sábado, 13 de agosto de 2011

DE NAGASAKI A FUKUSHIMA: AS TRAGÉDIAS ATÓMICAS DO JAPÃO




AMY GOODMAN – CARTA MAIOR

“O segredo, uma vez aceito, converte-se em vício”. Essas palavras poderiam ser usadas para descrever a administração da catástrofe nuclear pelo governo japonês, mas elas foram pronunciadas pelo cientista nuclear Edward Teller, um dos principais responsáveis pela criação das duas primeiras bombas atômicas. A bomba de urânio denominada “Little Boy” foi lançada no dia 6 de agosto de 1945 sobre a cidade de Hiroshima, Japão. “Parece que tudo o que é tocado pelas armas nucleares ou pela energia nuclear provoca ocultamento e perigo para o público”, diz o escritor Greg Mitchell.

Os níveis de radiação nos reatores nucleares de Fukushima, no Japão, aumentaram nas últimas semanas, alcançando níveis registrados de até 10.000 milisieverts (mSv) por hora em um mesmo lugar. Este foi o nível máximo informado pela Companhia Elétrica de Tóquio (TEPCO), a desprestigiada empresa proprietária da central nuclear, ainda que esse número seja o máximo medido pelo Contador Geiger. Em outras palavras, os níveis de radiação literalmente ultrapassam todas as medições.

A exposição a 10.000 milisieverts durante um curto período de tempo tem consequências fatais, provocando a morte em poucas semanas. (A título de comparação, a radiação total de uma radiografia dentária é de 0,005 mSv, e a de uma tomografia computadorizada do cérebro é de 5). O New York Times informou que, após o desastre, funcionários do governo japonês ocultaram os prognósticos oficiais sobre a direção da chuva radioativa por causa do vento e do clima, para evitar a custosa evacuação de centenas de milhares de habitantes.

“O segredo, uma vez aceito, converte-se em vício”. Essas palavras poderiam ser usadas para descrever a administração da catástrofe nuclear pelo governo japonês, mas elas foram pronunciadas pelo cientista nuclear Edward Teller, um dos principais responsáveis pela criação das duas primeiras bombas atômicas. A bomba de urânio denominada “Little Boy” foi lançada no dia 6 de agosto de 1945 sobre a cidade de Hiroshima, Japão.

Três dias mais tarde foi lançada a segunda bomba, de plutônio desta vez e denominada “Fat Man”, sobre a cidade de Nagasaki. Por volta de 250 mil pessoas morreram por causa das explosões e de seus efeitos imediatos.

Ninguém sabe com exatidão a quantidade de pessoas que morreram ou padeceram de enfermidades nos anos seguintes às explosões, desde as dolorosas queimaduras que atingiram milhares de sobreviventes até os efeitos tardios como enfermidades provocadas pela radiação e câncer.

A história dos bombardeios sobre Hiroshima e Nagasaki é, em si mesma, a história da censura e da propaganda militar estadunidense. Além das filmagens que foram escondidas, as forças armadas impediram o acesso de jornalistas às zonas das explosões. Quando o jornalista vencedor do Prêmio Pulitzer, George Weller, conseguiu entrar em Nagasaki, seu artigo foi pessoalmente censurado pelo general Douglas MacArthur. O jornalista australiano Wildred Burchett conseguiu entrar em Hiroshima logo depois das explosões e, dali, escreveu sua famosa “advertência ao mundo”, na qual descreveu a propagação massiva de enfermidades como uma praga atômica. Mas as forças armadas estadunidenses criaram a sua própria praga. William Laurence, jornalista do New York Times, também era empregado do Departamento de Guerra. Laurence informou fielmente a posição do governo estadunidense, insistindo em que os “japoneses descreviam sintomas que não pareciam verdadeiros”. Lamentavelmente, ganhou o Prêmio Pulitzer por sua propaganda.

Greg Mitchell escreveu sobre a história e as sequelas de Hiroshima e Nagasaki durante décadas. Neste novo aniversário do bombardeio a Nagasaki, perguntei a Mitchell acerca de seu mais recente livro “Encobrimento atômico: Dois soldados estadunidenses, Hiroshima e Nagasaki, e o melhor filme jamais realizado”.

“Parece que tudo o que é tocado pelas armas nucleares ou pela energia nuclear provoca ocultamento e perigo para o público”. Mitchell disse que, durante anos buscou imagens filmadas pelas forças armadas estadunidenses nos meses posteriores ao lançamento das bombas; foi atrás dos envelhecidos realizadores cinematográficos e, apesar de décadas de classificação de documentos por parte do governo, foi um dos jornalistas que tornou públicos os incríveis arquivos cinematográficos coloridos. Como parte do Informe sobre Bombardeios Estratégicos dos Estados Unidos, as equipes de filmagem documentaram não só a devastação das cidades, mas também produziram uma documentação clínica, registrando de perto as graves queimaduras e as feridas desfiguradoras sofridas por civis, entre eles muitas crianças.

Em uma cena, se vê um homem jovem com feridas em carne viva em todas as suas costas, enquanto recebe tratamento. Apesar das graves queimaduras e de ter sido tratado meses mais tarde, o homem sobreviveu. Sumiteru Taniguchi, hoje com 82 anos de idade, é diretor do Conselho de Pessoas Afetadas pela Bomba Atômica de Nagasaki. Mitchell achou comentários recentes de Taniguchi em um jornal japonês que vinculam a bomba atômica com o atual desastre de Fukushima:

“A energia nuclear e o ser humano não podem coexistir. Nós, os sobreviventes da bomba atômica, sempre dissemos isso. E, no entanto, o uso da energia nuclear foi disfarçado de “pacífico” e continuou avançando. Nunca se sabe quando haverá um desastre natural. Não é possível dizer que nunca haverá um acidente nuclear”.

Nesta dolorosa fusão de novos e velhos desastres, deveríamos escutar as vítimas sobreviventes de ambas as catástrofes.

(*) Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.

(**) Tradução: Katarina Peixoto

PALESTINA PEDE OFICIALMENTE ADESÃO À ONU




TSF - Hoje às 14:18

O presidente palestiniano Mahmud Abbas apresentará a 20 de Setembro um pedido de adesão plena do Estado palestiniano às Nações Unidas, declarou à AFP o ministro palestiniano dos Negócios Estrangeiros.

O pedido será entregue ao secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, no dia de abertura da próxima Assembleia-geral da ONU, em Nova Iorque, precisou Riyad al-Malki.

No final de Julho os palestinianos tinham já anunciado a sua intenção de pedir em Setembro ao Conselho de Segurança a adesão do Estado da Palestina à ONU e excluíram o retomar das negociações com Israel antes da Assembleia-geral das Nações Unidas.

Os palestinianos procuram uma adesão com plenos direitos na ONU e o reconhecimento da Palestina com as fronteiras que tinha na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental em junho de 1967, antes da Guerra dos Seis Dias e da anexação de territórios palestinianos por Israel, com o apoio dos EUA.

No entanto, os EUA têm manifestado oposição a esta intenção e ameaçam bloquear o pedido palestiniano através do seu direito de veto no Conselho de Segurança.

Crise : Economia mundial entrou numa "fase nova e perigosa", diz presidente do BM




Económico com Lusa  

A economia mundial entrou numa "fase nova e perigosa", disse hoje o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick.

A economia mundial entrou numa "fase nova e perigosa" e os países da zona do euro têm de reagir rapidamente, disse hoje o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick.

"Estamos no início de uma tempestade nova e diferente, esta não é a mesma crise de 2008 (...) Nas últimas duas semanas, passamos de uma recuperação difícil - com um bom crescimento nos países emergentes e em alguns países como a Austrália, mas muito mais hesitante em países mais desenvolvidos - para uma fase nova e mais perigosa ", disse Zoellick, numa entrevista publicada no sábado pela revista semanal The Weekend Australian.

Segundo o responsável, a crise na zona euro "pode ser o maior desafio" para a economia global, que exorta os países europeus a tomarem medidas o mais rapidamente possível

A INCLUSÃO E PAZ SOCIAL





“Walter Benjamin disse: da modernidade, que ela nasceu sob o signo do suicídio; Sigmund Freud sugeriu que ela foi dirigida por Tânatos – o instinto da morte. As utopias diferiam em muitas de suas pormenorizadas prescrições, mas todas elas concordavam em que o “mundo perfeito” seria um que permanecesse para sempre idêntico a si mesmo, um mundo em que a sabedoria hoje aprendida permaneceria sábia amanhã e depois de amanhã, e em que as habilidades adquiridas pela vida conservariam sua utilidade para sempre. O mundo retratado das utopias eram também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia: nada “fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos ou miseráveis”. (autor: Zygmunt Bauman – livro: O Mal-Estar da Pós-Modernidade – Editora ZAHAR – Rio de Janeiro 1998 )

A leitura contextualizada das ideologias totalitárias demonstra estarem sempre, vigiando possíveis alvos para fazerem guerras. No século passado, o nazismo argumentando e justificando a extrema necessidade da “pureza de raça” eliminou milhões de pessoas. O comunismo também sustentou “a pureza de classe”, tirando a vida de milhões de pessoas. Muito dinheiro, muito ouro foi saqueado. O maior problema de nosso planeta é a ânsia, é a ambição de honras ou riquezas, ou seja, a mania, a psicótica carência de ostentação. É desviado o crescimento interior para o exibicionismo exterior. Explode a violência e matamo-nos uns aos outros pela confirmação materialista. Desapareceram totalmente as meditações espiritualizadas.

