Vivemos
em um mundo em que as incertezas, descendentes ou ascendentes, se transformam
cada vez mais em incertezas abissais.
Boaventura
de Sousa Santos – Carta Maior
Diz
Espinoza que as duas emoções básicas dos seres humanos são o medo e a
esperança. A incerteza é a vivência das possibilidades que emergem das
múltiplas relações que podem existir entre o medo e a esperança. Sendo
diferentes essas relações, diferentes são os tipos de incerteza. O medo e a
esperança não estão igualmente distribuídos por todos os grupos sociais ou
épocas históricas. Há grupos sociais em que o medo sobrepuja de tal modo a
esperança que o mundo lhes acontece sem que eles possam fazer acontecer o
mundo. Vivem em espera, mas sem esperança. Estão vivos hoje, mas vivem em
condições tais que podem estar mortos amanhã. Alimentam os filhos hoje, mas não
sabem se os poderão alimentar amanhã. A incerteza em que vivem é uma incerteza
descendente, porque o mundo lhes acontece de modos que pouco dependem deles.
Quando o medo é tal que a esperança desapareceu de todo, a incerteza
descendente torna-se abissal e converte-se no seu oposto: na certeza do
destino, por mais injusto que seja. Há, por outro lado, grupos sociais em que a
esperança sobrepuja de tal modo o medo que o mundo lhes é oferecido como um
campo de possibilidades que podem gerir a seu bel-prazer. A incerteza em que
vivem é uma incerteza ascendente na medida em que tem lugar entre opções portadoras
de resultados em geral desejados, mesmo que nem sempre totalmente positivos.
Quando a esperança é tão excessiva que perde a noção do medo, a incerteza
ascendente torna-se abissal e transforma-se no seu oposto: na certeza da missão
de apropriar o mundo por mais arbitrária que seja.
A maioria dos grupos sociais vive entre esses dois extremos, com mais ou menos
medo, com mais ou menos esperança, passando por períodos em que dominam as
incertezas descendentes e outros em que dominam as incertezas ascendentes. As
épocas distinguem-se pela preponderância relativa do medo e da esperança e das
incertezas a que as relações entre um e outra dão azo.
Que tipo de época é a nossa?
Vivemos em uma época em que a pertença mútua do medo e da esperança parece colapsar
perante a crescente polarização entre o mundo do medo sem esperança e o mundo
da esperança sem medo, ou seja, um mundo em que as incertezas, descendentes ou
ascendentes, se transformam cada vez mais em incertezas abissais, isto é, em
destinos injustos para os pobres e sem poder e missões de apropriação do mundo
para os ricos e poderosos. Uma porcentagem cada vez maior da população mundial
vive correndo riscos iminentes contra os quais não há seguros ou, se os há, são
financeiramente inacessíveis, como o risco de morte em conflitos armados em que
não participam ativamente, o risco de doenças causadas por substâncias
perigosas usadas de modo massivo, legal ou ilegalmente, o risco de violência
causada por preconceitos raciais, sexistas, religiosos ou outros, o risco de
pilhagem dos seus magros recursos, sejam eles salários ou pensões, em nome de
políticas de austeridade sobre as quais não têm qualquer controle, o risco de
expulsão das suas terras ou das suas casas por imperativos de políticas de
desenvolvimento das quais nunca se beneficiarão, o risco de precariedade no
emprego e de colapso de expectativas suficientemente estabilizadas para
planejar a vida pessoal e familiar ao arrepio da propaganda da autonomia e do
empreendedorismo.
Em contrapartida, grupos sociais cada vez mais minoritários em termos
demográficos acumulam poder econômico, social e político cada vez maior, um
poder quase sempre baseado no domínio do capital financeiro. Essa
polarização vem de longe, mas é hoje mais transparente e talvez mais virulenta.
Consideremos a seguinte citação:
Se uma pessoa não soubesse nada acerca da vida do povo deste nosso mundo
cristão e lhe fosse perguntado “há um certo povo que organiza o modo de vida de
tal forma que a esmagadora maioria das pessoas, noventa e nove por cento delas,
vive de trabalho físico sem descanso e sujeita a necessidades opressivas,
enquanto um por cento da população vive na ociosidade e na opulência. Se o tal
um por cento da população professar uma religião, uma ciência e uma arte, que
religião, arte e ciência serão essas?” A resposta não poderá deixar de ser:
“uma religião, uma ciência e uma arte pervertidas”.
Dir-se-á que se trata de um extracto dos manifestos do Movimento Occupy ou do
Movimentos dos Indignados do início da presente década. Nada disso. Trata-se de
uma entrada do diário de Liev Tolstói no dia 17 de março de 1910, pouco tempo
antes de morrer.
