quarta-feira, 6 de março de 2024

Portugal – Eleições | O futuro visto do Chega

Teresa Pizarro Beleza e Helena Pereira de Melo* | Diário de Notícias | opinião

O inquietante projeto de Constituição “neutra” apresentado pelo partido de extrema-direita evidencia a ausência de uma clara ideia de comunidade justa. 

Uma Constituição traduz necessariamente uma ideia que um povo tem, num determinado momento histórico, do que deve ser uma comunidade justa. Todo o sistema jurídico de um país decorre dos valores e princípios nela consagrados. É, deste modo, importante o estudo dos projetos de revisão constitucional recentemente entregues à Assembleia da República. 

O projeto apresentado pelo Grupo Parlamentar Chega intitula-se “Uma Constituição para o futuro de Portugal” e, “a par de uma limpeza ideológica necessária”, propõe uma “reforma de fundo” que visa, entre outros aspetos, “a neutralidade ideológica da Constituição”. Esta afirmação causa-nos perplexidade: como pode haver uma Constituição axiologicamente neutra?

Para além de ser essencial que concretize uma conceção de Justiça previamente acordada, a própria opção por uma “neutralidade axiológica” é uma opção axiologicamente comprometida. É-nos explicado que o projeto apresentado pretende “produzir um espírito de agregação e unidade em que os portugueses se revejam e em que todos possam, pelo menos, enquadrar o seu modo de vida e a sua forma de ver o mundo”. Significará esta afirmação que, a ser aprovado, o texto constitucional proposto será simultaneamente interpretado de modo a prever a nacionalização e a privatização de meios de produção, a proteção da vida humana desde o momento da conceção e o direito à interrupção voluntária da gravidez, a proteção contra a discriminação injusta em razão do género ou da etnia e a abolição da referência às mesmas nos curricula escolares? Uma genuína Torre de Babel que, no limite, se traduziria na possibilidade de cada cidadão e cada cidadã escolher o seu conteúdo constitucional e – quem sabe – colocá-lo no Instagram: “art. 1.º: “Não deixes que os outros decidam o que fazes do teu tempo”; artigo 2.º: “Não morras no decurso de mais uma inútil reunião zoom”.

Não encontramos, no entanto, uma nítida conceção de Justiça subjacente a este projeto. São propostas alterações de cariz populista, como a “aplicação de penas de carácter perpétuo, a aplicação de penas que digam respeito a tratamentos químicos que se considerem necessários para a prevenção de crimes de natureza sexual, ou exceções ao princípio da presunção da inocência”. Estas medidas, que representariam um acentuar significativo da vertente de prevenção geral do sistema penal vigente, ignoram, desde logo, que o agente, em regra, não pensa no Código Penal quando pratica um crime. Ainda não houve notícia de quem numa mão tivesse um exemplar deste Código e, com a outra, molestasse um menor…

Previnem-se as “portas giratórias” com tal eficiência que, a quem tenha sido titular de um órgão de soberania ou de um cargo público, pouco mais lhe restará, se quiser cumprir o seu novo dever constitucional de trabalhar, do que abrir uma agência imobiliária em Mem-Martins. E isto se não tiver tutelado o sector da habitação. Ou talvez mesmo das obras públicas.

São feitas no projeto propostas aceitáveis para qualquer grupo parlamentar, como a de elevar para os 18 anos a idade em que se adquire capacidade nupcial, ou a de se garantir o acesso de todos os cidadãos a cuidados de medicina “paliativa, reprodutiva”.

O que é inquietante é a ausência de uma clara ideia de comunidade justa que este Partido se propõe defender. Ou aceitamos que é a atualmente consagrada, nas suas linhas gerais, na Constituição vigente (e, nesse caso, chega de considerar o Chega como um partido supostamente antissistema) ou ponderamos a hipótese de a Constituição poder ser encarada, por este Partido, como um documento com uma função apenas nominativa, como a que teve a Constituição de 1933. Se assim for, tudo será discretamente decidido no plano infraconstitucional através do Direito formal ou, sobretudo, por meio de práticas administrativas. Regressaremos aos procedimentos do Estado Novo, encerrado em 1974.

O nosso passado nesta matéria teve sérias consequências no exercício de direitos fundamentais de várias gerações de Portugueses. Recordemos a reabertura em 1961 do Campo de Trabalho de Chão Bom, Tarrafal, Cabo Verde, através de Portaria do então Ministro do Ultramar, onde não se explica que se trataria de um campo de concentração, de um “campo da morte lenta”, onde seriam internados, em condições desumanas, os que divergissem do programa político governamental.

Ouvimos, à distância, o ruído dos aviões que discretamente aterravam num dos extremos da ilha de São Tiago, para descarregarem a sua carga humana. Não somos embaladas pela nova cantiga “agora o André era o herói / E o seu cavalo só falava português / A noiva do cowboy / era a Rita além das outras três...”

Não queremos frigideiras como a do Tarrafal, em que Portugueses que pensem de forma diferente sejam barbaramente torturados e assados, agora no Continente, atentas as alterações do clima que nos prometem Verões mais quentes. Bem bastam as dificuldades que temos em manter as nossas casas num nível de temperatura razoável.

* Professoras da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Na imagem - Sim, está a ver bem. No Chega existe na 'ementa' a saudação nazi. Ventura demonstra e prova-o.

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