Aqui em nosso Brasil, a presidenta Dilma Rousseff estabeleceu a erradicação da fome e da miséria como prioridades de seu governo. Este debate sobre a erradicação da miséria nos remete a uma reflexão acerca do conceito de riqueza e pobreza. “Não se deve olhar o progresso de uma economia verificando o aumento da riqueza dos que já são ricos, mas na diminuição da pobreza daqueles que são muito pobres”. (Amartya Sen). É oportuno refletir sobre o mais pobre dos pobres na nossa realidade – favelas urbanas – índios – moradores de rua – excluídos.

Nós começamos a nos inspirar por escolhas sociais cada vez mais inteligentes, abrindo espaços para importantes decisões. Já estamos falando neste tema, o que significa o surgimento de políticas públicas, que modificarão o cenário de exclusão social, como condição prioritária no centro de nosso desenvolvimento. Paira no ar soluções de determinação, para que acertadas proposições libertem o Brasil da miséria extrema. Que Deus ilumine os nossos políticos em sábias decisões sociais.

Precisamos purificar a qualidade de nossos pensamentos humanísticos, elaborando de nós para nós mesmos conceituações sociais civilizadas, que privilegiem a comunicação positiva, de que ninguém é superior em dignidade ou direitos a ninguém. Também é importante o relacionamento construtivo que faz bem ao aperfeiçoamento de nossas relações interpessoais. As discriminações econômicas e sociais deprimem o nosso imaginário afetivo, por testemunharmos, a cada passo, quadros de miséria extrema. Em orações sempre peço que o sofrimento humano desapareça de nosso planeta.

Para ativar uma linguagem persuasiva de emoções saudáveis é necessário aceitarmos a verdade autêntica, de que somos iguais, ou seja, somos seres humanos. Ficamos equilibrados quando desejamos o bem de todos. É muito decadente uma visão de mundo dominadora, é muito atrasado um pensamento impositivo, excludente, e também hierarquizante. Mas o certo do certo, é que só seremos felizes, quando todos forem felizes.

Não é correto avaliar o progresso econômico só pela riqueza, mas no soerguimento da pobreza daqueles que são muito pobres. Um novo ideal saudável de imaginário social e coletivo é vital para o avanço da cultura da paz, fortalecida no acesso horizontal dos conhecimentos, característica maior da pós-modernidade. Deus nos ajudará a superar a pobreza social extrema, e o nosso país se tornará o modelo no mundo em inclusão social.

Com efeito, a cultura da paz tem o seu próprio sentimento, a sua própria linguagem de emoções de união, marcada pela convicção, marcada pela crença de que o mais importante de tudo está centrado no valor do ser humano. A nossa avaliação positiva, a nossa comunicação positiva, o nosso relacionamento construtivo constituem os fortes pilares do saudável desejo de pessoas solidárias. Sairemos da pobreza dos valores atuais e mergulharemos na riqueza dos valores humanitários.

Já começamos a perceber os outros seres humanos gentilmente em nosso convívio emocional e espiritual. Rezamos por eles, torcendo para que se libertem dessa injustiça social e superem este terrível resgate de sofrimento. Examinemos os nossos corações para descobrir o que sabemos sobre a paz, e então conversemos e trabalhemos juntos para humanizar os nossos tempos. O direito à vida pressupõe a existência digna que deve ser amparada pelos poderes públicos.

As vezes, penso profundamente nas causas do ser humano ter sido preterido pelas riquezas da terra.Nunca como em nossos tempos, aconteceu tão severa ausência dos valores humanos, e tão distante a nossa união com Deus. É indiscutível que somos fundamentalmente iguais pela nossa origem e pela nossa destinação. Iguais na nossa natureza humana.

Ter ou não ter bens materiais não quer dizer ser mais ou ser menos humano. A nossa igualdade está plasmada ao ser humano e não ao ter bens. A igualdade aos seres humanos pobres está relacionada, está interligada à dignidade humana. Não me refiro a igualdade absoluta, mas a igualdade de tratamento para a sua inclusão social. Devem ser assegurados os direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à dignidade humana, daí a responsabilidade universal com o bem estar dos excluídos.

A solidariedade corresponde à fraternidade que a Declaração Universal dos Direitos Humanos recomenda. Que Deus inspire as políticas compensatórias de proteção, de promoção, de inclusão. Já estão incluindo em projetos de proteção especial aos que estão em condições de vulnerabilidade: – crianças – Idosos – índios – adolescentes – jovens. Num dia, não muito distante, entenderemos que não se trata de proteger uma vida física, mas a existência de acordo com a dignidade humana.

*Lúcia Regina Diniz Trindade é palestrante, graduada em Literatura e Filosofia e mora em Porto Alegre, Rio Grande do Sul

REPRESSÃO MILITAR NA SÍRIA ALASTRA A MAIS DUAS CIDADES




PÚBLICO

Média de mortes intensifica-se no Ramadão

Veículos militares entraram na cidade portuária de Latakia, na Síria, onde na véspera se tinham manifestado cerca de 10 mil pessoas, quando a repressão aos protestos se intensificou durante o mês do Ramadão.

As preces diárias que marcam o final do jejum são pretexto para que as pessoas se juntem e saiam da mesquita para protestar. Testemunhas dizem que o número de vítimas aumentou durante o Ramadão: “Costumávamos ter 20 mortos a cada sexta-feira, mas agora há 20 pessoas a serem mortas quase todos os dias”, comentou um habitante à BBC.

Mais de 1700 pessoas morreram já na repressão aos protestos que começaram em Março, dizem organizações sírias – os EUA chegaram mesmo a falar em mais de 2000 mortos. As autoridades afirmam que morreram 500 soldados e polícias em acções que descrevem como sendo de gangs criminosos.

Habitantes de Latakia descrevem uma cidade sob fogo intenso depois da entrada de 20 tanques militares. Mal os carros de combate entraram, mutios habitantes da cidade decidiram fugir, na maioria, mulheres e crianças.

Também a cidade de Qusair, perto da fronteira com o Líbano, foi palco de uma acção militar que matou pelo menos onze pessoas, segundo activistas.

Enquanto isso, continuava a acção em Deir al-Zor, que como Hama tem sido fortemente atingida pela ofensiva lançada no início do Ramadão. E um médico, que falou sob anonimato à Reuters, relatou que muitos manifestantes que saíam das mesquitas após as orações de sexta-feira foram recebidos com tiros dos militares. Pelo menos três morreram. O médico acrescentou ainda que desde o início da ofensiva no domingo, morreram pelo menos 80 pessoas em Deir al-Zor – a maioria, vítima de tiros de snipers.

Em toda a Síria, após as manifestações de sexta-feira que tiveram como mote “Só nos ajoelhamos perante Deus”, contabilizaram-se 16 mortes. Entre elas estava uma mulher grávida e um adolescente de 16 anos num subúrbio de Damasco.

Cuba: Fidel Castro celebra hoje 85 anos no sexto aniversário afastado do poder





Aparentemente mais forte, mas com uma presença pública mais discreta nas últimas semanas, Fidel Castro cumpre hoje 85 anos sem se esperar que participe nas celebrações em sua homenagem que se realizam em Havana. É já o sexto aniversário que o histórico líder da revolução cubana celebra desde que deixou o poder.

Ontem, começaram as celebrações com um concerto de homenagem a Fidel – “Serenata da Fidelidade” – com músicos cubanos e de outros oito países. Mas nem Fidel, nem Raul estiveram presentes no teatro de Havana Karl Marx.

Fidel deu sinais de vitalidade no último ano, mas já passam seis semanas desde que publicou, a 3 de Julho, o último texto das suas “Reflexões”. Desde que transferiu a chefia de Estado e de Governo para o irmão mais novo, a 31 de Julho de 2006, Fidel só começou a reaparecer em público algumas semanas antes de completar 84 anos.

