristas direcionados ao seu povo, por grupos ligados ao Daesh, e o apartheid de género imposto pelo governo talibã, que deixa as mulheres "prisioneiras" nas suas próprias casas.

Uma granada explodiu à porta de um centro comercial no bairro de Dasht-e-Barchi, em Cabul, capital do Afeganistão, na tarde do passado dia 11 de janeiro, quinta-feira. Duas pessoas morreram e 12 ficaram feridas naquele que foi o segundo ataque terrorista em menos de uma semana no bairro hazara. Não se sabe quem a lá pôs, mas quem vive naquela zona da cidade não tem grandes dúvidas.

Quatro dias antes, no dia 7 de janeiro, um ataque reivindicado pelo braço regional do Daesh, conhecido como IS-K, matou cinco pessoas e feriu 15. Os seus militantes fizeram rebentar um engenho explosivo dentro de um autocarro, segundo um comunicado emitido pela organização terrorista sunita. 

Há relatos de um terceiro ataque nessa semana, que terá matado quatro pessoas, e um ataque semelhante em novembro de 2023 matou sete pessoas e deixou feridas outras 20. A Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão já tinha alertado, em dezembro passado, para o aumento da violência contra a minoria hazara xiita em várias províncias afegãs.

Os ataques perpetrados pelo IS-K contra os muçulmanos xiitas da zona oeste de Cabul, na sua maioria gente do povo hazara, intensificaram-se desde 2016. Os militantes sunitas consideram-nos infiéis, descrentes e apóstatas. No dia 30 de setembro de 2022, pelas 7h30 da manhã, um bombista-suicida fez-se explodir no centro educativo Kaaj, onde centenas de jovens hazara, sobretudo raparigas, faziam um exame de preparação para a universidade.

As autoridades do governo talibã contaram 25 mortos, enquanto a investigação da Associated Press (AP) apontou para 52 vítimas mortais: “a grande maioria das vítimas foram raparigas e mulheres, incluindo 31 estudantes com idades entre os 17 e os 20 anos”. Zahra Amir, irmã de uma das estudantes assassinadas, disse à AP que “o bombista-suicida entrou na secção das raparigas e detonou-se em frente à minha irmã. Todas eram raparigas hazara”.

“Todas as semanas, no Afeganistão, são mortas pessoas da etnia hazara e ninguém faz perguntas”, queixa-se ao Setenta e Quatro Norina Sohail, de 25 anos, mulher afegã, hazara, e estudante de jornalismo. Foi uma das 30 pessoas que se juntaram no passado domingo, 21 de janeiro, na praça D. Pedro IV, vulgo Rossio, em Lisboa, para pedir o fim do genocídio dos hazara e do apartheid de género do Afeganistão. 

Norina diz que estes são hoje dois dos maiores problemas no Afeganistão. As suas irmãs, que estão em Cabul, “ficam em casa”. Não saem nem para visitar família: “se fossem apanhadam pelos talibã, sabe-se lá o que lhes poderiam fazer”. Ser hazara, xiita e mulher no Afeganistão é uma tripla condenação à discriminação e à violência. As suas casas “são as suas próprias prisões”.

Entre a modesta multitude de afegãos, e alguns amigos e curiosos, que se juntaram no Rossio naquele domingo à tarde, Norina assumiu o microfone e, com a ajuda da amplificação de uma pequena coluna de som móvel, leu um texto que terá sido replicado por porta-vozes hazara em todo o mundo. Além da manifestação em Lisboa, nesse dia houve protestos em várias cidades dos Estados Unidos, do Canadá, da Alemanha, de França, Espanha e Itália, do Brasil e da Indonésia.

Lembrando que os hazara são “mais de um quarto da população do Afeganistão”, terra de onde são nativos, Norina denunciou um genocídio que acontece “há mais de um século”. Sendo hoje o “principal alvo de ataques suicidas e massacres sistemáticos em escolas, hospitais e mesquitas nas últimas duas décadas”, é verdade que a perseguição aos hazara começou no final do século XIX, durante o reinado de Abdur Rhaman Khan.

Na década de 1890, cerca de 60% da população hazara foi exterminada. Até aos anos 1970, não podiam aceder ao ensino superior ou assumir certos cargos públicos.

Conhecido como “Emir de ferro”, foi quem unificou o Afeganistão. Para isso, reprimiu brutalmente os hazaras da região de Hazarajat, na década de 1890. Calcula-se que, na ação de limpeza étnica levada a cabo sobre os hazara, cerca de 60% da população tenha sido exterminada. Os sobreviventes viram as suas casas pilhadas, as suas terras confiscadas, e foram obrigados ao exílio, em êxodos massivos.

Desde aí que as populações hazara vivem em permanente fragilidade, alvo de discriminação e marginalização sistémicas e recorrentes perseguições e massacres, em grandes dificuldades sócio-económicas. Até à década de 1970, “uma grande percentagem da população hazara não podia aceder ao ensino superior, inscrever-se no exército ou assumir cargos públicos de nível superior”.

