sexta-feira, 16 de junho de 2017

PORTUGAL À SOMBRA DE AMBIGUIDADES AINDA NÃO ULTRAPASSADAS – VII



Martinho Júnior | Luanda

Em saudação aos 60 anos do MPLA, aos 52 anos da passagem do Che por África e aos 43 anos do 25 de Abril… e assinalando os 50 anos do início do “Exercício ALCORA” e os 50 anos do início da Guerra do Biafra.

13- Uma das coisas que ressalta da trajectória do Estado Novo nos anos da guerra colonial em três frentes que levou a cabo, é o facto de Portugal produzir pouco armamento e de qualidade duvidosa (como as pistolas metralhadoras FBP), ou então sem incorporação de tecnologias de ponta (como por exemplo os patrulheiros da classe Cacine, robustos, com relativamente fácil manutenção, mas lentos e em nada sofisticados, pelo que tinham uma tripulação excessiva para o seu tamanho e disponibilidade de espaço).

Por isso o Estado Novo, maquiavelicamente, tinha que arranjar o armamento que precisava para fazer as guerras, junto dos seus aliados: os da NATO, e a África do Sul do “apartheid”, montando para o efeito todo um engenhoso jogo politico-diplomático, encontrando todo o tipo de argumentos, justificações ajustáveis e fabricando um corpo de Leis a condizer (algumas aparentemente obsoletas), a coberto na doutrina e ideologias do “Le Cercle”.

Por exemplo, a Lei Colonial de 1933 do Estado Novo esclarecia no seu Artigo IIº: “…é da essência orgânica da Nação portuguesa desempenhar a função de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar populações indígenas”… mesmo que tenha sido revogada, o carácter do próprio colonialismo não sofreu alterações de vulto nas décadas seguintes, ainda que na fase derradeira se estivesse em guerra…

Em “Angola sob o domínio português – mito e realidade” o professor Gerald J. Bender (recentemente falecido), comprova no seu estudo que a inércia “salazarenta” correlacionava-se com esse carácter por um misto de razões doutrinárias, ideológicas e antropológicas e muita coisa foi-se distendendo, cristalizando-se de qualquer modo durante o conflito, mesmo que tenham havido alterações das leis, produzindo cosméticas que foram potenciando cada vez mais ambiguidades para com a transparência do corpo social…

Sem a acelerada campanha de aquisição de armamento, o Estado Novo ficaria ao nível do que aconteceu na Índia, com a rendição de Vassalo e Silva, general e último governador na colónia portuguesa, por que a rendição era a única coisa sensata a que estava condenado a fazer, face a tão abissal diferença de meios e capacidades…

… Assim o Estado Novo travou a guerra colonial durante 13 anos, devido ao facto de ter-lhe sido possível obter armamento, equipamento e meios junto de outros membros da NATO e da África do Sul, muitas vezes a preço de saldo, por vezes até entre alguns dos obsoletos disponíveis do tempo da IIª Guerra Mundial, como os aviões Harvard T-6, muito utilizados pelas potências coloniais em África!

É evidente que essa dependência significou a “subtileza” dum aumento do grau de vassalagem e promiscuidade, para com a NATO e, “no terreno” na África Austral, para com o “apartheid”, às custas de Angola e Moçambique…

Esse jogo favoreceu mais tarde a penetração das inteligências da linha “judaico-crstã ocidental” e do próprio “apartheid” com os governos do 25 de Novembro de 1975, com ajustamentos face às alterações (o fim do “aparheid”, sincronizado com a globalização capitalista neoliberal no âmbito da hegemonia unipolar, potenciou a inteligência económica portuguesa na direcção de Angola, enquanto “correia de transmissão”, a partir da charneira que foi o Acordo de Bicesse).

Essa foi mesmo a razão principal de se manter o Exercício ALCORA secreto, por ser algo que também interessava aos governos do 25 de Novembro de 1975, pois nem as lentas mudanças sócio-políticas inibiram a vassalagem e a promiscuidade para com a NATO e, para com o “apartheid” o que a “civilização judaica-cristã ocidental” não resolvia por via doutrinária, ideológica e pelas práticas administrativas e operativas de conveniência, passaram-se a resolver por via dos negócios, ou até por via das meio-escondidas amizades e dos enlaces que advinham do passado!...

A “border war” do “apartheid” contra Angola, começou de facto em 1968 e não em 1974/75, pelo que ao esconder o Exercício ALCORA do conhecimento público, só podia interessar a quem tinha efectivo interesse nisso enquanto um reprodutor manancial, depois do Estado Novo ter caído e o alvo continuava a ser ainda bem apetitoso: Angola e Moçambique!