E foi apenas em Março deste ano, a três semanas do VI Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), que Fidel confirmou já não ser líder do partido, cargo a que renunciou quando passou o testemunho ao actual chefe de Governo. Num artigo publicado na imprensa oficial durante os dias do Congresso, Fidel anunciou ter pedido para abandonar o comité central do PCC.

Das poucas aparições públicas recentes que Fidel fez contam-se algumas fotografias e imagens da visita ao Presidente venezuelano, Hugo Chávez, no hospital em Havana onde este recuperava de uma operação para retirar o tumor na região pélvica.

A FRONTEIRA DA CULTURA




Mia Couto [*]

Durante anos, dei aulas em diferentes faculdades da Universidade Eduardo Mondlane. Os meus colegas professores queixavam-se da progressiva falta de preparação dos estudantes. Eu notava algo que, para mim, era ainda mais grave: uma cada vez maior distanciação desses jovens em relação ao seu próprio país. Quando eles saíam de Maputo em trabalhos de campo, esses jovens comportavam-se como se estivessem emigrando para um universo estranho e adverso. Eles não sabiam as línguas, desconheciam os códigos culturais, sentiam-se deslocados e com saudades de Maputo. Alguns sofriam dos mesmos fantasmas dos exploradores coloniais: as feras, as cobras, os monstros invisíveis.

Aquelas zonas rurais eram, afinal, o espaço onde viveram os seus avós, e todos os seus antepassados. Mas eles não se reconheciam como herdeiros desse património. O país deles era outro. Pior ainda: eles não gostavam desta outra nação. E ainda mais grave: sentiam vergonha de a ela estarem ligados. A verdade é simples: esses jovens estão mais à vontade dentro de um video-clip de Michael Jackson do que no quintal de um camponês moçambicano.

O que se passa, e isso parece inevitável, é que estamos criando cidadanias diversas dentro de Moçambique. E existem várias categorias: há os urbanos, moradores da cidade alta, esses que foram mais vezes a Nelspruit que aos arredores da sua própria cidade. Depois, há uns que moram na periferia, os da chamada cidade baixa. E há ainda os rurais, os que são uma espécie de imagem desfocada do retrato nacional. Essa gente parece condenada a não ter rosto e falar pela voz de outros.

A criação de cidadanias diferentes (ou o que é mais grave de diferentes graus de uma mesma cidadania) pode ou não ser problemática. Tudo isso depende da capacidade de manter em diálogo esses diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta é: será que esses diferentes Moçambiques falam uns com os outros?

A nossa riqueza provém da nossa disponibilidade em efectuarmos trocas culturais com os outros. O Presidente Chissano perguntava num texto muito recente sobre o que é Moçambique tem de especial que atrai a paixão de tantos visitantes. Esse não sei quê especial existe, de facto. Essa magia está ainda viva. Mas ninguém pensa, razoavelmente, que esse poder de sedução provém de sermos naturalmente melhores que os outros. Essa magia nasce da habilidade em trocarmos cultura e produzirmos mestiçagens. Essa magia nasce da capacidade de sermos nós, sendo outros.

Eu venho falar aqui de um diálogo muito particular de que poucas vezes se faz alusão. Refiro-me à nossa conversa com os nossos próprios fantasmas. O tempo trabalhou a nossa alma colectiva por via de três materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum desses materiais parece estar feito para uso imediato. O passado foi mal embalado e chega-nos deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente vem vestido de roupa emprestada. E o futuro foi encomendado por interesses que nos são alheios.

Não digo nada de novo: o nosso país não é pobre mas foi empobrecido. A minha tese é que o empobrecimento de Moçambique não começa nas razões económicas. O maior empobrecimento provém da falta de ideias, da erosão da criatividade e da ausente interna de debate. Mais do que pobres tornamo-nos inférteis.

Eu vou questionar essas três dimensões do tempo apenas para sacudir alguma poeira. Comecemos pelo passado. Para constatarmos que esse passado, afinal, ainda não passou.

O QUE FOMOS – UM RETRATO FEITO POR EMPRÉSTIMO

O colonialismo não morreu com as independências. Mudou de turno e de executores. O actual colonialismo dispensa colonos e tornou-se indígena nos nossos territórios. Não só se naturalizou como passou a ser co-gerido numa parceira entre ex-colonizadores e ex-colonizados.

Uma grande parte da visão que temos do passado do nosso país e do nosso continente é ditada pelos mesmos pressupostos que ergueram a história colonial. Ou melhor, a história colonizada. O que se fez foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a ideia que África pré-colonial era um universo intemporal, sem conflitos nem disputas, um paraíso feito só de harmonias.

Essa imagem romântica do passado alimenta a ideia redutora e simplista de uma condição presente em que tudo seria bom e decorreria às mil maravilhas se não fosse a interferência exterior. Os únicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de fora.

Esta visão já estava presente no discurso da luta armada quando se retratava os inimigos como "infiltrados". Isto acontecia, apesar do aviso do poeta que dizia que "não basta que seja pura e justa a nossa causa é preciso que a justiça e a pureza existam dentro de nós". As nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como sendo compostas apenas de gente pura. Se havia mancha ela vinha de fora, que era o lugar onde morava o inimigo.

O modo maniqueísta e simplificador com que se redigiu o chamado "tempo que passou" teve, porém, outra consequência: fez persistir a ideia de que a responsabilidade única e exclusiva da criação da escravatura e do colonialismo cabe aos europeus.

Quando os navegadores europeus começaram a encher de escravos os seus navios, eles não estavam estreando o comércio de criaturas humanas. A escravatura já tinha sido inventada em todos os continentes. Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os asiáticos e os próprios africanos. A escravatura foi uma invenção da espécie humana. O que sucedeu foi que o tráfico de escravos se converteu num sistema global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma a enriquecer o seu centro: a Europa e a América.

Vou contar-vos um episódio curioso que envolve uma senhora africana chamada Honória Bailor Caulker num momento em que ela visitava os Estados Unidos da América.

Dona Honória Bailor-Caulker é presidente da câmara da vila costeira de Shenge, em Serra Leoa. A vila é pequena mas carregada de História. Dali partiam escravos, aos milhares, que atravessavam o Atlântico e trabalhavam nas plantações americanas de cana-de-açúcar.

Dona Honória foi convidada para discursar nos Estados Unidos da América. Perante uma distinta assembleia a senhora subiu ao pódium e fez questão em exibir os seus dotes vocais. Cantou, para espanto dos presentes, o hino religioso "Amazing Grace". No final, Honória Bailor-Caulker deixou pesar um silêncio. Aos olhos dos americanos parecia que a senhora tinha perdido o fio à meada. Mas ela retomou o discurso e disse: quem compôs este hino foi um filho de escravos, um descendente de uma família que saiu da minha pequena vila de Shenge.

Foi como que um golpe mágico e o auditório se repartiu entre lágrimas e aplausos. De pé, talvez movidos por uma mistura de sentimento solidário e alguma má-consciência, os presentes ergueram-se para aclamar Honória.

- Aplaudem-me como descendente de escravos?, perguntou ela aos que a escutavam.

A resposta foi um eloquente "sim". Aquela mulher negra representava, afinal, o sofrimento de milhões de escravos a quem a América devia tanto.

- Pois eu, disse Honoria, não sou uma descendente de escravos. Sou, sim, descendente de vendedores de escravos. Meus bisavós enriquecerem vendendo escravos.

Honória Bailor Caulker teve a coragem de assumir-se com verdade com a antítese do lugar comum. Mas o seu caso é tão raro que arrisca ficar perdido e apagado.

O colonialismo foi outro desastre cuja dimensão humana não pode ser aligeirada. Mas tal como a escravatura, também na dominação colonial houve mão de dentro. Diversas elites africanas foram coniventes e beneficiárias desse fenómeno histórico.

Porque é que estou a falar disto? Porque eu creio que a História oficial do nosso continente foi sujeita a várias falsificações. A primeira e mais grosseira destinou-se a justificar a exploração que fez enriquecer a Europa. Mas outras falsificações se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar responsabilidades internas, a lavar a má consciência de grupos sociais africanos que participaram desde sempre na opressão dos povos e nações de África. Esta leitura deturpada do passado não é apenas um desvio teórico. Ela acaba por fomentar uma atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianças sem princípios.

É importante fazermos nova luz sobre o passado porque o que se passa hoje nos nossos países não é mais do que a actualização de conivências antigas entre a mão de dentro e a mão de fora. Estamos revivendo um passado que nos chega tão distorcido que não somos capazes de o reconhecer. Não estamos muito longe dos estudantes universitários que ao saírem de Maputo já não se reconhecem como sucessores dos mais velhos.

