Maria Castello Branco* | Expresso, opinião
Trump não quer apenas proteger indústrias. Quer proteger narrativas. As tarifas tornam-se, então, armas — metáforas tangíveis do “nós contra eles”. O mundo que Trump está a moldar não é um mundo de cooperação, mas de competição feroz, de jogos de soma zero. E, neste jogo, as democracias liberais, que dependem de normas internacionais, são as primeiras a perder
Desde os anos 1980 que Donald Trump repete a mesma ladainha: o comércio internacional é um esquema de perdas, um jogo de soma zero, em que uns poucos exploram os outros. Os acordos multilaterais são jaulas burocráticas que enfraquecem o poder americano. Prefere o confronto direto — ameaças, golpes simbólicos, vitórias isoladas. Esta abordagem, contudo, não é revolucionária. É uma reciclagem das velhas narrativas protecionistas que, ao longo da história, alternaram entre pragmatismo e isolacionismo destrutivo.
Trump não disfarça a sua afinidade por William McKinley, apelidado pelos jornais da época como o “Napoleão da proteção”. Ao rebatizar a montanha Denali, no Alasca, como Mount McKinley, Trump não reescreve apenas mapas. Molda uma fábula: McKinley como arquétipo de uma América forte — tarifária, territorial, implacável. Mas a História, mesmo talhada a martelo, resiste. McKinley, autor do infame Ato Tarifário de 1890, que elevou as taxas alfandegárias de 38% para quase 50%, pagou caro por isso: os preços dispararam, o descontentamento popular explodiu, e os republicanos enfrentaram uma derrota histórica no Congresso. Já como presidente, McKinley revelou-se mais pragmático do que dogmático — por princípio ou necessidade —, advogando por acordos comerciais recíprocos, “no espírito liberal”, e alertando que as guerras comerciais afinal eram “improdutivas”. Este lado mais conciliador, porém, não interessa a Trump. A sua versão de McKinley não é histórica; é mítica.
Trump não quer apenas proteger
indústrias. Quer proteger narrativas. As tarifas tornam-se, então,
armas — metáforas tangíveis do “nós contra eles”. Quando ameaçou a
União Europeia, ou quando anunciou
taxas de 25% sobre o México e o Canadá — e mais recentemente sobre a Colômbia —,
o objetivo não era só económico, mas estratégico: no caso europeu,
pressionar para que a UE comprasse mais gás natural e petróleo americanos. No
caso do México e do Canadá, reafirmar que a dependência destes países em
relação ao mercado americano os torna vulneráveis. As tarifas, para Trump,
não são um fim
E, no entanto, esta guerra não é nova. Está gravada na própria história dos Estados Unidos. Desde Alexander Hamilton, no final do século XVIII, até William McKinley e Teddy Roosevelt, no princípio do século XX, o protecionismo foi uma pedra angular da política económica americana. As tarifas, como Hamilton argumentou no seu famoso Report on Manufactures de 1791, eram necessárias para proteger as indústrias nascentes do país da concorrência europeia. Para Hamilton e, mais tarde, para McKinley, o protecionismo não era apenas uma política económica; era uma declaração de independência. Uma forma de construir uma economia robusta, patriótica, autossuficiente. Mas o que funcionou num mundo pré-globalização dificilmente funcionará hoje.
A lição está ali, nos livros de história, para quem quiser aprender. Mas Trump não está interessado em aprender com a história. Está interessado em reescrevê-la.
E essa reescrita, se não for desafiada, tem consequências. Não apenas para os Estados Unidos, mas para todos os que negociam com eles. O mundo que Trump está a moldar não é um mundo de cooperação, mas de competição feroz, de jogos de soma zero. E, neste jogo, as democracias liberais, que dependem de normas internacionais, são as primeiras a perder.
O perigo real do trumpismo não é a destruição atómica do sistema global, mas a sua corrosão lenta e deliberada. Uma desconstrução que nos força a olhar para trás, para os McKinleys e Hamiltons, em vez de para a frente. O maior erro que os adversários de Trump podem cometer não é subestimá-lo.
É assumir que ele está a jogar no mesmo tabuleiro que eles.
* Maria Castello Branco - Comentadora política da CNN Portugal, autora do podcast Lei da Paridade
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