Manuel Maria
Carrilho – Diário de Notícias, opinião
A crise tende a
multiplicar os impasses, os impasses tendem a aprofundar a crise. Assim se
adensa, tanto na vida das pessoas como na das nações, o carrossel de todos os
dramas. E o pior que nestas situações pode acontecer é ficar-se preso na teia
do que Gregory Batteson designou uma vez como o "double bind".
Trata-se de um
dilema que coloca uma pessoa ou uma comunidade perante mensagens ou exigências
conflituantes, de tal modo que bloqueia qualquer saída, dando origem a
comportamentos paradoxais. É o que acontece quando um professor diz a um aluno
"para não ser tão obediente" - ele deve obedecer-lhe desobedecendo ou
desobedecer-lhe obedecendo?
Aníbal Cavaco Silva
já tinha revelado tendência para a criação deste tipo de situações
paradoxísticas, colocando frequentemente os portugueses perante dilemas
semelhantes, ao declinar variações discursivas que consistem em acentuar
vivamente uma perspetiva para, logo depois, apontar no sentido oposto.
Foi assim que,
depois de denunciar com vigor a espiral recessiva que ameaçava o País, veio
defender sem equívocos a política que a provocou e os protagonistas que a
incentivaram. Que, depois de denunciar a incompetência da troika, do seu
memorando e do seu acompanhamento, veio exigir e aplaudir o seu cego
cumprimento. Que, depois de denunciar a desorientação e a inação europeias e os
seus custos, veio apelar à submissão aos seus mais contraproducentes ditames...
Que, no dia da
comemoração da democracia instaurada no 25 de Abril, veio fazer a apologia da
sua inutilidade, aconselhando o País a preparar-se para acolher mais ou menos
de joelhos os imperativos do novo poder global, de matriz
financeiro-especulativa, que hoje corrói todos os regimes democráticos.
Só faltava mesmo a
cereja no bolo: e ela apareceu com a insólita aposta de fazer o País caminhar
para o consenso através da intensificação dos antagonismos e em apelar à
convergência político-partidária estimulando a desconfiança na democracia!
Este passo é, todos
o reconheceram, dificilmente compatível com as funções de representação
nacional, de mediação institucional e de pedagogia política que deveria
caracterizar o exercício presidencial. Não admira por isso que, com esta
espiral paradoxística de Cavaco Silva, o País dê crescentes sinais de um novo
tipo de fadiga, a fadiga presidencial...
É que há, no
bizarro apelo ao consenso do Presidente da República, dois problemas: um de
timing e outro de conceito. O de timing remete-nos para o ano de 2009, e para a
incompreensão da gravidade da crise que era já então uma evidência, e que devia
ter dado lugar a um pedagógico esforço de abertura e de realismo.
A situação deveria
ter levado o Presidente da República a procurar então uma solução governamental
maioritária, dado que um governo minoritário vive quase sempre num registo de
preocupação diária com a sua sobrevivência, o que o torna necessariamente débil
e fugaz, como mais uma vez se viu!...O Presidente da República deixou passar a
oportunidade, como depois deixaria passar outras...
O que nos leva ao
segundo ponto, o do conceito. O consenso remete sempre ora para uma identidade
de valores ora para um acordo de objetivos. Mas nem num caso nem no outro se
trata de dados adquiridos ou inequívocos, sobretudo numa comunidade em crise,
como hoje acontece.
É justamente por
isso que o consenso exige uma magistratura presidencial extremamente trabalhosa
e exigente do ponto de vista da comunicação e da pedagogia . Eleito por
sufrágio direto dos portugueses, autónomo em relação aos partidos, livre das
pressões do curto prazo e do imediato, é dele que se espera uma atenção ao
essencial que permita criar os laços e estabelecer as relações que as políticas
partidárias hoje dificilmente conseguem tecer.
Para o fazer não
basta, todavia, jurar a constituição perante o Parlamento. Exige-se mais,
requere--se um desígnio, uma visão, um sinal que atraia e focalize a hoje tão
disputada atenção dos cidadãos. Exige-se proximidade, afeto, cumplicidade,
conversa - o contrário do estilo mestre-escola, em que Cavaco Silva se
especializou.
É onde Cavaco Silva
mais tem falhado. A sua reação à generalizada crítica que o seu discurso do 25
de Abril suscitou diz realmente tudo: " depois não digam que eu não
avisei!", comentou. Na verdade, o seu magistério foi sempre estritamente
funcional, burocrático, minimalista, no limite vertiginosamente
apolítico!...Uma im- prudência porque, como a política tem horror ao vazio,
mais tarde ou mais cedo os acontecimentos tinham de o colocar de novo na arena
político-partidária. Foi o que aconteceu com o discurso do 25 de Abril.
Cavaco Silva não só
falhou o alvo do seu apelo ao consenso, como perdeu o "momentum" em
que o podia fazer com autoridade e eficácia. Resta-lhe agora, aos olhos dos
portugueses, vacilar - para usar os termos do filósofo Jean-François Lyotard -
entre o litígio e o diferendo: enquanto o primeiro pode ficar pela discordância
mais ou menos acentuada, já o segundo conduz ao conflito e à guerra. O tempo o
dirá.
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