O QUE SOMOS – UM ESPELHO À PROCURA DA SUA IMAGEM

Se o passado nos chega deformado, o presente desagua em nossas vidas de forma incompleta. Alguns vivem isso como um drama. E partem em corrida nervosa à procura daquilo que chamam a nossa identidade. Grande parte das vezes essa identidade é uma casa mobilada por nós mas a mobília e a própria casa foram construídas por outros. Outros acreditam que a afirmação da sua identidade nasce da negação da identidade dos outros. O certo é que a afirmação do que somos está baseada em inúmeros equívocos.

Temos que afirmar o que é nosso, dizem uns. E têm razão. Num momento em que o convite é sermos todos americanos esse apelo tem toda a razão de ser.

Faz todo o sentido, portanto, afirmarmos aquilo que é nosso. Mas a pergunta é: o que é verdadeiramente nosso? Há aqui alguns mal-entendidos. Por exemplo: uns acreditam que a capulana é um vestuário originário, tipicamente moçambicano. Fiz por diversas vezes esta pergunta a estudantes universitários: que frutos são os nossos por oposição ao morango, ao pêssego, à maçã? As respostas, uma outra vez, são curiosas. As pessoas acreditam que são originariamente africanos: o caju, a manga, a goiaba, a papaia. E por aí fora. Ora nenhum desses frutos é nosso, no sentido de ser natural do continente. Outras vezes, sugere-se que a nossa afirmação se faça na base de vegetais usados na nossa culinária. O emblema do tipicamente nacional passa agora para o coco, a mandioca, a batata-doce, o amendoim. Tudo produtos que foram introduzidos em Moçambique e em África. Mas aqui se coloca a questão: essas coisas acabam sendo nossas porque, para além da sua origem, lhes demos a volta e as refabricamos à nossa maneira. A capulana pode ter origem exterior mas é moçambicana pelo modo como a amarramos. E pelo modo como esse pano passou a falar connosco. O coco é indonésio, a mandioca é mais latino-americana que a Jennifer Lopez mas o prato que preparamos é nosso porque o fomos caldeando à nossa maneira.

Os conceitos devem ser ferramentas vitais na procura desse nosso retrato. Contudo, muito do quadro conceptual com que olhamos Moçambique assenta em chavões que, à força de serem repetidos, acabaram não produzir sentido. Dou exemplos. Falamos muito de:

- Poder tradicional

- Sociedade civil

- Comunidades rurais, como se diz camponês

- Agricultura de subsistência

Perdoem-me a minha incursão abusiva nestes domínios. Mas eu tenho sinceras dúvidas sobre a operacionalidade de qualquer destes conceitos. Tenho dúvidas sobre o modo como essas categorias cabem na nossa mão e produzem mudanças reais.

UMA LÍNGUA CHAMADA "DESENVOLVIMENTÊS"

E é isso que me preocupa – é que mais do que incentivar um pensamento inovador e criativo estamos a trabalhar ao nível do que é superficial. Técnicos e especialistas moçambicanos estão reproduzindo a linguagem dos outros, preocupado com o poder agradar e fazer boa figura nos workshops. Trata-se de um logro, um jogo de aparências, alguns de nós parecemos bem preparados porque sabemos falar essa língua, o desenvolvimentês. Postos perante a procura de soluções profundas para as questões nacionais estamos estão tão perdidos como qualquer outro cidadão comum. Palavras chaves "boa-governação", accountability, parcerias, desenvolvimento sustentável, capacitação institucional, auditoria e monitoramento, equidade, advocacia, todas estas palavras da moda acrescentam uma grande mais-valia (eis outra palavra da moda) às chamadas "comunicações" (deve-se, de preferência, dizer "papers"). Mas deve-se evitar traduções feitas à letra se não acontece-nos como o palestrante – já ouvi chamarem de painelista, o que além de pouco simpática é uma palavra perigosa – pois esse palestrante, para evitar dizer que ia fazer uma apresentação em power-point, acabou dizendo que ia fazer uma apresentação em "ponta-poderosa". O que pode sugerir maliciosas interpretações.

O problema do desenvolvimentês é que só convida a pensar o que já está pensado por outros. Somos consumidores e não produtores de pensamento. Mas não foi apenas uma língua que inventamos: criou-se um exército de especialistas alguns com nomes curiosos, tenho-os visto em reuniões diversas: já vi especialistas em resolução de conflitos, facilitadores de conferências, workshopistas, experts em advocacia, engenheiros políticos. Estamos empenhando o nosso melhor manancial humano em algo cuja utilidade deve ser interrogada.

A grande tentação de hoje é reduzirmos os assuntos à sua dimensão linguística. Falamos, e tendo falado, pensamos ter agido. Muitas vezes a mesma palavra já dançou com variadíssimos parceiros. Tantos que já não há festa sem que certas expressões abram o baile. Uma dessas palavras é a "pobreza". A pobreza já dançou com um par que se chamava "a década contra o subdesenvolvimento". Outro dançarino tinha por nome "luta absoluta contra a pobreza". Agora, dança com alguém que se intitula "luta contra a pobreza absoluta". Outro caso é o do povo. O povo especializou-se sobretudo em danças de máscaras. E ele já se mascarou de "massas populares". Já foi "massas trabalhadores". Depois, foi "população". Agora, dança com o rosto de "comunidades locais".

A verdade é que ainda mantemos um grande desconhecimento das dinâmicas actuais, dos mecanismos vivos e funcionais que esse tal povo inventa para sobreviver. Sabemos pouco sobre assuntos de urgente e primordial importância. Listo apenas alguns que agora me ocorrem:

- a vitalidade do comércio informal (mais do que comercial é toda uma economia informal)

- os mecanismos de troca entre a família rural e a sua sucursal urbana

- o papel das mulheres nessa rede de trocas invisíveis, do transito transfronteiriço de mercadorias (o chamado mukero).

Como podemos ver, não são apenas os jovens estudantes que olham para o universo rural como se fosse um abismo. Também para nós há um Moçambique que permanece invisível.

Mais grave que estas omissões é a imagem que se foi criando para substituir a realidade. Tornou-se comum a ideia que o desenvolvimento é o resultado acumulado de conferências, workshops e projectos. Eu não conheço país nenhum que se tivesse desenvolvido à custa de projectos. Vocês, melhor que ninguém, sabem disto. Mas quem lê os jornais verifica como está enraizada esta crença. Isto apenas ilustra a atitude apelativa que prevalece entre nós de que os outros (na nossa linguagem moderna, os stakeholders) é que tem a obrigação histórica de nos retirar da miséria.

É aqui que a questão se coloca – qual a cultura da nossa economia? Qual é a economia da nossa cultura? Ou dito de modo mais rigoroso: como é que as nossas culturas dialogam com as nossas economias?

O SERMOS MUNDO – À PROCURA DE UMA FAMÍLIA

Numa Conferencia em que este ano participei na Europa, alguém me perguntou: o que é, para si, ser africano?

E eu lhe perguntei, de volta: E para si, o que é ser europeu?

Ele não sabia responder. Também ninguém sabe exactamente o que é africanidade. Neste domínio há pouco muita bugiganga, muito folclore. Há alguns que dizem que o "tipicamente africano" é aquele ou aquilo que tem um peso espiritual maior. Ouvi alguém dizer que nós, africanos, somos diferentes dos outros porque damos muito valor à nossa cultura. Um africanista numa conferência em Praga disse que o que media a africanidade era um conceito chamado "ubuntu" . E que esse conceito diz que "eu sou os outros".

Ora todos estes pressupostos me parecem vagos e difusos, tudo isto surge porque se toma como substância aquilo que é histórico. As definições apressadas da africanidade assentam numa base exótica, como se os africanos fossem particularmente diferentes dos outros, ou como se as suas diferenças fossem o resultado de um dado de essência.

África não pode reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. O nosso continente é feito de profunda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimónios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens falamos com algum receio como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. Os senhores dizem que não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.

O QUE QUEREMOS E PODEMOS SER

Vou falar-vos de um episódio real, decorrido aqui perto, na África do Sul, em 1856. Um célebre sangoma de nome Mhalakaza reclamou que espíritos dos antepassados lhe tinham transmitido uma profecia. E que uma grande ressurreição haveria de acontecer e que os britânicos iriam ser expulsos. Para isso o povo Xhosa deveria destruir todo o seu gado e todas as suas machambas. Esse seria o sinal de fé para que, das profundezas do chão, brotassem riqueza e abundância para todos. Mhalakaza convenceu os soberanos do reino da veracidade desta visão. O chefe Sarili, da casa real do Tshawe, proclamou a profecia como doutrina oficial. Para além da visão do adivinho, Sarili tinha uma estranha convicção: era de que os russos seriam os antepassados dos Xhosas e seriam eles, os russos, que iriam brotar do chão de acordo com a prometida ressurreição. Esta ideia surgia porque os monarcas Xhosa tinham ouvido falar da guerra da Criméia e do facto dos russos estarem a bater-se contra os ingleses. Espalhou-se rapidamente a ideia de que os russos, depois de vencerem os britânicos na Europa, viriam expulsá-los da África do Sul. E o que é ainda mais curioso: estava assente que os russos seriam pretos, no pressuposto de que todos os que se opunham ao domínio britânico seriam de raça negra.

