Escritor palestino, que se salvou do massacre, narra uma Gaza destroçada: corpos insepultos, fome e sinfonias de bomba. E a tentativa de matar a memória de seu povo, com o bombardeio irracional de bibliotecas, museus e templos milenares
Bernardo Gutierrez, no CTXT |
Tradução: Rôney Rodrigues |
Em 7 de outubro de 2023, enquanto
Atef Abu Saif nadava no Mar Mediterrâneo, ele notou foguetes e explosões soando
em todas as direções. Ele havia dormido na casa de sua irmã Halima,
Atef Abu Saif – autor de cinco romances, dois livros de contos e dois de ensaios – propôs-se a registar compulsivamente a ferocidade do ataque israelense contra a população civil. Escrevia no computador, no celular. Gravava mensagens em árabe e inglês que enviava aos seus editores. Às vezes, caminhava três quilômetros até conseguir wi-fi um posto da Cruz Vermelha. Outras vezes, arriscava aproximar-se dos tanques israelense para captar um sinal, “algo perigoso” que tinha de fazer por causa da sua “responsabilidade como escritor”. “Os meios de comunicação ingleses e árabes não me deram muito espaço. Então, resolvi anotar tudo. A cidade de Gaza estava sendo assassinada e com ela a nossa memória. Disse a mim mesmo, se eu morrer, quero ser lembrado. Senti que poderia morrer a qualquer momento”, diz Atef.
Até cruzar a fronteira egípcia com seu filho Yasser para retornar à sua casa na Cisjordânia, Atef escreveu diariamente durante noventa dias. O resultado é Quero estar acordado quando morrer. Diário de um Genocídio, livro de caráter urgente lançado por uma aliança internacional de editoras que o publicou em julho “simultaneamente para denunciar a situação da população palestina e pedir um cessar-fogo”: Blackie Books (espanhol e catalão); Berria (Basco), Comma Press (Reino Unido), Beacon Books (Estados Unidos) e Jacana (África do Sul) em inglês; Angústúra (islandês), Noura Books (indonésio), Chiheisha Publishing (japonês), Società Informazione (italiano), Elefante (português), Second Thesis (coreano) e Pinar Publications (turco). “Através da escrita, podemos manter os lugares vivos, podemos lembrar as ruas que agora estão em escombros, as casas que agora foram destruídas”, escreve Atef no livro.
“Não somos números.” Atef nasceu em 1973 no campo de refugiados de Jabalia, na Faixa de Gaza. Desde a primeira Intifada, ele tem fragmentos de balas no corpo. “Eu tinha quinze anos quando os soldados israelenses atiraram em mim e incrustaram esses fragmentos no meu fígado. O cirurgião britânico acalmou minha mãe e disse: seu filho sobreviverá. Cada vez que encontro a morte diante de mim, no meio da rua, tento reunir coragem e me convencer de que vou sobreviver, assim como o cirurgião inglês disse à minha mãe que eu faria. Mas desta vez é diferente. Eu sei que não posso mentir. Vejo isso em todos os lugares, é a morte, posso sentir isso. Posso tocá-la”, escreve ele. Na guerra de 2014, Atef publicou o artigo We are not numbers, que acabou se tornando o slogan da Autoridade Nacional Palestina e promovendo o projeto wearenotnumbers.org, no qual escritores tornam visíveis as vidas dos palestinos ocultadas pelos números. “Os números escondem nossas vidas. Para os assassinos não somos seres humanos. Nossas memórias e histórias não existem. Somos números. Se você ler que quinze palestinos morreram num ataque israelense, isso significa quinze vidas, quinze histórias de amor. Quinze memórias da juventude. Quinze casas. Quinze sentimentos de perda. Quinze palestinos que esperam na fila da padaria para alimentar a sua família”, afirma Atef com firmeza.
