domingo, 19 de fevereiro de 2017

NEOCOLONIALISMO RADICAL



Martinho Júnior, Luanda 

A EXTENSÃO DA PRESENÇA MILITAR FRANCESA EM ÁFRICA, A PRETEXTO DO COMBATE AO CAOS E AO TERRORISMO QUE A FRANÇA CONTRIBUIU PARA EXPANDIR AO DESTRUIR KADAFI NA LÍBIA.

1 – Tudo o que de mau se poderia prever para África no seguimento da intervenção militar que acabou com Kadafi na Líbia em 2011 (“Opération Harmattan” e “Unified Protector”), está a verificar-se conforme este ignóbil inventário:

. Na Líbia instalou-se o caos até aos nossos dias, inviabilizando progresso, democracia, direitos humanos, independência e soberania do país;

. No Sahel, contíguo à fronteira sul da Líbia, disseminou-se o caos e o terrorismo, assistindo-se ao reforço de grupos rebeldes desde o AQMI (Al Qaeda do Magrebe Islâmico) ao Boko Haram e ao Seleka;

. Essa disseminação reflecte a tendência para os grupos fundamentalistas islâmicos, financiados a partir de fontes de países aliados das potências ocidentais como a Arábia Saudita ou o Qatar, dominem espaços vitais próximos de fontes interiores de água (rio Níger, lago Chade, ou afluentes da bacia do Congo próximos da região central dos Grandes Lagos);

. A disseminação do caos e do terrorismo nos espaços imensos de África, da Mauritânia à Somália e ao longo de toda a transversal do Sahel, propiciou por seu turno a justificação para a presença militar da FrançAfrique, à mercê da posição dominante da França nessa imensa região, como se caos e terrorismo, pela via contraditória, servissem como uma tácita motivação em proveito dessa presença;

. A instalação do caos e do terrorismo foi feita por isso e essencialmente em países ricos em minerais do interior do continente sem acesso directo ao oceano, exportadores de matérias-primas (urânio, petróleo, ferro…), com economias frágeis, dependentes e deliberadamente precarizadas, países que ocupam alguns dos últimos lugares dos relatórios anuais dos Índices de Desenvolvimento Humano (Mali, Níger, Chade, República Centro Africana, Sudão, Sudão do Sul…);

. O terrível enredo neocolonial que foi criado, incide sobretudo na África do Oeste e na África Central, em países que integram a zona de utilização do Franco CFA, uma moeda sob tutela francesa que está em vigor desde a última fase do colonialismo, há 72 anos;

. O conjunto das acções económicas, financeiras, militares e sócio-políticas, favorece a continuidade do sistema de inteligência dominante francesa, revertida aos tempos do “pré carré” e das redes de Jacques Foccart;

. Inspirados nos franceses, os Estados Unidos afinam no mesmo diapasão: a pretexto de dar combate ao Boko Haram no Chade, aprontam o Exercício “Unified Focus 2017”, justificando assim a sua presença militar na região;

. Fazem parte desse exercício “de treino” os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Holanda, a Itália, o Benin, os Camarões, o Níger, o Chade e a Nigéria!

. Esse tipo de influência está a ser de tal maneira forte, que se reflecte já no domínio sócio-político em termos de relacionamentos externos conseguido na textura da União Africana, a partir da última reunião cimeira em Adis Abeba;

. A entrada de Marrocos para a União Africana, sem que a autodeterminação e a independência do Sahara, colónia de Marrocos, estivesse garantida, é uma imediata redundância desse domínio, em reforço por seu turno dos interesses neocoloniais britânicos relativos à desenfreada exploração mineral desse território.

 2 – A presença militar francesa em África cresceu depois do ataque à Líbia (“Opération Harmattan”e “Unified Protector”), seja por via de unidades sob seu próprio pavilhão, seja por via dos interesses e cobertura da União Europeia, da NATO, da ONU, ou mesmo sob mandato internacional.

Quando a França desencadeou a “Opération Harmattan”, simultaneamente a Grã Bretanha (“Operation Ellamy”), os Estados unidos (“Operation Odyssey Dawn”) e o Canadá (“Operation Mobile”), combinaram esforços com a Itália a fim de criar a base sincronizada das operações da NATO na Líbia, que conduziram à “Operation Unified Protector”…

A “Unified Protector” aniquilou Kadafi e as forças líbias que lhe eram fieis, dando azo ao fortalecimento dos grupos terroristas que no terreno ganharam força a partir dessas acções e criaram na Líbia um forte impulso para disseminar o terrorismo por todo o Sahel.