Não me demoro no episódio histórico. A realidade é que depois de desaparecerem o gado e a agricultura, a fome dizimou mais de dois terços do povo Xhosa. Estava consumada uma das maiores tragédias da toda a história de África. Este drama foi aproveitado pela ideologia colonial como prova da dimensão da crendice entre os africanos. Mas a realidade é que esta história é bem mais complexa que uma simples crença. Por detrás deste cenário, ocultavam-se graves disputas políticas. Dentro a monarquia Xhosa criou-se uma forte dissidência contra este suicídio colectivo. Mas este grupo foi rapidamente intitulado de "infiéis" e uma força de milícias denominada de "os crentes" foi criada para reprimir os que estavam em desacordo.

É evidente que esta história, infelizmente real, não pode ser repetida hoje com este mesmo formato. Mas eu deixo à vossa consideração o encontrarem paralelos com ocorrências actuais na nossa região austral, em África, no Mundo. Aprendizes de feiticeiros, seguem construindo profecias messiânicas e arrastam, de forma triste, povos inteiros para o sofrimento e o desespero.

Aflige-me a facilidade com que vamos a reboque de ideias e conceitos que desconhecemos. Em lugar de as interrogarmos cientificamente e de ajuizarmos a sua adequação cultural transformamo-nos em funcionários de serviço, caixas de ressonância de batuques produzidos nas instâncias dos poderes políticos. Na nossa história já se acumularam lemas e bandeiras. Já tivemos:

- A década contra o sub-desenvolvimento

- O Plano Prospectivo Indicativo (o famoso PPI)

- O PRE ( com o seu "ajustamento estrutural"

- Parceria inteligente e outras

Estas bandeiras tiveram as suas vantagens e desvantagens. Mas raramente foram sujeitas ao necessário questionamento por parte dos nossos economistas, dos nossos intelectuais. As novas bandeiras e lemas estão sendo hasteadas nos mastros sem que esse espírito crítico assegure da sua viabilidade histórica.

Há por vezes um certo cinismo. Poucos são os que realmente acreditam naquilo que propalam. Mas estas novas teologias tem os seus missionários fervorosos. Assim que essas teses desabam, esses sacerdotes são os primeiros a despir as batinas. Foi o que sucedeu com o fim da nossa chamada Primeira Republica. Samora morreu e ninguém mais foi co-responsável da primeira governação. Samora existiu sozinho, é essa a conclusão a que somos obrigados a chegar.

A CULTURA E A ECONOMIA – O QUE PODEMOS FAZER?

O que podemos fazer é interrogar sem medo e dialogar com espírito crítico. Infelizmente, o nosso ambiente de debate se revela pobre. Mais grave ainda, ele tornou-se perverso: em lugar de confrontar ideias, agridem-se pessoas. O que podemos fazer com os conceitos sócio-económicos é reproduzir aquilo que fizemos com a capulana e com a mandioca. E já agora com a língua portuguesa. Tornámo-los nossos, porque os experimentamos e vivemos à nossa maneira.

Como um parêntesis queria fazer aqui referência a algo que assume o estatuto de pouca-vergonha. Eu já vi pessoas credenciadas a defender a tese da acumulação primitiva do capital justificando o comportamento criminoso de alguns dos nossos novos-ricos. Isto já não é apenas ignorância: é má-fé, ausência completa de escrúpulos morais e intelectuais.

Estamos hoje construir a nossa própria modernidade. E quero congratular esta ocasião em que um homem das letras (que se confessa ignorante em matérias de economia) tenha a possibilidade de partilhar algumas reflexões. A economia necessita de falar, de namorar com as outras esferas da vida nacional. O discurso económico não pode ser a religião dessa nossa modernidade nem a economia pode ser um altar ante o qual nos ajoelhamos. Não podemos entregar a especialistas o direito de conduzir as nossas vidas pessoais e os nossos destinos nacionais.

O que mais nos falta em Moçambique não é formação técnica, não é a acumulação de saber académico. O que mais falta em Moçambique é capacidade de gerar um pensamento original, um pensamento soberano que não ande a reboque daquilo que outros já pensaram. Libertarmo-nos daquilo que uns já chamaram a ditadura do desenvolvimento. Nós queremos ter um uma força patriótica que nos avise dos perigos de uma nova evangelização, e de uma entrega cega a essa nova mensagem messiânica: o desenvolvimento. (Que no quadro desse idioma, o desenvolvimentês, se deve chamar sempre de desenvolvimento sustentável)

O economista não é apenas aquele que sabe de economia. É aquele que pode sair do pensamento económico, aquele que se liberta da sua própria formação para a ela melhor regressar. Esta possibilidade de emigração da sua própria condição é fundamental para que tenhamos economistas nossos que se distanciem da economia o suficiente para a poder interrogar.

A situação do nosso país e do nosso continente é tão séria que já podemos continuar fazendo de conta que fazemos. Temos que fazer. Temos que criar, construir alternativas e desenhar caminhos verdadeiros e credíveis.

Precisamos de exercer os direitos humanos como o direito à tolerância (eis outra palavra do vocabulário workshopista) mas temos que manter acesso a um direito fundamental que é o direito à indignação. Quando nos deixarmos de nos indignar, então estaremos a aceitar que os poderes políticos nos tratem como seres que não pensam. Eu falo do direito à indignação perante o mega-cabritismo, perante crimes como os que mataram Siba-Siba e Carlos Cardoso. Perante a ideia de que a desorganização, o roubo e o caos são parte integrante da nossa natureza "tropical".

O nosso continente corre o risco de ser um território esquecido, secundarizado pelas estratégias de integração global. Quando digo "esquecido" pensarão que me refiro à atitude das grandes potências. Mas eu refiro-me às nossas próprias elites que viraram costas às responsabilidades para os seus povos, à forma como o seu comportamento predador ajuda a denegrir a nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos. O discurso de grande parte dos políticos é feito de lugares-comuns, incapazes de entender a complexidade da condição dos nossos países e dos nossos povos. A demagogia fácil continua a substituir a procura de soluções. A facilidade com que ditadores se apropriam dos destinos de nações inteiras é algo que nos deve assustar. A facilidade com que se continua a explicar erros do presente através da culpabilização do passado deve ser uma preocupação nossa. É verdade que a corrupção e o abuso do poder não são, como pretendem alguns, exclusivas do nosso continente. Mas a margem de manobra que concedemos a tiranos é espantosa. É urgente reduzir os territórios de vaidade, arrogância e impunidade dos que enriquecem à custa do roubo. É urgente redefinir as premissas da construção de modelos de gestão que excluem aqueles que vivem na oralidade e na periferia da lógica e da racionalidade europeias.

Nós todos, escritores e economistas, estamos vivendo com perplexidade um momento muito particular da nossa História. Até aqui Moçambique acreditou dispensar uma reflexão radical sobre os seus próprios fundamentos. A nação moçambicana conquistou um sentido épico na luta contra monstros exteriores. O inferno era sempre fora, o inimigo estava para além das fronteiras. Era Ian Smith, o apartheid, o imperialismo. O nosso país fazia, afinal, o que fazemos na nossa vida quotidiana: inventamos monstros para nos desassossegar. Mas os monstros também servem para nos tranquilizar. Dá-nos sossego saber que eles moram fora de nós. De repente, o mundo mudou e somos forçados a procurar os nossos demónios dentro de casa. O inimigo, o pior dos inimigos, sempre esteve dentro de nós. Descobrimos essa verdade tão simples e ficamos a sós com os nossos próprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu antes. Este é um momento de abismo e desesperanças. Mas pode ser, ao mesmo tempo, um momento de crescimento. Confrontados com as nossas mais fundas fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar outras escritas. Vamos ficando, cada vez mais, a sós com a nossa própria responsabilidade histórica de criar uma outra História. Nós não podemos mendigar ao mundo uma outra imagem. Não podemos insistir numa atitude apelativa. A nossa única saída é continuar o difícil e longo caminho de conquistar um lugar digno para nós e para a nossa pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria criação.