Quero estar acordado quando morrer é uma crônica detalhada. À medida que os dias de guerra passam, a Faixa de Gaza torna-se um cemitério a céu aberto. As crianças escrevem seus nomes na pele de seus corpos para que suas famílias possam encontrar seus corpos caso morram. Os edifícios caem “como colunas de fumaça”. A cidade de Gaza é transformada num “lixão de borracha e escombros”. A comida é escassa. As filas se multiplicam. Uma para água. Outra para pão. Outra para carregar celulares. Os cadáveres estão se acumulando por toda parte. Nas ruas, “crianças confusas, homens irritados, mulheres cansadas”. Ovelhas e cabras famintas vagam pela cidade. As pessoas não andam, elas correm. Um homem usa sapatos femininos porque “são mais confortáveis”. Zumbido de drones. Estrondos constantes de explosões. As bombas destroem hospitais, escolas, campos de refugiados, o Centro Cultural al-Shawa, os Centros de Imprensa. Os mísseis destroem sete padarias, mercados e barracas de vendedores ambulantes. Uma noite, Atef vai dormir sem ter comido nada. Às vezes ele cai na cama depois de trinta e seis horas sem pregar o olho. Tentar salvar vidas é mais importante que dormir.
Ao longo do diário, o leitor toma
conhecimento da destruição da Cidade de Gaza. Muitos moradores estão mortos sob
os escombros, sem possibilidade de resgate. “Tudo ao nosso redor está morto e
silencioso. Há apenas corvos e um ou outro cachorro perdido vasculhando os
escombros. Os israelenses querem que toda Gaza tenha esta aparência.
Insuportável. Infernal. O objetivo é sempre nos nos fazer retroceder no tempo,
fazer com que a cidade pareça pobre e feia novamente”, escreve Atef. “Quando eu
estava escrevendo o livro, Gaza era um ser violado, cortado
A fuga a pé que Atef faz com o filho para sair do norte de Gaza em direção ao sul, atravessando a nova “cortina de ferro” desenhada por Israel, é uma das cenas mais duras do diário: “Espalhados ao acaso, em ambos os lados do caminho, há dezenas e dezenas de cadáveres. Apodrecendo. Derretendo, ao que parece, no chão. O cheiro é horrível. Uma mão se estende em nossa direção da janela de um carro incendiado, como se estivesse me implorando por alguma coisa. Corpos sem cabeça aqui. Cabeças decepadas ali. Membros e partes de corpos jogados fora e abandonados à própria sorte. Não olhe, digo novamente a Yasser. Continue andando, filho.
Destrua a cultura. No dia em
que os soldados israelenses invadiram o apartamento histórico de Atef em Gaza,
ficaram chocados com a sua coleção de três mil livros. Um dos soldados arrancou
da parede uma reprodução da Mona Lisa de Leonardo da Vinci. “Eles não
gostam da ideia de que temos educação, que temos uma cultura, que somos cultos.
Quando Napoleão Bonaparte ocupou a Palestina, usou o palácio Pasha durante três
dias como escritório, mas o exército israelense destruiu-o com tanques”, diz
ele num tom desolado. Atef Abu Saif, ministro da Cultura entre 2019 e abril de
2024, denuncia como Israel destruiu intencionalmente qualquer manifestação
cultural
Atef não hesita em descrever a guerra em Gaza como genocídio. “Até que ponto a guerra deve ser assimétrica para deixar de ser guerra. É apenas um massacre”, escreve ele. Ele acusa Israel, com o seu “exército selvagem e sangrento”, de limpeza étnica e terrorismo de Estado. “O genocídio, como nunca me canso de explicar aos europeus, não significa que se mata todo mundo, mas que se tem a intenção de o fazer. De acordo com o direito internacional, o genocídio impede a entrada de alimentos e medicamentos. Recordemos que no terceiro dia de ocupação, quando o norte de Gaza estava sendo evacuado, um ministro israelense disse que queriam construir ali um parque de diversões, uma espécie de Disneylândia para fazer churrascos. Eles ainda não tiraram essa ideia da cabeça”, sustenta Atef.
O escritor não hesita em
responsabilizar os Estados Unidos e as potências ocidentais pelo genocídio.