A presença neocolonial militar francesa em África, acima de 10.000 efectivos, assume agora os seguintes esforços:

. Operações marítimas no Atlântico ao longo das costas da África do Oeste e Golfo da Guiné, até à fronteira sul de Angola (“Opération Corymbe” sob seu próprio pavilhão);

. Operações marítimas no Índico, em torno da Somália (“Opération Atalante”, ao abrigo dos interesses e cobertura da União Europeia);

. Pontos de apoio na costa em torno do continente africano, mediante acordos, alguns deles acordos secretos bilaterais, com o Senegal, a Costa do Marfim e o Gabão (na costa Atlântica), o Djibouti, as Comores, as Seichelles e a Reunião (nas costas e arquipélagos do Índico);

. Operações no interior do continente africano contra o caos e o terrorismo (Mali, Níger, Chade e República Centro Africana); neste âmbito decorrem sob seu próprio pavilhão a “Opération Licorne”(Costa do Marfim), a “Opération Barkhane” (no Sahel com intervenções sem-fronteira no Mali, no Níger e no Chade) e a “Opération Boali” (na República Centro Africana);

. Operações no interior sob interesse e cobertura da União Europeia e da ONU, como a “Opération Artémis” (Grandes Lagos), a Eufor no Chade e República Centro Africana e a “Opération Sangaris”na República Centro Africana;

. Atracção por via da União Europeia e da ONU de outros aliados europeus à “Opération Sangaris”, entre eles Portugal, a pedido do governo francês, mais publicamente exposta com a recente visita do 1º Ministro Português à Companhia de Forças Especiais reforçada colocada em Bangui, a capital daquele país.

A França militarmente garante um extraordinário dispositivo de geometria variável no interior, mas com apoios fixos e perenes no litoral, um dispositivo bem articulado e muito móvel, correspondendo a uma implantação militar que coloca a França acima das capacidades no terreno das forças armadas africanas, conferindo-lhe por isso uma posição dominante e colocando os africanos como complementares, correspondendo às características das suas redes de influência inteligente (desde as de carácter sócio-político, às de carácter económico e financeiro)!

3 – O conjunto das iniciativas francesas após 2011 (“Operação Harnattan” e integração na “Unified Protector”), radicaliza os expedientes neocoloniais franceses em África, em estreita consonância e ligação com expedientes do âmbito do USAFRICOM e britânicos.

Estas questões têm hoje uma maior oportunidade para serem apresentadas e balanceadas (é isso que estou a fazer), até por que, decorrente das campanhas eleitorais francesas para a Presidência, há finalmente um candidato, do sector mais à esquerda do Parido Socialista Francês, que em visita à Argélia considerou a colonização como “um crime contra a humanidade” e teve a ousadia de o fazer ao mesmo tempo que o actual Secretário de Estado dos Antigos Combatentes da França, Jean-Marc Todeschini, visitou em nome da França e pela primeira vez, o cemitério de Sétif, onde repousam os restos mortais de muitas das primeiras vítimas dos massacres coloniais das primeiras revoltas que estiveram na origem da Frente de Libertação Nacional da Argélia!

Mesmo com este reconhecimento e o contexto profundo em que ele se insere, numa época em que os balanços se vão sucedendo por todo o mundo, considero que se Emmanuel Macron chegar à Presidência, não dissolverá a célula africana no Eliseu (assente por Charles de Gaulle que esteve na origem das redes de Jacques Foccart), mas ao tentar “reformá-la”, acabará apenas por “refinar” a sua actualização, e com  isso, “refinar” as máscaras neoliberais e o radicalismo neocolonial francês do “pré carré” que constitui a “FrançAfrique”!

Esta polémica está a ser utilizada pelas elites capitalistas neoliberais francesas contra a candidatura de Emmanuel Macron, o que é sintomático do seguinte: ao considerar juridicamente que Macron não tem razão, é afastado o anátema da palavra “crime” em relação ao passado colonial, para assim continuarem impunemente os procedimentos criminosos que sustentam o carácter eminentemente neocolonial da presença francesa em África a coberto e segundo pretextos que sustentam o presente modelo intoxicado de “globalização”!