30/Setembro/2003

[*] Escrito moçambicano. Texto apresentado na Associação Moçambicana de Economistas ( AMECON )

O original encontra-se em http://www.macua.org/miacouto/Mia_Couto_Amecom2003.htm Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Moçambique: ALUNAS MUÇULMANAS PROIBIDAS DE USAR VÉUS ISLÂMICOS




ANGOLA PRESS

Maputo - Alunas da comunidade muçulmana estão a ser proibidas de assistir às aulas, usando véus em algumas escolas da cidade de Maputo, informou o secretário da comunidade maometana de Moçambique Issufo Maomede, citado hoje (sábado) pela LUSA.
  
"Infelizmente várias alunas são expulsas ou obrigados a tirar o lenço no recinto escolar e, mesmo sabendo que estamos na época do Ramadão, os professores não respeitam os princípios da nossa religião", disse à Lusa Issufo Maomede. 
 
O secretário da comunidade maometana lamentou a situação dizendo tratar-se de uma "discriminação das crenças muçulmanas". 
 
A Lusa pediu uma reacção ao ministério da Educação de Moçambique, mas não obteve resposta. 
 
Contactada pela Lusa, uma docente defendeu "o cumprimento dos regulamentos", notando que nas escolas existem vários alunos e que cada um tem a sua própria religião.  
    
"A escola tem regulamentos e nos devemos cumprí-los, é uma forma de educar os alunos a usar o uniforme escolar", disse Joaquina Silva, professora na Escola Secundaria Josina Machel, o principal estabelecimento de ensino secundário na capital.

Issufo Maomede afirmou ainda que a comunidade muçulmana não aconselha o uso da burqa nas salas de aulas, porque sabe que as escolas nacionais o proíbem, mas defendeu que o véu faz parte da cultura moçambicana. 

"O lenço faz parte da cultura moçambicana, não sei por que proíbem o uso do lenço, não aconselhamos o uso da burqa no recinto escolar porque é proibido, mas o lenço sinceramente", prossegue o secretário da comunidade maometana.  
   
Em Moçambique, cerca de 17,8 porcento dos 21 milhões de habitantes professa a religião muçulmana.

Brasil: Polícia quer identificar cúmplice de vice-cônsul acusado de golpe contra arquidiocese


Adelino Pinto

ANGOLA PRESS

São Paulo - As autoridades de Porto Alegre, no sul do Brasil, desconhecem a identidade da mulher que teria ajudado o vice-cônsul de Portugal, Adelino Pinto, na alegada fraude envolvendo prejuízo de 2,5 milhões de reais (1,09 milhão de euros) à arquidiocese da cidade. 
 
Segundo o delegado responsável pelo inquérito no Brasil, Paulo César Jardim, a mulher fez-se passar por uma representante da ONG belga que patrocinaria a recuperação de duas igrejas de origem portuguesa no Estado do Rio Grande do Sul. 
 
Adelino Pinto ter-se-á comprometido a conseguir 12 milhões de reais (5,2 milhões de euros) para o projecto de restauro das igrejas e intermediou o contacto de padres brasileiros com a suposta organização. 
 
No final de 2010, os padres estiveram em Lisboa para apresentar os projectos de restauração à entidade que os financiaria.  
 
"Não havia um escritório. O encontro ocorreu dentro de uma igreja. A mulher examinou os projectos, disse que aprovava uns e outros não", relatou Jardim. 
 
Num acordo com os padres, ela estabeleceu o valor que a arquidiocese deveria depositar como caução para receber o dinheiro dos restauros. 
 
O dinheiro do depósito, segundo as investigações, foi desviado por Adelino Pinto para três contas bancárias: duas no Brasil e outra na Europa. A promessa de financiamento nunca se cumpriu. 
 
"Estamos a tentar identificar a cúmplice", declarou Jardim, ressaltando que um fator dificulta a missão: no momento do encontro, ela usava óculos escuros e uma peruca. 
   
O delegado diz ter convicção de que o ex-vice-cônsul aplicou um golpe - ou, como prefere chamar, um "conto do vigário". Segundo Jardim, o funcionário português, entretanto exonerado, continuou a "ludibriar" os padres mesmo depois de transferir o dinheiro.

Cabo Verde – Presidenciais: Aristides Lima dá liberdade de voto aos seus apoiantes




CLI – JSD - LUSA

Cidade da Praia, 13 ago (Lusa) -- O candidato independente às eleições presidenciais cabo-verdianas Aristides Lima, derrotado na primeira volta, afirmou que não vai dar indicação de voto aos seus apoiantes por não ser "dono do voto de ninguém".

Recebido sexta-feira à noite na Biblioteca Nacional, na Cidade da Praia, que esteve completamente cheia de apoiantes, Lima explicou que a sua candidatura é da "cidadania" e que isso é necessário respeitar.

"Não temos competência para determinar indicações de voto porque não somos donos do voto de ninguém. Esta candidatura é da cidadania e há que respeitar a cidadania", disse, num contexto em que os seus votos serão decisivos quer para Jorge Carlos Fonseca, vencedor da primeira volta, quer para Manuel Inocêncio Sousa.

Fonseca, apoiado pelo Movimento para a Democracia (MpD, oposição), e Inocêncio, pelo Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV, no poder), disputam a 21 deste mês a segunda volta das presidenciais, estando as respetivas campanhas a tentar captar os votos de Lima.

Em relação à votação de há uma semana, Aristides Lima considerou que os resultados conseguidos na primeira volta - ficou em terceiro lugar, com 44.500 votos (27,4 por cento) - são "históricos" para uma candidatura independente, não muito longe de Fonseca, 37,3 por cento, e de Inocêncio, 32 por cento.

"Agora é tempo de olhar para a frente e de trabalhar, todos juntos, pelo bem do nosso país, com serenidade e procurando dar uma contribuição natural para o aprofundamento da nossa democracia" disse.

Entretanto, o ex-presidente do parlamento cabo-verdiano (2001/11) defendeu que a Democracia, para ser exercida em pleno, implicará mais gente a votar e por isso é necessário refletir sobre a natureza do voto, aludindo à tradicionalmente alta abstenção em presidenciais que, na primeira volta ultrapassou os 46 por cento.

"Temos de refletir sobre se deve ficar só como um dever cívico, ou se deve ser um dever jurídico. Porque há países no mundo que têm este dever jurídico e que têm percentagens de participação, em atos eleitorais, à volta de 92 por cento, como acontece na Austrália", afiançou.

Dentro do auditório da Biblioteca Nacional, vários apoiantes quiseram deixar o seu testemunho e, entre declarações de apoio, acusações de compra de votos e agradecimentos "pela coragem de liderar o processo", os apoiantes de Lima garantiram que, caso decida concorrer novamente em 2016, continuarão a apoiá-lo.

*Foto em Lusa

Grécia, Irlanda e Portugal: PORQUE OS ACORDOS COM A TROIKA SÃO ODIOSOS




Renaud Vivien, Eric Toussaint [*]

A Grécia, a Irlanda e Portugal são os três primeiros países da zona euro a serem passados à tutela directa dos seus credores ao concluírem planos de "ajuda" com a "Troika" composta pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas estes acordos, que geram novas dívidas e que impõem aos povos medidas de austeridade sem precedentes, podem ser postos em causa com base no direito internacional.

Com efeito, estes acordos são "odiosos" e portanto ilícitos. Como sublinha a doutrina da dívida odiosa, "as dívidas de Estados devem ser contratadas e os fundos resultantes utilizados para as necessidades e os interesses do Estado [1] ". Ora, os empréstimos da Troika são condicionados a medidas de austeridade que violam o direito internacional e que não permitirão a estes Estados saírem da crise.

Todo empréstimo concedido em contrapartida da aplicação de políticas que violam os direitos humanos é odioso.

Como afirma o relator especial Mohammed Bedjaoui no seu projecto de artigo sobre a sucessão em matéria de dívidas de Estado para a Convenção de Viena de 1983: "Colocando-se do ponto de vista da comunidade internacional, poder-se-ia entender por dívida odiosa toda dívida contraída para fins não conformes ao direito internacional contemporâneo e, mais particularmente, aos princípios do direito internacional incorporados na Carta das Nações Unidos" [2] .

Não há nenhuma dúvida de que as condicionalidades impostas pela Troika (despedimentos maciços na função pública, desmantelamento da protecção social e dos serviços públicos, diminuição dos orçamentos sociais, aumento dos impostos indirectos como o IVA, baixa do salário mínimo, etc) violam de modo manifesto a Carta das Nações Unidas. Com efeito, entre as obrigações contidas nesta Carta encontram-se, nomeadamente, os artigos 55 e 56, "o levantamento do nível de vida, do pleno emprego e das condições de progresso e de desenvolvimento na ordem económica e social (...), o respeito universal e efectivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião". Em consequência, as medidas de austeridade e as dívidas contratadas no quadro destes acordos com a Troika estão atingidos de nulidade uma vez que tudo o que é contrário à Carta da ONU é considerado não escrito [3] .

