terça-feira, 11 de junho de 2024

Angola | Muros e Meninos de Rua -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Na época escrevi, falei, implorei. Por favor tirem os meninos da rua! Não tive êxito. A UNITA tinha desencadeado o assalto final ao poder e não havia força humana, militar ou civil, para enfrentar os sicários do Galo Negro. Todos os dias chegavam a Luanda centenas de crianças sem pais, sem qualquer acompanhante. Fugiam da morte. Na capital viviam nas ruas, sem muros mas também sem um lar. Mendigavam, concentravam-se perto dos hotéis em funcionamento e comiam os restos. Entre final de 1992 e meados de 1993 Luanda tinha milhares de crianças despejadas nas ruas.

Durante a campanha eleitoral Jonas Savimbi espalhou por todas as províncias milhares de militares fortemente armados. Ninguém detectou essa operação. Publicados os resultados eleitorais, a UNITA partiu para a tomada de poder pela força das armas. Ante o perigo, muitas famílias mandaram as suas crianças para Luanda. Não existiam estruturas para recebê-las. Ficaram a morar nas ruas. À medida que Luanda recebia milhões de deslocados da guerra do Galo Negro, o resto do país ficava sem autoridade do Estado. As poucas estruturas criadas depois da Independência Nacional ficaram reduzidas a escombros. Os poucos quadros foram assassinados ou fugiram. 

Este plano de demolição de Angola foi traçado, financiado e executado pelo estado terrorista mais perigoso do mundo e seus parceiros do ocidente alargado. Hoje a encarregada de negócios da embaixada dos EUA, Mary Emma Arnold, anunciou um investimento de nove milhões de euros (trocos que sobraram da Ucrânia) para construir “valores democráticos consistentes” em países africanos. Angola foi um dos felizes contemplados. Ontem partiram tudo, destruíram tudo, mataram, provocaram milhares de meninos de rua. Hoje têm o Programa de Apoio aos Partidos Políticos para uma Democracia Resiliente e Inclusiva. Os partidos angolanos estão salvos.

Os meninos de rua cresceram. Hoje são mulheres e homens, alguns perto dos 30 anos. Todas as ruas eram as suas casas. Todas as escolas eram a rua. Perceberam que existia a autoridade do Estado quando os encerraram em celas, atrás de muros muito altos. Uma mudança radical. Foram educados atrás dos muros. Mas a autoridade do Estado continua débil ou inexistente. A UNITA não deixou pedra sobre pedra. E ainda destrói tudo à nascença.

A autoridade do Estado continua incipiente ou simplesmente não existe. A UNITA não consente que ela exista. Sabota o Estado e sua autoridade de todas as maneiras e feitios. Convoca adultos que foram meninos de rua para destruir e vandalizar. A  forma de resolver o défice de autoridade do Estado é construir mais muros. Escolas são lugares a evitar. Os professores são inimigos perigosos. Há que exterminá-los. Muros, mais muros!

O MPLA e a UNITA concordaram fundir os seus projectos para a institucionalização das autarquias locais. Uma medida inteligente que se saúda e aplaude. O problema é que os deputados e as deputadas da UNITA têm a educação política dos meninos de rua. Os seus líderes do passado e de hoje apostaram tudo nos meninos de rua e na demoliçá0o da autoridade do Estado. Quando a legislação estiver concluída vamos para as eleições do Poder Local e a UNITA vai ulular que houve fraude eleitoral. Porque não tem dimensão nacional. Porque as populações do interior sabem o que significa o Galo Negro. Vamos ter mais meninos de rua! Muitos mais.

A técnica de educar os meninos de rua com muros continua em grande. O canal ferroviário entre o Bungo e o Aeroporto Internacional António Agostinho Neto é lixeira, latrina a céu aberto, mercado informal, espaço exclusivo para actos de vandalismo, instigados e pagos. Os administradores municipais ao longo do canal não existem para lá das folhas de salários e da distribuição de mordomias. O governador de Luanda está mesmo muito feliz no seu papel e ainda não percebeu que a sua autoridade também abrange o canal ferroviário em toda a sua extensão até às terras de Icolo e Bengo. A autoridade do Estado não existe na província da capital. Imaginem no resto do país.

O Presidente João Lourenço viajou de comboio entre o Bungo e o Aeroporto Internacional António Agostinho Neto. Viu que não tem autoridade nenhuma. Que o seu ministro dos Transportes ainda tem menos. A administração do Caminho-de-Ferro de Luanda menos, muitíssimo menos. A Polícia Nacional desapareceu da área que não tem mais de 45 quilómetros de extensão. 

Os combóis descarrilam porque carris e travessas são roubados ou atulhados de lixo. Os comboios não andam. Os comboios matam pessoas que vivem na linha. Está resolvido. Sua excelência pegou na caneta das exonerações e nomeações (menos o chefe Miala que esse é intocável) e avançou com ajustes directos para a construção de muros de um e outro lado do canal ferroviário. Os muros são a pedra de troque na governação. O Estado mostra a sua autoridade com muros. Governar é comprar para sacar comissões. A democracia alimenta-se de muros. O Estado de Direito fica entre os muros. 

O  Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE) não precisa de muros. Acaba de informar os poucos trabalhadores ainda ligados às empresas de Carlos São Vicente que até à próxima segunda-feira são obrigados a abandonar as instalações, no edifício da Praia do Bispo. Mas não vão ser meninas e meninos de rua. O instituto vai arranjar um cubico para todos se concentrarem. Onde a autoridade do Estado existe, é para nós mais do que uma mãe! Quanto ao leilão dos hotéis da AAA Activos foi erguido um muro de silêncio. Secretismo total!

Uma correcção. Defendi que em Angola a corrupção é exclusiva de uma casta especial. Errado. O combate à corrupção é um excelente negócio para tornar ainda mais ricos os ricos eleitos por João Lourenço. Mas também é um papão para todos os que ousem pôr em causa o clube exclusivo criado pelo sucessor de José Eduardo dos Santos. Ai de quem se apresente à liderança do MPLA em 2026! Leva logo com combate à corrupção. Vai l para trás dos muros.

O combate à corrupção é um truque para manter no poder os escolhidos e afastar os duvidosos ou mesmo inimigos. Bem pensado! Depois digam que filho de enfermeiro não é campeão de xadrez e outras artes marciais. Grande bassula!

Venham mais muros e mais combatentes contra a corrupção. A dinastia iniciada com João Lourenço vai perpetuar-se no poder até nascer um Agostinho Neto que nos devolva a liberdade e a dignidade.

* Jornalista

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