Quais as incertezas?
Como acabei de referir, as incertezas não estão igualmente distribuídas, nem quanto
ao tipo nem quanto à intensidade, entre os diferentes grupos e classes sociais
que compõem as nossas sociedades. Há pois que identificar os diferentes campos
em que tais desigualdades mais impacto têm na vida das pessoas e das
comunidades.
A incerteza do conhecimento. Todas as pessoas são sujeitos de
conhecimentos e a esmagadora maioria define e exerce as suas práticas com
referência a outros conhecimentos que não o científico. Vivemos, no entanto,
uma época, a época da modernidade eurocêntrica, que atribui total prioridade ao
conhecimento científico e às práticas diretamente derivadas dele: as
tecnologias. Isso significa que a distribuição epistemológica e vivencial do
medo e da esperança é definida por parâmetros que tendem a beneficiar os grupos
sociais que têm mais acesso ao conhecimento científico e à tecnologia. Para
estes grupos a incerteza é sempre ascendente na medida em que a crença no
progresso científico é uma esperança suficientemente forte para neutralizar
qualquer medo quanto às limitações do conhecimento atual. Para esses grupos, o
princípio da precaução é sempre algo negativo porque trava o progresso infinito
da ciência. A injustiça cognitiva que isso cria é vivida pelos grupos sociais
com menos acesso ao conhecimento científico como uma inferioridade geradora de
incerteza quanto ao lugar deles num mundo definido e legislado com base em
conhecimentos simultaneamente poderosos e estranhos que os afetam de modos
sobre os quais têm pouco ou nenhum controle. Trata-se de conhecimentos produzidos
sobre eles e eventualmente contra eles e, em todo caso, nunca produzidos com
eles. A incerteza tem uma outra dimensão: a incerteza sobre a validade dos
conhecimentos próprios, por vezes ancestrais, pelos quais têm pautado a vida.
Terão de os abandonar e substituir por outros? Esses novos conhecimentos
são-lhes dados, vendidos, impostos e, em todos os casos, a que preço e a que
custo? Os benefícios trazidos pelos novos conhecimentos serão superiores aos
prejuízos? Quem colherá os benefícios, e quem, os prejuízos? O abandono dos
conhecimentos próprios envolverá um desperdício da experiência? Com que
consequências? Ficarão com mais ou menos capacidade para representar o mundo
como próprio e para transformá-lo de acordo com as suas aspirações?
A incerteza da democracia. A democracia liberal foi concebida como um
sistema de governo assente na incerteza de resultados e na certeza dos
processos. A certeza dos processos garantia que a incerteza dos resultados
fosse igualmente distribuída por todos os cidadãos. Os processos certos
permitiam que os diferentes interesses vigentes na sociedade se confrontassem
em pé de igualdade e aceitassem como justos os resultados que decorressem desse
confronto. Era esse o princípio básico da convivência democrática. Essa era a
teoria mas na prática as coisas foram sempre muito diferentes, e hoje a
discrepância entre a teoria e a prática atinge proporções perturbadoras.
Em primeiro lugar, durante muito tempo só uma pequena parte da população podia
votar e por isso, por mais certos e corretos que fossem os processos, eles
nunca poderiam ser mobilizados de modo a ter em conta os interesses das
maiorias. A incerteza dos resultados só em casos muito raros poderia beneficiar
as maiorias: nos casos em que os resultados fossem o efeito colateral das
rivalidades entre as elites políticas e os diferentes interesses das classes
dominantes que elas representavam. Não admira, pois, que durante muito tempo as
maiorias tenham visto a democracia de pernas para o ar: um sistema de processos
incertos cujos resultados eram certos, sempre ao serviço dos interesses das
classes e grupos dominantes. Por isso, durante muito tempo, as maiorias
estiveram divididas: entre os grupos que queriam fazer valer os seus interesses
por outros meios que não os da democracia liberal (por exemplo, a revolução), e
os grupos que lutavam por ser incluídos formalmente no sistema democrático e
assim esperar que a incerteza dos resultados viesse no futuro a favorecer os
seus interesses. A partir de então as classes e os grupos dominantes (isto é,
com poder social e econômico não sufragado democraticamente) passaram a usar
outra estratégia para fazer funcionar a democracia a seu favor. Por um lado,
lutaram para que fosse eliminada qualquer alternativa ao sistema democrático
liberal, o que conseguiram simbolicamente em 1989 no dia em que caiu o Muro de
Berlim.