Para além da violação dos direitos económicos, sociais e culturais engendrada pela aplicação destas medidas anti-sociais, é o direito dos povos a dispor de si mesmos, consagrado no artigo 1-2 da Carta da ONU e nos dois Pactos de 1966 sobre os direitos humanos, que é espezinhado pela Troika. Segundo o artigo primeiro comum aos dois pactos, "Todos os povos têm o direito de disporem de si mesmos. Em virtude deste direito, eles determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento económico, social e cultural. Para atingir seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações que decorrem da cooperação económica internacional, fundamentada no princípio do interesse mútuo e do direito internacional. Em nenhum caso um povo poderá ser privado dos seus próprios meios de subsistência".

Ora, a ingerência da Troika nos assuntos internos destes Estados, com desprezo da democracia, é flagrante. Estes credores advertiram claramente que as eleições na Irlanda e em Portugal não deviam por em causa a aplicação destes acordos. Citemos por exemplo o artigo do diário francês Le Figaro de 9 de Abril de 2011 que retorna às injunções impostas a Portugal pelos ministros das Finanças da zona euro e da União Europeia aquando de uma reunião verificada em Budapeste antes das eleições legislativas em Portugal: "A preparação (do plano de austeridade) deverá começar imediatamente, em vista de um acordo entre os partidos nos meados de Maio, e permitir a execução sem atrasos do programa de ajustamento desde a formação do novo governo". (...) "os ministros fizeram claramente compreender a Portugal que não querem retornar às contrapartidas da ajuda, seja qual for o resultado das eleições" [4] . No caso da Grécia, o programa de austeridade concluído com a Troika foi imposto em 2010 mesmo sem que o Parlamento o houvesse ratificado quando se tratava de uma obrigação da Constituição grega (artigo 36 parágrafo 2) [5] .

Este desprezo da Troika pela soberania destes três Estados foi tornado possível pela situação de penúria financeira da Grécia, da Irlanda e de Portugal (primeiras vítimas na zona euro da crise da dívida mas certamente não os últimos). Neste sentido, dificilmente se pode defender a validade destes acordo argumentando com a liberdade de consentimento. Em direito, uma parte num contrato não está em estado de exercer a autonomia da vontade, o contrato é atingido de nulidade. Como este princípio se aplica no caso presente? Não podendo razoavelmente tomar emprestado nos mercados financeiros a longo prazo por causa das taxas de juro exigidas pelos mesmos, oscilando entre 12% e 17% conforme o caso, os governos destes três países tiveram de voltar-se para a Troika que aproveitou da situação de prestamista de último recurso. Utilizando a situação de penúria das autoridades gregas, irlandesas e portuguesas, a Troika conseguiu impor planos que tiveram e terão um efeito negativo para a saúde económica destes países dado o carácter pró-cíclico das medidas adoptadas (ou seja, elas reforçam os factores que geram a baixa da actividade económica).

As privatizações maciças nos sectores essenciais da economia (transportes, energia, correios, etc) impostas pela Troika permitem a empresas privadas estrangeiras tomarem o controle e em consequência afectam a soberania destes Estados e o direito dos povos a disporem livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais. Se bem que um Estado tenha o direito, por meio de um acordo, de transferir uma parte da sua soberania a uma entidade estrangeira, esta transferência não deve, salvo violação do direito internacional, comprometer a independência económica do Estado, que é um elemento essencial da sua independência política [6] .

Através das suas condicionalidades, a Troika não violou apenas o direito internacional. Ela igualmente tornou-se cúmplice da violação dos direitos nacionais destes Estados. Na Grécia, mais particularmente, assiste-se a um verdadeiro golpe de Estado jurídico. A título de exemplo, várias disposições da lei 3845/2010, que põe em execução o programa de austeridade, violam a Constituição, nomeadamente ao suprimir o salário mínimo legal. O abandono da soberania do Estado grego é ainda agravado pela cláusula do acordo com a Troika que prevê a aplicabilidade do direito anglo-saxónico e a competência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em caso de litígio. O Estado renuncia assim a uma prerrogativa fundamental da soberania que é a competência territorial dos seus tribunais nacionais. Ao mesmo tempo, a lei grega que põe em execução o programa de austeridade exige que as sentenças arbitrais (tendo valor constitucional) concedendo aumentos de salário para os anos 2010 e 2011 sejam inválidas e inexecutáveis. Em suma, como escrevem os juristas G. Katrougalos et G. Pavlidis, "a soberania estatal é limitada de modo muito similar ao controle financeiro internacional, que havia sido imposto ao país em 1897 na sequência da bancarrota (1893) e sobretudo da derrota grega na guerra greco-turca.

Todo empréstimo cuja causa é ilícita e imoral é odioso

O fundamento jurídico extraído da causa ilícita e imoral para por em causa a validade dos contratos encontra-se nas numerosas legislações nacionais civis e comerciais. Ele nos remete directamente a questão que levanta a doutrina da dívida odiosa: a quem aproveitam os empréstimos? No caso dos acordos concluídos com a Grécia, a Irlanda e Portugal, é claro que os bancos privados europeus, que emprestaram a estes países de modo totalmente irresponsáveis, são ganhadores quando eles arcam com uma pesada responsabilidade na crise da dívida. Com efeito, o salvamento dos bancos privados pelos poderes públicos após a explosão da crise financeira em 2007 implicou a explosão da dívida dos Estados. Neste sentido, pode-se no mínimo qualificar de "imoral" a causa dos acordos feitos com a Troika e falar de "enriquecimento sem causa" (um princípio geral do direito internacional segundo o artigo 38 do estatuto do Tribunal Internacional de Justiça [7] ) em proveito dos bancos privados.

O enriquecimento sem causa dos bancos privados ainda é agravado pelo facto de que estes últimos extraem um enorme lucro sobre as costas dos poderes públicos devido à diferença entre, por um lado, as taxas de juro de mais de 4% que eles exigem dos Estados afectados para comprar os títulos que emitem para um prazo de 3 ou 6 meses, e, por outro lado, a taxa de 1% ao qual estes mesmos bancos tomaram emprestado junto ao BCE até Abril de 2011, antes de ser elevada a 1,25 e depois a 1,50%. [8] Pode-se igualmente falar de enriquecimento sem causa (enriquecimento abusivo e ilegal) a propósito de Estados como a Alemanha, a França e a Áustria que tomaram emprestado a 2% nos mercados e emprestaram à Grécia a 5% ou 5,5%, à Irlanda a 6%. O mesmo para o FMI que toma emprestado dos seus membros a baixas taxas de juro e empresta à Grécia, à Irlanda e a Portugal a taxas claramente superiores.

As medidas anunciadas a 21 de Julho de 2011 pelas autoridades europeias constituem uma confissão clara e nítida do "enriquecimento sem causa" de que elas são responsáveis e do carácter doloso da sua política. Elas finalmente anunciaram a sua intenção de reduzir de 2 a 3 pontos a taxa de juro que exigem da Grécia, da Irlanda e de Portugal. Ao proclamar que reduziam taxa de juro a cerca de 3,5% para créditos a 15 e mesmo 30 anos, elas reconhecem que as taxas que exigem são proibitivas. Elas o fazem tão patente é o desastre no qual contribuíram para mergulhar estes países e tão grande o contágio a outros países.

Qual é o interesse da Irlanda, da Grécia e de Portugal em concluírem estes acordos com a Troika? Nenhum, à parte o facto de que eles lançam uma pequena lufada de oxigénio financeiro... mas que deve servir para o reembolso dos seus credores. No médio e longo prazo, estes planos de rigor vão mesmo piorar a sua situação pois desencadeia um efeito "bola de neve". Com efeito, o encargos dos juros sobre estas novas dívidas aumenta ao passo que as medidas ditadas pela Troika têm como consequência reduzir a actividade económica pois diminuem a procura global afectando as condições de vida das populações. Pode-se portanto reter o comportamento doloso do FMI, tanto é abissal o fosso entre o seu discurso e a realidade. Com efeito, no artigo 1 dos seus estatutos, o FMI tem como objectivos "facilitar a expansão e o crescimento harmonioso do comércio internacional e contribuir assim para a instauração e a manutenção de níveis elevados de emprego e de rendimento real e para o desenvolvimento dos recursos produtivos de todos os Estados membros, objectos primários da política económica [Ler os estatutos do FMI em http://www.imf.org/external/pubs/ft...] ou ainda "dar confiança aos Estados membros pondo os recursos gerais do Fundo temporariamente à sua disposição mediante garantias adequadas, dando-lhes assim a possibilidade de corrigir os desequilíbrios das suas balanças de pagamentos sem recorrer a medidas prejudiciais à prosperidade nacional ou internacional [9] ". Da mesma forma, pode-se afirmar que a acção da Comissão Europeia e do BCE constituem igualmente um dolo a expensas dos países afectados.