Essas políticas voltaram, leu Norina, com os talibã, que “confiscam os bens de comerciantes hazara” e submetem a comunidade a “matanças sistémicas e seletivas”, perpetuando “o ciclo do genocídio”. Se hoje a principal ameaça aos hazara são os ataques do IS-K, não é a primeira vez na história que os hazara sofrem às mãos dos talibã — seja diretamente ou com a sua conivência.

Entre 1997 e 2000, milhares foram massacrados no norte do Afeganistão. O número total de vítimas mortais é indeterminado, devendo ultrapassar as 20 mil. Houve vilas e cidades hazara sitiadas, e a fome alastrou. Em agosto de 1998, os talibã terão “executado metodicamente” entre 2000 a 5000 hazaras só na cidade de Mazar-i-Sharif, quando a ocuparam. Há relatos de homens e rapazes degolados à frente das suas famílias.

O pai de Sorya Karimyar foi morto pelos talibã nessa altura. Em Portugal há dois meses, depois de seis anos no Paquistão, a estudante de Ciências de Computação conta que o seu pai estava a trabalhar quando o raptaram. Depois, afirma, “torturaram-no e mataram-no só por ser hazara e xiita”. Na sua vida, ao crescer, sempre sentiu discriminação: “as pessoas dizem que os hazara são iletrados e ignorantes, mas não é verdade”.

“Sempre quisemos estudar, participar na sociedade, mas éramos impedidos”, explica. Os 20 anos sem os talibã no poder abriram-lhe algumas oportunidades como hazara e como mulher. Sorya conseguiu uma bolsa do governo afegão para estudar no Paquistão, onde estava quando os extremistas sunitas regressaram ao poder. Hoje, lamenta, o medo também regressou.

Diz que a sua família, em Parwan, no nordeste do Afeganistão, tenta adaptar-se, mas “a única coisa que lhes resta é a paciência”. “Por todo o Afeganistão as mulheres são perseguidas”, conclui. Os talibã têm detido e raptado arbitrariamente mulheres e meninas, acusando-as de contrariar as normas do uso do hijab. O porta-voz do ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício confirmou as detenções.

Ao Setenta e Quatro, Norina, que só conseguiu “entrar na escola quando já tinha 14 anos”, afirma igualmente que, desde que os talibã voltaram ao poder, as condições das mulheres “regrediram mais de duas décadas”. A aplicação de dezenas de decretos, nos últimos dois anos, que limitam as liberdades das mulheres, impede-as de estudar, de trabalhar e até de se movimentarem livremente. Uma das irmãs de Norina trabalhava numa alfaiataria, às escondidas. Quando o risco se tornou insuportável, teve de parar. Hoje, não sai de casa. 

Adianta Norina que centenas de mulheres e raparigas foram raptadas desde o início do ano: “há relatos de torturas e espancamentos e temos fotografias dos ferimentos de mulheres que foram libertadas” ao fim de alguns dias. O principal objetivo das detenções parece ser intimidar e humilhar, já que as mulheres afegãs têm desafiado o despotismo talibã de diversas maneiras, incluindo com protestos nas ruas.

É desconhecido o paradeiro de muitas dessas mulheres raptadas e, afirma Norina, há a possibilidade de violência sexual: “apesar de não haver, até agora, qualquer denúncia, é sempre uma possibilidade — devido a questões culturais, a honra do seu nome, as famílias podem querer esconder que as suas filhas sofreram violência sexual”.

A estudante de Jornalismo diz que é urgente o reconhecimento internacional tanto do continuado genocídio dos hazara como do apartheid de género imposto pelos talibã no Afeganistão. E pede ao “governo de Portugal que facilite a vinda de mulheres afegãs, mulheres hazara” para o nosso país, para que possam “estudar, trabalhar e viver em segurança”.

Zaki Rasa, de 29 anos e em Portugal desde novembro de 2021, lembra que em países como Reino Unido, Canadá e Austrália, onde há significativas comunidades afegãs e hazara, este assunto já foi levado aos respectivos parlamentos. “Os hazara que estavam a estudar, pararam; aqueles que tinham negócios, fecharam-nos; as mulheres têm medo de sair à rua e os jovens estão deprimidos”, expõe.

O início de um processo de reconhecimento do genocídio hazara poderia, crê o jovem de 29 anos, “dar alento às nossas famílias e comunidades que ficaram no Afeganistão, às outras minorias étnicas do país”, e obrigaria o mundo a “colocar pressão sobre a administração talibã” que “persegue mulheres e minorias”, “destruiu o sistema educativo”e nada faz para “impedir os ataques terroristas do IS-K em escolas, hospitais e mercados em zonas de povo hazara”.

Lembrando a recente acusação de genocídio feita contra Israel pela África do Sul no Tribunal Internacional de Justiça da ONU, o analista de dados, a viver no Porto, desafia Portugal a levar o genocídio dos hazara a discussão nas Nações Unidas: “temos provas e documentos suficientes para demonstrar que os hazara sofrem um claro genocídio há mais de 100 anos”.

* Jornalista do Setenta e Quatro. Formado em História Contemporânea

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