“Israel é seu filho mimado. Estamos pagando o preço pelos erros europeus da
Segunda Guerra Mundial”, esclarece. No livro, Atef conta como, em 1948, o
Estado judeu veio à tona, semeando o caos na Palestina: “800 mil árabes foram
expulsos à força de suas casas, homens executados, mulheres estupradas, aldeias
queimadas, cidades inteiras massacradas. O terror foi o que destruiu aquela
metade da Palestina e o que deu origem ao novo país (…) A minha avó foi
obrigada a deixar a sua linda casa em Jaffa, pensando que voltaria dentro de
alguns dias. Isso foi há setenta e cinco anos.” A escalada bélica comandada por
Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, é na sua opinião uma cortina
de fumaça: “A expansão da guerra é uma forma de escapar à pressão de uma guerra
civil. Quando iniciam uma guerra no Líbano, ninguém lhes pede que acabem com a
guerra
O futuro da Palestina. Atef, membro do partido político Fatah, herdeiro da antiga Frente Nacional de Libertação da Palestina, acredita que o futuro da Palestina não pode ser concebido excluindo o Hamas. “Não há futuro sem o Hamas. O povo decidirá se o Hamas geriu bem o 7 de Outubro e as suas consequências. As pesquisas dizem que os habitantes de Gaza estão descontentes com o Hamas. Eles estão pagando o preço e suas vozes não estão sendo ouvidas. Mas para a maioria dos palestinos em todo o mundo, mesmo que discordem de algumas ações, o 7 de Outubro é um ato heroico. Saberemos mais sobre tudo isso quando houver discussão aberta e eleições, algo que eles não estão permitindo”, afirma Atef.
A certa altura da entrevista, Atef abaixa o tom. O cansaço toma conta de seu rosto. Ele explica que viu sua família morrer nesta guerra. Mais de cem parentes assassinados. Seu pai morreu em abril, por falta de remédios. Ele confessa que poderia estar morto se tivesse aceitado o convite da meia-irmã. “Eu deveria ter passado aquela noite com eles. Ainda guardo o SMS em que ele me disse: Ei, meus sobrinhos estão aqui. Venha passar a noite conosco. Hoje, toda a família está morta”, confessa com resignação. Quando parece que está prestes a sair do prumo, Atef recupera o ânimo, como se estivesse agarrado ao salva-vidas de um trecho de seu próprio livro: “E quando você ouvir que outra pessoa morreu, significa que você, ao contrário, continua vivo”.
O ex-ministro se recompõe. Sorri. Tira forças da fraqueza. Reconhece que tudo contribui para parar o genocídio. Seu livro. Esta entrevista. A iniciativa judicial liderada pela África do Sul. Que a Espanha reconheça o Estado Palestino. As manifestações de apoio. “O mundo tem que romper a narrativa de Israel de que isto é legítima defesa”, escreveu em seu livro. “A questão não é estar com os palestinos ou com os israelenses – afirma com ânimo recobrado – mas consigo mesmo como ser humano. É a favor ou contra o genocídio? A favor ou contra o assassinato de crianças inocentes? Não estou pedindo que você esteja conosco, mas que esteja consigo mesmo, com sua ética.”
La última página de Quiero
estar despierto cuando muera corre por parte de los editores: “El 30 de
diciembre, Atef y su hijo, que había cumplido dieciséis años tan solo dos días
antes, lograron cruzar la frontera egipcia y ponerse a salvo. Muchos de sus
familiares y amigos siguen atrapados en
A última página de Quero Estar
Acordado Quando Morrer é por parte dos editores: “Em 30 de
dezembro, Atef e seu filho, que havia completado dezesseis anos apenas dois
dias antes, conseguiram cruzar a fronteira egípcia e chegar
Quero estar acordado quando morrer, de Atef Abu Saif, publicado pela Editora Elefante, parceira editorial de Outras Palavras. Quem colobora com nosso jornalismo tem desconto de 20%. Saiba como
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