A Operação Madeira, através do qual o colonialismo português agenciava Savimbi, era em si um apêndice tácito e geoestratégico do Exercício ALCORA e por isso foi relativamente fácil o alinhamento (e dependência) de Savimbi em relação ao “apartheid”, na directa sequência do 25 de Abril de 1974, conforme se pode testemunhar em “The destruction of a nation: United States’ Policytiward Angola, since 1945”.

Exercício ALCORA e “dossiers” da Aginter Press, duma forma ou de outra, ou foram escondidos até há pouco tempo (os primeiros), ou “milagrosamente” desapareceram (os últimos), às tantas por efeitos cabalísticos, directos ou indirectos, de quem com “profissão de fé” e tanta azáfama, andava a “combater os comunistas e o comunismo”!…

À medida que o Exercício ALCORA se ia sofisticando nos seus conceitos e na sua organização, assim o “apartheid” ia fornecendo cada vez mais armamento, meios e equipamentos ao colonialismo português, de forma a, “persuasiva e suavemente”, ir impondo seu peso geoestratégico.

Os enredos implicavam também promiscuidade entre a doutrina e os conceitos da NATO e a doutrina e conceitos do Exercício ALCORA em formação e em busca de afirmação, o que era uma preocupação constante do general Costa Gomes, um dos mestres da eterna ambiguidade portuguesa, que a 5 de Abril de 1973 emitia a seguinte recomendação “para consumo interno e em circuitos fechados”:

…“Em todos os trabalhos a realizar no âmbito do Exercício ALCORA, parece-me que as delegações portuguesas, a todos os níveis, deverão ter sempre presente que não podemos embrenhar-nos em sectores que possam comprometer a nossa liberdade de acção política.

Compreendo que, por vezes, as nossas delegações tenham dificuldade em obstar a que se tratem determinados assuntos que, ultrapassando o âmbito militar, como o presente, se situem nitidamente no campo político.

Julgo que, neste caso, deverão empalhar a discussão, não tomando qualquer compromisso firme, sem previamente pedirem instruções sobre os problemas postos”.

A ambiguidade portuguesa, própria de quem de há muito se foi habituando a tal em função das culturas de ambiguidade, vassalagem e promiscuidade que foram sendo aplicadas face ao “diktat”das potências de cultura “judaico-cristã ocidental”, servia às-mil-maravilhas para este caso, pois o colonialismo português sabia que os sucessivos Livros Brancos da Defesa do “apartheid”, iam buscar muitos conceitos da NATO, adaptando-os ao “terreno”.

O Livro Branco que a 10 de Abril de 1973 o ministro da Defesa sul-africano, P. W. Botha, enviava ao Parlamento para aprovação era prova disso.

Na década de 50 do século XX, muito antes do início do Exercício ALCORA em 1967, o colonialismo português e o “apartheid” já andavam preocupadíssimos com as questões que se prendiam à NATO no Atlântico Sul.

De acordo com o livro, a páginas 66/67:

“Em Novembro de 1954, o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Paulo Cunha, recebeu o embaixador da África do Sul, S. F. du Toit, para lhe comunicar o interesse de Portugal em coordenar políticas no hemisfério Sul.

A África do Sul colocara o seu primeiro diplomata em Lisboa em 1935, embora não residente!

Em 1938, foi colocado em Lisboa o coronel F. F. Pienaar, acreditado como representante diplomático permanente da África do Sul.

Neste encontro com o embaixador, o ministro português sublinhou a importância da cooperação entre os dois países na segurança do Atlântico Sul e da rota do Cabo da Boa Esperança”…

A 10 de Fevereiro de 1969 (já com o Exercício ALCORA em andamento, uma vez que haviam forças das SADF no Cuando Cubango e em processo de oficialização secreta), P. W. Botha então ministro da Defesa da África do Sul, recebeu na cidade do Cabo o seu homólogo português, Sá Viana Rebelo, na sua primeira visita ao exterior e nas conversações salientou “a importância da posição estratégica da África do Sul para as nações ocidentais!”... e por isso “ser chegado o momento dum esforço conjunto de Portugal e da África do Sul, com vista a que os países ocidentais tomem uma atitude favorável, no sentido de ser preservado o sul de África, cuja estabilidade constitui de grande importância para o Ocidente” (páginas 144/145/146 do livro).

A 1 de Abril de 1971 (páginas 246/247), os sul-africanos deram início aos estudos comuns sobre a tipologia de ameaças na África Austral, estabelecendo o nexo das questões relativas à informação comum, trabalho que foi concluído e apresentado em Salisbúria, em Janeiro de 1972, sob o título“Avaliação da ameaça contra os territórios ALCORA”…

Entre 7 e 17 de Maio de 1973, na quinta reunião da Comissão de Coordenação ALCORA, foram estudadas as propostas para criação, organização e funcionamento dum Estado-Maior Permanente conjunto entre o colonialismo português e o “apartheid”, o que colocava o Estado Novo numa situação subalterna e a África do Sul numa posição geoestratégica dominante.