As medidas ditadas pelo FMI, BCE e Comissão Europeia têm igualmente como consequência encerrar estes países na lógica infernal do endividamento uma vez que terão de continuar a tomar emprestado para poder reembolsar. Eles partiram portanto para um período de dez, quinze ou vinte anos de austeridade e de aumento da dívida [10] . O estudo da OCDE sobre a dívida grega, publicado em 2 de Agosto de 2011 [11] , afirma nomeadamente que a dívida pública que era de 140% em 2010 deveria reduzir a 100% do Produto Interno Bruto em... 2035.

Diante de uma tal situação, os governos, se quiserem respeitar o interesse da população, têm interesse em romper os acordos com a Troika, suspender imediatamente o reembolso da sua dívida (com congelamento dos juros) e por em marcha auditorias com participação dos cidadãos. Estas auditorias deverão determinar a parte ilegítima destas dívidas, aquela que deve ser anulada sem condições. O remanescente da dívida pública deve igualmente ser reduzido por medidas a expensas daqueles que com elas lucraram. Processos judiciais devem ser empreendidos contra os responsáveis dos danos causados. Evidentemente, medidas complementares e essenciais (transferência dos bancos para o sector público, reforma fiscal radical, socialização dos sectores privatizados no decorrer da era neoliberal, ... [12] deverão ser tomadas pois a anulação das dívidas ilegítimas, se bem que necessária, é insuficiente se a lógica do sistema permanecer intacta.

Notas
|1| Alexander Nahum Sack, Les Effets des Transformations des États sur leurs dettes publiques et autres obligations financières, Recueil Sirey, 1927.
|2| Mohammed Bedjaoui, "Neuvième rapport sur la succession dans les matières autres que les traités", A/CN.4/301et Add.l, p. 73.
|3| Monique et Roland Weyl , Sortir le droit international du placard, PubliCETIM n°32, CETIM, novembre 2008.
|4|
www.lefigaro.fr/... Ler Virginie de Romanet, " Le Portugal : dernière victime en date du modèle néoibéral ", 2011
|5| Georgios Katrougalos et Georgios Pavlidis, "La Constitution nationale face à une situation de détresse financière : leçon tirées de la crise grecque (2009-2011)"
|6|
unesdoc.unesco.org/...
|7| É igualmente previsto em vários códigos civis nacionais, como o espanhol (artigos 1895 e seguintes) e francês (artigos 1376 e seguintes).
|8| Recordamos que o Tratado de Maastricht proíbe o BCE de emprestar directamente aos Estados.
|9| Sublinhados dos autores
|10| Eric Toussaint, "
Aides empoisonnées au menu européen ", 2011,
|11|
www.oecd.org/... |12| Ver Huit propositions urgentes pour une autre Europe
09/Agosto/2011

[*] Renaud Vivien: jurista, membro do grupo de trabalho Direito do CADTM Bélgica. Eric Toussaint: doutor em ciências política, presidente do CADTM Bélgica. Ambos são co-autores do livro La Dette ou la Vie , Aden-CADTM, 2011.

O original encontra-se em
http://www.cadtm.org/Grece-Irlande-et-Portugal-pourquoi
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/ .

Portugal: Ministro admite necessidade de esforço adicional para controlar despesa




TSF - Ontem às 21:49 - com audio

Em entrevista à TVI, o ministro das Finanças explicou que o aumento do IVA sobre o gás e electricidade e o imposto extraordinário só vão resolver «metade do desvio» das contas públicas.

O ministro das Finanças reconheceu, esta quarta-feira, em entrevista à TVI, a necessidade de um esforço adicional para controlar a despesa pública, mas não avançou com medidas concretas.

«É completamente diferente anunciar cortes de despesa e realizar cortes de despesa. Como está reconhecido no programa de ajustamento económico e financeiro, o problema de 2011 foi a execução orçamental» referiu Vítor Gaspar, que lembrou que «esse esforço de execução orçamental não está adquirido».

Nesta entrevista, o titular da pasta das Finanças admitiu ainda que o aumento do IVA na electricidade e gás e o imposto extraordinário apenas vão apenas resolver «metade do desvio» orçamental de dois mil milhões de euros nas contas públicas.

«Portanto, é muito claro porque foi preciso tomar estas medidas. O custo para o financiamento e credibilidade da economia portuguesa, na ausência dessas medidas, deve ser claro e presente para todos», explicou.

Vítor Gaspar insistiu ainda na necessidade de Portugal voltar a ganhar «credibilidade e reputação» perante os mercados, algo que nunca aconteceria se fossem anunciadas «medidas que não estivéssemos em condições de concretizar a breve trecho».

Sobre o corte na TSU, o ministro das Finanças esclareceu que o valor ainda não foi estabelecido nem foi discutido pelo Governo, sendo que uma decisão apenas acontecerá após consulta aos parceiros sociais.

Não só comem tudo e não deixam nada como chupam o sangue fresco da manada




ORLANDO CASTRO*, jornalista – ALTO HAMA

O ministro das Finanças de Portugal afirmou hoje que o aumento do IVA na electricidade e no gás, bem como o pagamento do imposto extraordinário equivalente a 50% do subsídio de Natal "resolvem metade do desvio" orçamental.

Vítor Gaspar descobriu a Pedra Filosofal. Não aquela que supostamente aproxima os homens de Deus, não o elixir de uma vida longa ou da imortalidade, mas aquela do António Gedeão que nos conta que “eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança”.

Se calhar, reconheço, Vítor Gaspar aproxima-se mais de Zeca Afonso quando este diz: “No céu cinzento, sob o astro mudo, batendo as asas, pela noite calada, vêm em bandos, com pés de veludo, chupar o sangue fresco da manada”.

Seja como for, Vítor Gaspar afirma que a arma secreta deste governo, que dá pelo nome de aumento de impostos, no caso de hoje que altera o valor do IVA cobrado no gás natural e na electricidade de 6% para 23%, se justifica porque o Governo encontrou um buraco de dois mil milhões de euros, equivalente a 1,1 pontos percentuais do PIB.

A ser verdade, e será com certeza, o Governo tem legitimidade para pôr os portugueses de pernas para o ar, sacudindo-os na ânsia insana de roubar todos os cêntimos.

Pergunta-se: Não terão os portugueses, pelas mesmas razões (desde logo porque não foram eles que criaram esse e muitos outros buracos), legitimidade para sair às ruas e pelos meios possíveis correr com um governo que os está a espoliar?

Questionado sobre se o Governo prevê um novo aumento de impostos para 2012, Vítor Gaspar admitiu que tal irá acontecer.

"Sim, (o aumento de alguns impostos) está previsto no programa e irão executar-se de acordo com o calendário previsto por razões de consolidação orçamental" cujo valor estimado é de 410 milhões de euros, conforme consta do memorando de entendimento entre o Governo e a 'troika'.

Será que não estão criadas as condições para que os portugueses espoliados avancem com um processo judicial contra este e os anteriores governos por negligência grave durante os respectivos mandatos?

Em Setembro de 2010, o parlamento islandês decidiu processar por "negligência" o antigo chefe do Governo, Geeir Haarde, que liderava o país na altura em que o sistema financeiro islandês entrou em colapso, em Outubro de 2008.

A caminho de ultrapassar os 800 mil desempregados, com 20% dos cidadãos a viver na miséria e às escuras e outros tantos que começam a ter saudades de uma... refeição, Portugal poderia adoptar já igual procedimento em relação a Pedro Passos Coelho e todos os seus super-ministros, (quase) todos eles sublimes exemplos da impunidade reinante.

Pedro Passos Coelho, a não ser que pague direitos de autor, não poderá dizer que “está para nascer um primeiro-ministro que faça melhor do que eu". Mas pode, com certeza, adoptar uma que diga “está para nascer um primeiro-ministro que tão rapidamente tenha posto os portugueses a viver sem comer”.

Como matéria de facto para um eventual processo judicial contra o actual primeiro-ministro acrescente-se que, quando todos julgavam (também foi o meu caso, reconheço) que José Sócrates  tinha levado o país a bater no fundo, aparece Pedro Passos Coelho e a sua super-equipa a provar que, afinal, ainda é possível afundar um pouco mais.

*Orlando Castro, jornalista angolano-português - O poder das ideias acima das ideias de poder, porque não se é Jornalista (digo eu) seis ou sete horas por dia a uns tantos euros por mês, mas sim 24 horas por dia, mesmo estando (des)empregado.

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