segunda-feira, 25 de novembro de 2024

A CRISE DO CAPITALISMO TARDIO E A BANALIDADE DO MAL

A banalidade do mal fabricada pela alienação é o caminho aberto para o desastre que só a resistência contra-hegemónica pode e deve travar.

Fernando Rosas*

O conceito de banalidade do mal foi adiantado por Hannah Arendt no livro publicado em Maio de 1963 sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém entre Abril de 1961 e Maio de 1962, data em que foi executado após confirmada a sua sentença de morte. Eichmann era o tenente-coronel das SS, destacado na Gestapo, a polícia política da Alemanha nazi, onde se tornara o principal “especialista” da “questão judaica”, vindo a ser responsável pela gigantesca operação logística que implicou o extermínio da população judia da Alemanha e de todos os países sob ocupação do III Reich. Ou seja, o recenseamento e concentração coerciva dos judeus em cada país, a inventariação minuciosa dos seus bens com vista à expropriação pelo Estado nazi, o planeamento e efetivação do transporte ferroviário e distribuição pelos campos de extermínio ou de concentração e finalmente a recolha dos despojos rentáveis deixados pelas vítimas (joias, dentes de ouro, cabelos…) e seu encaminhamento para o Ministério da Economia e o Tesouro do Reich.

O estudo do volumoso processo judicial contra o Obersturmbannführer responsável pela vertente logística do holocausto e a análise do seu comportamento em tribunal levaram H. Arendt a formular a ideia de que a barbárie criminosa do nazismo só fora possível mediante a disseminação generalizada, qual fungo, daquilo que designa como a banalidade do mal. Isto é, falência do pensamento crítico, a incapacidade de distinguir entre o bem e o mal, a normalização da barbárie, da prepotência, da injustiça, o sonambulismo social face à expulsão e à discriminação, em suma o “colapso moral” das atitudes e comportamentos dominantes. É importante precisar dois pontos essenciais na abordagem de Arendt sobre a banalidade do mal.

O primeiro, é que ela encara o mal em termos claramente seculares, ou seja, recusando qualquer explicação transcendental, “demoníaca”, fruto somente de monstros e demónios (as elites do nazismo) metafisicamente exteriores às realidades que os geravam. Pelo contrário, a autora resiste à facilidade de conferir um caracter mítico à banalidade do mal, considerando-o como inerente aos regimes totalitários emergentes no século passado, no fundo, um produto da capacidade destes totalitarismos contemporâneos “alterarem sistematicamente a natureza humana, tornando supérfluos os seres humanos, na sua pluralidade, espontaneidade e individualidade”1.

O segundo ponto liga-se ao anterior: é impossível instalar-se a banalidade do mal sem a colaboração e a cumplicidade das vítimas, isto é, sem esse colapso moral resultante da incapacidade de pensar, julgar e comparar gerada pela alienação, pelo medo ou pela manipulação. O que transforma “pessoas vulgares”, insuscetíveis de cometer crimes em condições diferentes, em cúmplices por ação ou abstenção ou em co-autores das piores barbaridades e de formas extremas de injustiça e de arbítrio. As elites do nazismo e a sua vasta rede de servidores são obviamente responsáveis pelos crimes hediondos que cometeram. Mas aquilo que sobretudo inquieta Arendt é a capitulação moral da maioria e a sua incapacidade de precisar e refletir. É isso que historicamente caracteriza o mal nas sociedades totalitárias: a banalização do intolerável e consequentemente, a sua viabilização impune.

Para escândalo da sociedade israelita dos anos 60 do século XX e de boa parte da intelectualidade europeia ou norte americana, Arendt defendeu nesse trabalho que sem a cumplicidade dos conselhos judaicos no Reich e nos diversos países ocupados (que selecionaram, organizaram e pagaram as deportações das comunidades judaicas para os campos de extermínio e de concentração) a “solução final” não teria sido possível e o número de judeus massivamente assassinados teria sido claramente inferior ao que foi. Da mesma forma se há-de perguntar se seria possível a política de genocídio e massacre contra o povo palestiniano levado a cabo em Gaza e Cisjordânia pelo Estado de Israel apoiado pelos EUA, sem a cumplicidade silenciosa dos governos e de boa parte da opinião pública dos países da União Europeia e do Ocidente em geral. Novamente é a banalização do crime que não só o viabiliza como gera a sua impunidade a nível internacional. Na realidade, o conceito de banalidade do mal volta a ser central na análise atual da crise do capitalismo tardio.