As análises da situação do Professor Gerald J. Bender levantam a questão dos colonatos e dos aldeamentos criados face à situação de guerra, as “sanzalas da paz”, em relação às quais ele considerava (páginas 315/316) do livro “Angola sob o domínio português – mito e realidade”:

… “O reagrupamento dos camponeses africanos em grandes aldeamentos cercados foi o veículo escolhido para levar a cabo tais objectivos no interior.

No fim da guerra de independência, mais de um milhão de camponeses tinham sido deslocados para os reordenamentos e os resultados de tal reagrupamento mostram que, com raras excepções, os dois objectivos eram incompatíveis.

Quer isto dizer que a maximização do controlo da população causou sérios colapsos na segurança social e psicológica do campesinato e um declínio acentuado na produtividade económica e da produção de bens alimentares”…

(…)

… “Existem provas consideráveis que sugerem que, embora os generais portugueses em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau defendessem incansavelmente a tese de que o reordenamento constituía a chave para a vitória, os efeitos negativos do deslocamento maciço dos africanos afastavam, em vez de atrair, o campesinato e acabaram por alimentar a insurreição que se pretendia extinguir”…

De facto o que o colonialismo português fez com os programas dos colonatos e das “sanzalas da paz”, foi aproximar pela prática, os pontos de vista da sua doutrina de contra subversão, aos conceitos de contra subversão do “apartheid”, conforme à formulação dos “bantustões”, que não passavam dum reordenamento compulsivo impondo cada vez mais divisões de carácter étnico, a fim de fazer prevalecer os interesses da minoria branca, em função dum processo sócio-político forjado na radicalização da inteligência elitista, que experimentava a aliança entre as culturas bóeres e anglo-saxónicas.


14- O rescaldo desse conjunto de fenómenos que se reflectiram sobre o carácter dos governos portugueses nos relacionamentos para com Angola após o 25 de Novembro de 1975 em Portugal, alimentaram duma forma ou de outra exercícios como os de Cavaco Silva, ou de Mário Soares, fossem eles 1º Ministros, ou Presidentes da República, com a agravante do “apartheid” estar ainda em vigor e com políticas de agressão em curso contra todos os países da Linha da Frente na África Austral.

Alguns dos enlaces de Cavaco Silva com entidades sul-africanas em tempo de “apartheid” foram públicos envolvendo até as condecorações portuguesas à mão.

Esse ambiente propiciou recrutamentos de alguns portugueses para engrossar as redes de inteligência da BOSS/NIS em Angola (algo muito importante para os principais portos angolanos, assim como algumas instalações de petróleo, como por exemplo a Petrangol-Luanda e Malembo-Cabinda, que sofreram acções de todo o tipo dos grupos de reconhecimento especiais das SADF).

Um dos recrutadores no princípio da década de 80 do século XX em Lisboa, foi o Adido-Militar Adjunto, Jacobus Everhardus Louw, um dos condecorados por Cavaco Silva…

Em Cabinda foi um português, Fernando Durão, radicado na altura (década de 80 do século XX) em Malembo, que deu guarida a um dos sistemas (francês) de pesquisa de informação táctica que levaria à realização da Operação Argon.

Essa operação culminaria em desastre para o grupo de reconhecimento que no terreno foi comandado pelo Capitão Winand Johannes Petrus du Toit.

Os enlaces do clã Soares com Savimbi foram constantes e para isso muito contribuiu o Coronel Óscar Cardoso, que antes havia pertencido à PIDE/DGS e foi um dos homens que integrou Operação Madeira e o Exercício ALCORA, com transferência garantida para o “apartheid” na continuidade dos contactos da “border war” iniciados em 1968 (com o envolvimento dos Flechas, mais tarde Batalhão 31 das SADF).

As ingerências de toda a ordem dos vassalos portugueses componentes dos sucessivos governos portugueses após o 25 de Novembro de 1975 foram constantes e “na profundidade”, incluindo nos principais postos diplomáticos no terreno, em Luanda.