Com a radicalização neocolonial em curso, a pretexto de combater o caos e o terrorismo em relação aos quais os franceses, tal como os estado-unidenses e os britânicos, deram a sua notável contribuição para expandir ao rebentar com Kadafi que era um factor de combate ao caos e ao terrorismo, África que se declarou um continente livre de armas nucleares, evoca em vão esse risco, pois a ser sujeita a um tipo de armas não só reflexo do “soft power” das ex-potências coloniais, mas também de autênticas operações cirúrgicas em termos de inteligência e em termos militares, cujas consequências são muito mais lesivas e duradouras para o tecido humano dos povos africanos!

O radicalismo neocolonial enquanto doença crónica que subsiste agora em pleno século XXI, precisa dum novo Franz Fannon para o poder antes de mais psicologicamente dissecar e é nessa razão que aqueles que como eu perfilham a lógica com sentido de vida enquanto sustentam a necessidade de resgatar África das trevas do subdesenvolvimento, têm a sua trincheira firme, na continuidade da mesma ética e da mesma moral que tem dado vida à Luta de Libertação em África!...

Em Angola, é preciso que se lembre, o Programa Maior do MPLA está em curso, mas tem imensas razões para se balancear e melhor decidir, em função dos deveres patrióticos identificados legitimamente com a luta de todo o povo angolano nos seus anseios de mais liberdade, de mais justiça, de mais progresso, de mais desenvolvimento sustentável, de mais democracia, de mais internacionalismo e de mais solidariedade humana e respeito para com a Mãe Terra, também para benefício e mérito de toda a humanidade!...

A consultar (Martinho Júnior):
. Salvar a Líbia – Martinho Júnior – Página Um – http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/salvar-libia.html
. Salvar os reis – Martinho Júnior – Página Um – http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/salvar-os-reis.html
. Castas das Arábias – Martinho Júnior – Página Um – http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/castas-das-arabias.html
. Iraque, Iraque, 75 anos depois – Martinho Júnior – Página Um – http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/iraque-iraque-75-anos-depois.html
. Opção pelo inferno – Martinho Júnior – Página Global – http://pagina--um.blogspot.com/2011/03/opcao-pelo-inferno.html
. O “arco de crise” em direcção a África – http://paginaglobal.blogspot.com/2011/05/o-arco-de-crise-em-direccao-africa.html
. Rapidinhas do Martinho – 19 – Níger – O neocolonialismo francês mortal e a pleno vapor – Página Global –http://paginaglobal.blogspot.com/2011/06/rapidinhas-do-martinho-19.html
. Rapidinhas do Martinho – 26 – Somália – Ainda a Somália – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.com/2011/07/rapidinhas-do-martinho-26.html
. Rapidinhas do Martinho – 59 – França: pequena radiografia do poder global – Página Global –http://paginaglobal.blogspot.com/2011/11/rapidinhas-do-martinho-59.html
. O rio Níger e a dicotomia Mali /Azawad – I – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.com/2012/04/o-rio-niger-e-dicotomia-mali-azawad-i.html
. O rio Níger e a dicotomia Mali /Azawad – II – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.com/2012/04/o-rio-niger-e-dicotomia-maliazawad-ii.html
. Operação Serval – I – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.com/2013/02/operacao-serval-i.html
. Operação Serval – II – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.pt/2013/02/operacao-serval-ii.html
. Operação Serval – III – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.com/2013/02/operacao-serval-iii.html
. Operação Serval – IV – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.pt/2013/02/operacao-serval-iv.html
. Operação Serval – IV – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.pt/2013/03/operacao-serval-v.html
. IIIª Guerra Mundial – Martinho Júnior – Página Global – http://paginaglobal.blogspot.pt/2015/11/iii-guerra-mundial.html

Fotos:
. Plano militar francês na direcção do coração de África, de acordo com a implantação de seus efectivos;
. “Opération Barkhane” e “Opération Sangaris”;
. Franco CFA resiste temporalmente mais (tem já 72 anos) que o Franco Francês, que na União Europeia cedeu o passo ao Euro;
. Cômputo do domínio militar francês em África; (só falta mesmo a África Austral);
. Emmanuel Macron em visita ao cemitério onde repousam os primeiros mártires da moderna Luta de Libertação Nacional na Argélia.

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