O impasse do capitalismo tardio e o autoritarismo de novo tipo

É sabido que a crise do capitalismo na época do neoliberalismo decorre da sua prolongada incapacidade estrutural em superar um longo período de taxas de acumulação medíocres e de estagnação e inflação no seu crescimento global. Não obstante os níveis de concentração do capital sem precedentes e até do registo de taxas de lucro impressivas nos conglomerados ligados ás novas tecnologias digitais, em termos globais, a economia capitalista arrasta-se na estagflação: a natureza especulativa e parasitária do capitalismo dominante gera o seu próprio impasse.

Os gestores económicos e políticos do capital financeiro – o centro social-democrata e a direita tradicional em cada Estado ou nos organismos supranacionais – tentam superar o impasse sistémico reforçando autoritariamente a imposição da estratégia neoliberal contra qualquer tipo de resistência social ou política. A privatização dos setores estratégicos da economia ou dos serviços públicos universais para potenciar a acumulação parasitária e rentista; a especulação financeira em detrimento do fomento produtivo; o desagravamento fiscal das grandes fortunas; a ofensiva contra os direitos do trabalho para maximizar a extração da mais valia relativa e absoluta (precarização, urberização, despedimentos, deslocalizações, salários baixos, agravamentos das condições de trabalho, sobre exploração do trabalho imigrante, restrições ao direito à greve, à liberdade sindical e à contratação coletiva…); a corrida aos armamentos para disputar pela guerra esferas de domínio imperiais; a preservação do lucro sujeitando as políticas preventivas da catástrofe ambiental e climática: é todo um programa onde, a prazo mais ao menos curto, a democracia política e social é encarada como um obstáculo a remover.

Parte do centro e da direita clássica optam neste contexto por uma drástica viragem à direita para limpar autoritariamente as resistências sociais e políticas à única solução de que dispõem: aplicar sem peias nem concessões os programas de restruturação neoliberal, na prática, radicalizar o processo económico, social, político e cultural de regressão civilizacional já em curso. Parece estarem a fazê-lo por dois caminhos mais ou menos simultâneos consoante os países: adaptando programaticamente e na prática governativa as políticas e prioridades da nova extrema direita que tem vindo a cavalgar a crise e o descontentamento com sucesso, ou aliando-se a ela em entendimentos parlamentares ou governativos. Em ambos os casos, o papel da extrema direita fascizante ao conferir alguma base eleitoral e de massas à radicalização de uma direita clássica em declínio, torna essa aproximação quase inelutável e permite antever a emergência a curto ou médio prazo de regimes autoritários de tipo novo, talvez as novas formas de um fascismo adaptado às condições atuais. Na realidade, só a resistência social e política, nacional e internacional, das opiniões públicas e das mobilizações populares pode travar essa deriva fascizante que se alimenta a si própria com os sucessos que obtém: o triunfo de Trump nos EUA anuncia tempos difíceis para a democracia política e para as esquerdas socialistas e antifascistas em todo o mundo.

Uma subversão política deste teor, pela sua dimensão estrutural e impacto social exige não só a captura e reconfiguração autoritária do Estado por essa frente das direitas fascizantes, mas sobretudo, para se lograr impor, necessita da fabricação do consenso social que permita a aceitação, (ativa ou passiva) da ordem nova. Ou seja, precisa de conquistar a hegemonia ideológica, estabelecer uma mundivisão, um sistema de valores e representações que organize a adesão ou a sujeição. E, tal como no fascismo paradigmático, isso não se obtém só pela coerção, pela violência repressiva, exige a adequada combinação desta com a massiva arregimentação do acatamento a todos os níveis da vida social. Essa gigantesca ofensiva ideológica por parte das direitas neoliberais e fascizantes, essa guerra cultural contra a democracia, o socialismo e todas as expressões do pensamento emancipatório está em curso. A sua virulência e expansão são financiadas, equipadas e treinadas pelo espantoso poder dos conglomerados que controlam oligopolisticamente as novas tecnologias digitais e promovem com sucesso, através das redes, sociais e não só, a manipulação algorítmica e o condicionamento dos comportamentos, a exploração dos instintos primitivos, a mentira, a demagogia, a intimidação, o culto acéfalo do chefe bufão e histriónico.