Quando a segurança de estado angolana se exauria no rescaldo do 105/83, no imediato seguimento dos instrutores do 105/83, num processo em que uma parte importante dos arguidos eram portugueses residentes em Angola, ou luso-descendentes (as redes de tráfico de diamantes vinham“filtradas” desde o colonialismo e Lisboa, a par das bolsas de Antuérpia, era escala “obrigatória”), o Embaixador Antóno Manuel Canastreiro Franco, então marido da actual eurodeputada Ana Gomes (do PS), foi colocado em Luanda, directamente a partir do Palácio de Belém onde se encontrava ao serviço do Presidente Ramalho Eanes…

É claro que começava outro tipo de trabalho que coincidia com o fim da luta contra o “apartheid”nos campos de batalha do sul, com Angola na charneira da Linha da Frente e a aproximação de Bicesse (Maio de 1991), com os governos portugueses a preparar os “dossiers” de inteligência económica para Angola, na eminência duma “Angola, órfã da guerra fria”, conforme Margareth Anstee…

Tudo se começava a preparar para que Angola, ao ficar sem seus aliados durante a Luta de Libertação em África contra o colonialismo e o “apartheid” (contra a internacional fascista do Exercício ALCORA), sofresse a “reciclagem” do capitalismo neoliberal que em Bicesse atingia expressão, na tentativa de projectar finalmente Savimbi.

Não o conseguindo por resultado das primeiras eleições angolanas, Savimbi partiria para uma guerra previamente preparada, que duraria dez sangrentos anos, lançando mão do choque neoliberal, com os governos portugueses a tirar partido uma vez mais da ambiguidade“transversal” ao processo e à espera de lançar a ofensiva da inteligência económica entretanto guardada na gaveta…

A consultar de Martinho Júnior:
Eleições na letargia duma colónia periférica – http://paginaglobal.blogspot.com/2013/10/eleicoes-na-letargia-duma-colonia.html
Programa soft power da CIA contra Angola, passa por Portugal – http://paginaglobal.blogspot.com/2017/01/programa-soft-power-da-cia-contra.html 
Neocolonialismo em brandos costumes e dois episódios – http://paginaglobal.blogspot.com/2017/03/neocolonialismo-em-brandos-costumes-e.html 
Portugal à sombra de ambiguidades ainda não ultrapassadas – I – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/04/portugal-sombra-de-ambiguidades-ainda.html 
Portugal à sombra de ambiguidades ainda não ultrapassadas – II – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/04/portugal-sombra-de-ambiguidades-ainda_30.html 
Portugal à sombra de ambiguidades ainda não ultrapassadas – III – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/05/portugal-sombra-de-ambiguidades-ainda.html 
Portugal à sombra de ambiguidades ainda não ultrapassadas – IV – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/05/portugal-sombra-de-ambiguidades-ainda_8.html 
Portugal à sombra de ambiguidades ainda não ultrapassadas – V – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/05/portugal-sombra-de-ambiguidades-ainda_14.html 
Portugal à sombra de ambiguidades ainda não ultrapassadas – VI – http://paginaglobal.blogspot.pt/2017/05/portugal-sombra-de-ambiguidades-ainda_18.html 
Série completa (8 intervenções) de “Há 50 anos aviões da NATO bombardeavam em Angola” – Página Global Blogspot – http://paginaglobal.blogspot.pt/ 
Geoestratégia para um desenvolvimento sustentável – http://paginaglobal.blogspot.pt/2016/01/geoestrategia-para-um-desenvolvimento.html

Outras fontes: 
Lista de entidades do “Le Cercle” – https://isgp-studies.com/le-cercle-membership-list 
La guerra secreta en Portugal – http://www.voltairenet.org/article170116.html 
Portugal deixou a PIDE colaborar com apartheid - Óscar Cardoso – http://www.angonoticias.com/Artigos/item/42856/portugal-deixou-a-pide-colaborar-com-apartheid-oscar-cardoso 
“Angola sob domínio português, mito e realidade, Gérard J. Bender” – http://mayamba-editora.com/shop/product/angola-sob-o-dominio-portugues-mito-e-realidade-pdf/ 
“The destruction of a nation: United States’ Policy towards Angola, since 1945, George Wright” –https://books.google.co.ao/books/about/The_Destruction_of_a_Nation.html?id=cINUCik7OeUC&redir_esc=y 
“Iron Fist From The Sea: South Africa's Seaborne Raiders 1978-1988” – https://www.amazon.com/Iron-Fist-Sea-Seaborne-1978-1988/dp/1909982288 
Encontro de Mário Soares com Jonas Savimbi em Lisboa – https://br.pinterest.com/pin/554857616572759370/

Imagens: Foto da família Mário Soares e da família Savimbi; Capa do livro do professor Gerald J. Bender,“Angola sob o domínio português, mito e realidade”; Capa do livro “The destruction of a nation; United States’ Policy toward Angola since 1945”, da autoria de George Wright; Foto do capitão Winand Johannes Petrus Du Toit, durante a conferência de imprensa em Luanda, no rescaldo de sua captura.

Sem comentários:

Mais lidas da semana