Por outro lado, passaram a usar a certeza dos processos para os manipular de
modo a que os resultados os favorecessem sistematicamente. Porém, ao eliminarem
a incerteza dos resultados, acabaram por destruir a certeza dos processos. Ao
poderem ser manipulados por quem tivesse poder social e econômico para tal, os
processos democráticos, supostamente certos, tornaram-se incertos. Pior do que
isso, ficaram sujeitos a uma única certeza: a possibilidade de serem livremente
manipulados por quem tivesse poder para tal.
Por essas razões, a incerteza das grandes maiorias é descendente e corre o
risco de se tornar abissal. Tendo perdido a capacidade e mesmo a memória de uma
alternativa à democracia liberal, que esperança podem ter no sistema
democrático liberal? Será que o medo é de tal modo intenso que só lhes reste a
resignação perante o destino? Ou, pelo contrário, há na democracia um embrião
de genuinidade que pode ser ainda usado contra aqueles que a transformaram numa
farsa cruel?
A incerteza da natureza. Sobretudo desde a expansão europeia a partir do
final do século XV, a natureza passou a ser considerada pelos europeus um
recurso natural desprovido de valor intrínseco e por isso disponível sem
condições nem limites para ser explorado pelos humanos. Esta concepção, que era
nova na Europa e não tinha vigência em nenhuma outra cultura do mundo,
tornou-se gradualmente dominante à medida que o capitalismo, o colonialismo e o
patriarcado (este último reconfigurado pelos anteriores) se foram impondo em
todo o mundo considerado moderno. Esse domínio foi de tal modo profundo que se
converteu na base de todas as certezas da época moderna e contemporânea: o
progresso. Sempre que a natureza pareceu oferecer resistência à exploração tal
foi visto, quando muito, como uma incerteza ascendente em que a esperança
sobrepujava o medo. Foi assim que o Adamastor de Luis de Camões foi
corajosamente vencido e a vitória sobre ele se chamou Cabo da Boa Esperança.
Houve povos que nunca aceitaram esta ideia da natureza porque aceitá-la equivaleria
ao suicídio. Os povos indígenas, por exemplo, viviam em tão íntima relação com
a natureza que esta nem sequer lhes era exterior; era, pelo contrário, a
mãe-terra, um ser vivente que os englobava a eles e a todos os seres vivos
presentes, passados e futuros. Por isso, a terra não lhes pertencia; eles
pertenciam à terra. Essa concepção era tão mais verosímil que a eurocêntrica e
tão perigosamente hostil aos interesses colonialistas dos europeus que o modo
mais eficaz de a combater era eliminar os povos que a defendiam,
transformando-os num obstáculo natural entre outros à exploração da natureza. A
certeza desta missão era tal que as terras dos povos indígenas eram
consideradas terra de ninguém, livre e desocupada, apesar de nelas viver gente
de carne e osso desde tempos imemoriais.
Essa concepção da natureza foi de tal modo inscrita no projeto capitalista,
colonialista e patriarcal moderno que naturalizar se tornou o
modo mais eficaz de atribuir um caráter incontroverso à certeza. Se algo é natural,
é assim porque não pode ser doutro modo, seja isso consequência da preguiça e
da lascívia das populações que vivem entre os trópicos, da incapacidade das
mulheres para certas funções ou da existência de raças e a “natural”
inferioridade das populações de cor mais escura.
Essas certezas ditas naturais nunca foram absolutas, mas encontraram sempre
meios eficazes para fazerem crer que eram. Porém, nos últimos cem anos elas
começaram a revelar zonas de incerteza e, em tempos mais recentes, as
incertezas passaram a ser mais verossímeis que as certezas, quando não
conduziram a novas certezas de sentido oposto. Muitos fatores contribuíram para
isso. Seleciono dois dos mais importantes. Por um lado, os grupos sociais
declarados naturalmente inferiores nunca se deixaram vencer inteiramente e,
sobretudo a partir da segunda metade do século passado, conseguiram fazer ouvir
a sua plena humanidade de modo suficientemente alto e eficaz a ponto de a
transformar num conjunto de reivindicações que entraram na agenda social
política e cultural. Tudo o que era natural se desfez no ar, o que criou
incertezas novas e surpreendentes aos grupos sociais considerados naturalmente
superiores, acima de tudo a incerteza de não saberem como manter os seus
privilégios senão enquanto não contestados pelas vítimas deles. Daqui nasce uma
das incertezas mais tenazes do nosso tempo: será possível reconhecer
simultaneamente o direito à igualdade e o direito ao reconhecimento da
diferença? Por que continua a ser tão difícil aceitar o metadireito que
parece fundar todos os outros e que se pode formular assim: temos o direito a
ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes
quando a igualdade nos descaracteriza?