O facto é que este circo parece ir ao encontro do medo, da raiva, do descontentamento dos vastos setores intermédios e assalariados da população vítimas do rasto de destruição económica e social do capitalismo neoliberal ou ameaçados por ela, mas que se sentem abandonados pela governança das elites tradicionais do centrismo social-democrata e da direita clássica e descreem da capacidade de uma esquerda enfraquecida se constituir como alternativa. A velha direita tendencialmente aliada á nova extrema direita, cavalgam por isso, com sucesso, os sentimentos de frustração generalizados, devidamente aplanados e instrumentalizados, por mais paradoxal que isso pareça, em apoio das formas mais radicais e violentas de exploração e prepotência política. Esse sucesso radica na socialização do medo e da insegurança, na difusão da crença irracional acerca das “virtudes” da desigualdade, da lei do mais forte, da impiedade social, como se fossem uma expressão da “ordem natural” das coisas. É uma espécie do retorno político e cultural do darwinismo social contra a solidariedade e a ação coletiva, desdobrado no recrudescer do racismo, da misoginia, da homofobia e no fomento de novas formas de obscurantismo geradoras da apatia e da falência do espírito crítico face à barbárie e ao arbítrio. E por aí se regressa, nesta época do capitalismo tardio, à banalidade do mal. A essa espécie de grande colapso moral que faz de boa parte das vítimas aliadas do Apocalipse contra si próprias. A banalidade do mal fabricada pela alienação é o caminho aberto para o desastre que só a resistência contra-hegemónica pode e deve travar.

Tentarei ilustrar brevemente o problema atual da banalidade do mal relativamente a duas questões cruciais que hoje se colocam nacional e internacionalmente: a questão da guerra e da paz e a questão da conciliação ou do conflito de classes.

A questão da guerra e da paz

Não há provavelmente nos dias que correm melhor exemplo daquilo que resulta do sonambulismo cívico e do colapso moral da cidadania rendida à barbárie do que a atitude da governança britânica e europeia e de largos setores da opinião pública “civilizada” e “liberal face à guerra genocida conduzida pelo Estado do Israel contra o povo palestiniano. Perto de 45 000 mortos (70% dos quais mulheres e crianças) resultantes dos bombardeamentos e da invasão militar ilegal de Gaza e da Cisjordânia; recurso massivo  à tortura, ao assassinato e às prisões arbitrárias; cerco total à população de Gaza massacrada e sem fuga possível; bloqueio da ajuda humanitária e proibição da intervenção da agência das Nações Unidas responsável por organizar e distribuir o apoio alimentar, médico e sanitário (com a prisão e assassinato de vários dos seus funcionários); violação sistemática dos direitos mais elementares da população árabe – todo este rasto sangrento de crimes de guerra e genocídio começou por merecer da União Europeia, da maioria dos governos que a integram, do governo britânico e de boa parte dos seus apoiantes uma vergonhosa aprovação sob o pretexto de se tratar do “direito de defesa” do governo fascizante de Israel. Quando o protesto mundial e até a condenação dos tribunais internacionais cresceram, a aprovação das elites ocidentais transformou-se em silêncio hipócrita. Vergada à suserania imperial dos EUA, a “Europa dos direitos” e do “império da lei” tornou-se cúmplice ativa do crime de genocídio e extermínio do povo palestiniano, desculpou e banalizou a barbárie permitindo a impunidade da matança e da violação do direito internacional. A banalidade do mal instalou-se para apoiar a agressão. Com a vitória de Trump nas eleições presidenciais norte-americanas pode passar-se impunemente e com apoio reforçado aos passos seguintes do programa da extrema-direita sionista: a anexação de Gaza, da Cisjordânia e de parte do Líbano ao “Grande Israel” e o ataque militar ao Irão. Daí para a guerra mundial pode ser um pequeno passo. A banalização e a impunidade do genocídio desaguam na guerra. Hoje como em 1939.