O segundo fator é a crescente revolta da natureza perante tão intensa e
prolongada agressão sob a forma das alterações climáticas que põem em risco a
existência de diversas formas de vida na terra, entre elas a dos humanos.
Alguns grupos humanos estão já definitivamente afetados, quer por verem os seus
habitats submersos pela elevação das águas do mar, quer por serem obrigados a
deixar as suas terras desertificadas de modo irreversível. A terra mãe
parece estar a elevar a voz sobre as ruínas da casa que era dela para poder ser
de todos e que os humanos modernos destruíram movidos pela cobiça, voracidade,
irresponsabilidade, e, afinal, pela ingratidão sem limites. Poderão os humanos
aprender a partilhar o que resta da casa que julgavam ser só sua e onde afinal
habitavam por cedência generosa da terra mãe? Ou preferirão o exílio dourado
das fortalezas neofeudais enquanto as maiorias lhes rondam os muros e lhes
tiram o sono, por mais legiões de cães, arsenais de câmeras de vídeo,
quilômetros de cercas de arame farpado e de vidros à prova de bala que os protejam
da realidade mas nunca dos fantasmas da realidade? Estas são as incertezas cada
vez mais abissais do nosso tempo.
A incerteza da dignidade. Todo o ser humano (e, se calhar, todo o ser
vivo) aspira a ser tratado com dignidade, entendendo por tal o reconhecimento
do seu valor intrínseco, independentemente do valor que outros lhe atribuam em
função de fins instrumentais que lhe sejam estranhos. A aspiração da dignidade
existe em todas as culturas e expressa-se segundo idiomas e narrativas muito
distintas, tão distintas que por vezes são incompreensíveis para quem não
comungue da cultura de que emergem. Nas últimas décadas os direitos humanos
transformaram-se numa linguagem e numa narrativa hegemônicas para nomear a
dignidade dos seres humanos. Todos os Estados e organizações internacionais
proclamam a exigência dos direitos humanos e propõem-se defendê-los. No
entanto, qual Alice de Lewis Carrol, em Through the Looking-Glass [Através
do Espelho], atravessando o espelho que esta narrativa consensual propõe, ou
olhando o mundo com os olhos da Belimunda do romance de José Saramago, Memorial
do Convento, que viam no escuro, deparamo-nos com inquietantes verificações: a
grande maioria dos seres humanos não são sujeitos de direitos humanos, são
antes objetos dos discursos estatais e não estatais de direitos humanos; há
muito sofrimento humano injusto que não é considerado violação de direitos
humanos; a defesa dos direitos humanos tem sido frequentemente invocada para
invadir países, pilhar as suas riquezas, espalhar a morte entre vítimas
inocentes; no passado, muitas lutas de libertação contra a opressão e o
colonialismo foram conduzidas em nome de outras linguagens e narrativas
emancipatórias e sem nunca fazerem referência aos direitos humanos. Essas inquietantes
verificações, uma vez postas ao espelho das incertezas que tenho vindo a
mencionar, dão azo a uma nova incerteza, também ela fundadora do nosso tempo. A
primazia da linguagem dos direitos humanos é produto de uma vitória histórica
ou de uma derrota histórica? A invocação dos direitos humanos é um instrumento
eficaz na luta contra a indignidade a que tanto grupos sociais são sujeitos ou
é antes um obstáculo que desradicaliza e trivializa a opressão em que se traduz
a indignidade e adoça a má consciência dos opressores?
São tantas as incertezas do nosso tempo, e assumem um caráter descendente para
tanta gente, que o medo parece estar a triunfar sobre a esperança. Deve esta
situação levar-nos ao pessimismo de Albert Camus que em 1951 escreveu
amargamente: “Ao fim de vinte séculos a soma do mal não diminuiu no mundo. Não
houve nenhuma parusia, nem divina nem revolucionária”? Penso que não. Deve
apenas levar-nos a pensar que, nas condições atuais, a revolta e a luta contra
a injustiça que produz, difunde e aprofunda a incerteza descendente, sobretudo
a incerteza abissal, têm de ser travadas com uma mistura complexa de muito medo
e de muita esperança, contra o destino auto-infligido dos oprimidos e a
missão arbitrária dos opressores. A luta terá mais êxito, e a revolta, mais
adeptos, na medida em que mais e mais gente se for dando conta de que o destino
sem esperança das maiorias sem poder é causado pela esperança sem medo das
minorias com poder.
Créditos
da foto: ufrgs