A questão da desigualdade e da consciência de classe

Só aparentemente há contradição entre o culto ideológico das “virtudes” da desigualdade e da competição proclamada pelos políticos e publicistas da direita e da extrema-direita e a apologia que todos eles fazem do fim da luta de classes e da harmonia essencial entre o capital e o trabalho. Na realidade, a difusão neocorporativa e organicista das conceções defensoras do “abraço” entre patrões e trabalhadores como fruto da “ordem natural” das coisas e da luta de classes como anomalia artificialmente induzida pela subversão socialista é a porta aberta para a imposição das formas mais brutais da desigualdade e injustiça social e para a criminalização como “comportamento desviante” de qualquer forma de organização e resistência de classe. Hoje como no passado, no fascismo clássico, o corporativismo é o caminho para a sujeição do trabalho ao capital.

Por duas razões óbvias. Porque com a sua pregação sobre a conciliação de classes, os oligarcas preparam a neutralização ou a proibição da liberdade sindical, a limitação ou a interdição do direito à greve, o esvaziamento da contratação coletiva, a facilitação dos despedimentos, a desvalorização real dos salários, a generalização da precariedade e da uberização, o agravamento das condições e da duração do trabalho, em suma, a maximização da extração da mais valia e do lucro

Em segundo lugar, porque para atingir esses objetivos eles necessitam de anestesiar a consciência de classe do mundo do trabalho, fazer com que o proletário deixe de se reconhecer como sujeito transformador da sociedade e se assuma como “classe média” colaborativa com o patronato. Ou seja, o capital precisa de impor um ambiente ideológico de desmobilização e alienação, de virar os trabalhadores contra os seus próprios interesses, de banalizar a exploração. Desde logo a do trabalho imigrante, lançando os trabalhadores “nativos” contra os imigrantes, sem que eles percebam que tendencialmente esse padrão de exploração é o que o patronato quer impor globalmente.

Para essa ofensiva ideológica – que tem progredido com sucesso no mundo ocidental – contribui a própria estrutura do capitalismo neoliberal e os seus efeitos na natureza e na consciência da classe operária: a desmobilização e dessindicalização decorrente da hegemonia das ideias de ausência de alternativa ao capitalismo financeiro vitorioso do pós-Guerra Fria; a progressiva falência dos PCs de obediência soviética e dos seus aparelhos sindicais sem se constituir uma alternativa à esquerda suficientemente forte para resistir com sucesso ao refluxo e à deriva para a direita (salvo, na Europa, o caso da França Insubmissa); o processo objetivo de segmentação, precarização, uberização, deslocalização e desemprego do mundo do trabalho assalariado, com reflexos profundos na sua unidade e mobilização.

O mundo do trabalho mudou objetiva e subjetivamente na época presente do capitalismo tardio. E essas alterações contribuem para o recuo da consciência de classe, para o sonambulismo social e a conciliação, para a desmobilização. É esse o fruto da banalização da exploração e da aceitação das piores formas de injustiça e desigualdade. Mais uma vez a banalidade do mal anda de mãos dadas com a regressão social e civilizacional. A esquerda socialista tem de encontrar as soluções políticas e sindicais adequadas a contrariar essa tendência. No rescaldo do triunfo do trumpismo nos EUA têm surgido pontos de vista que propõem o regresso a um certo economicismo reformista e o abandono da ligação da luta do trabalho aos combates feministas, anti-racistas e anti-homofóbicos. Não parece ser esse o caminho. A exploração e a opressão do capitalismo agem como um todo. A centralidade da luta pela emancipação do trabalho é inseparável do combate ao patriarcalismo, ao racismo e à homofobia. A luta pelo socialismo, pela transformação da sociedade, só pode ser a luta toda. A esquerda que se enganar acerca disto caminha inevitavelmente para a irrelevância.

Nota: 1 - António Araújo e Miguel Nogueira Brito, “Introdução. Arendt em Jerusalém”, in Hanna Arendt, Eichmann em Jerusalém. Uma Reportagem sobre a Banalidade do Mal, Ítaca, 2017, p. 32

* Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda

* Publicado em Esquerda.net

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