domingo, 5 de janeiro de 2014

A PALESTINA E A DIPLOMACIA DE KERRY

 


As negociações presididas pelo Secretário de Estado, John Kerry, estão ocorrendo em um ambiente político que mudou drasticamente. O que significa isso?
 
Norman Finkelstein, Mouin Rabbani, Jon Elmer, Adam Hanieh, Alain Gresh e Sam Bahour - Carta Maior
 
Os veteranos de vinte anos de negociações vazias entre Israel e os palestinos podem menosprezar facilmente as atuais conversações presididas pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, como sendo mais do mesmo. No entanto, elas estão ocorrendo em um ambiente político que mudou dramaticamente. Quais são as implicações para a Palestina dos levantes regionais ocorridos nos últimos anos? Em que medida são sinceros Kerry e a União Europeia em sua aparente determinação de alcançar um acordo? Que outras tendências importantes estão emergindo, com potencial de formatar a evolução futura do conflito?

A revista canadense New Left Project convidou um grupo de analistas e observadores do conflito para resumir o estado atual da situação na Palestina e tentar apontar os possíveis rumos deste processo. Participam desse debate:

Norman Finkelstein e Mouin Rabbani – coautores de “Como resolver o conflito entre Israel e Palestina”.

Jon Elmer – jornalista radicado nos territórios palestinos ocupados.

Alain Gresh – jornalista e diretor do Le Monde Diplomatique.

Adam Hanieh – professor do SOAS (The School of Oriental and African Studies, da Universidade de Londres), autor de “As linhagens da rebelião”.

Sam Bahour – comentarista político e consultor empresarial palestino.

Norman Finkelstein e Mouin Rabbani

Quando as negociações entre israelenses e palestinos foram retomadas no início de 2013, acreditou-se em geral que elas passariam à história apenas como mais uma rodada de negociações entre israelenses e palestinos. No entanto, há indícios crescentes de que os estadunidenses estão formulando uma proposta concreta e detalhada para ser apresentada no início de 2014, e utilizariam sua considerável influência para obrigar as partes a assinar algum acordo até o final de 2013.

O tratado, de modo previsível, institucionalizará de forma permanente o regime estabelecido pelo acordo de Oslo e desenvolvido nas duas décadas seguintes, procurando legitimá-lo com um reconhecimento formal regional e internacional.
Seja sob a forma de uma solução global ou de um acordo provisório e de uma declaração de princípios, o resultado de um acordo nestes termos seria o mesmo: um pequeno estado palestino dependente na Cisjordânia, a leste do Muro, incapaz de exercer poderes significativos em ou sobre Jerusalém Oriental e o reconhecimento de Israel como Estado judeu, transformando assim o tema dos refugiados de um problema político em uma questão humanitária.

Os estadunidenses vêm trabalhando duro para conseguir apoio internacional para seus planos. Isso inclui não só os membros do Quarteto (Estados Unidos, Rússia, União Europeia e Nações Unidas), mas também a Liga Árabe. Há pouco tempo, a União Europeia sinalizou suas intenções com a promessa de apoiar generosamente qualquer acordo, ao mesmo tempo em que ameaça revisar seu atual apoio se as conversações fracassarem. Para o povo palestino, política e geograficamente mais fragmentado que em qualquer outro momento de sua história, será muito difícil opor-se efetivamente ao esquema. Se as notícias recentes, de um possível novo governo palestino apoiado por Fatah e Hamas se confirmarem, os islamistas seriam neutralizados de modo eficaz.

Os partidários da autodeterminação palestina foram envolvidos em um amplo debate sobre os méritos relativos ao projeto de “um só estado” frente à estratégia de “dois estados”. A perspectiva de um novo acordo entre israelenses e palestinos acentua um conjunto mais pertinente de alternativas: a descolonização dos territórios ocupados, de acordo com o consenso internacional, árabe e palestino que existia às vésperas dos acordos de Oslo, frente à subordinação permanente destes territórios a Israel, e a desapropriação permanente de outras comunidades palestinas, levando até o final o processo iniciado em 1993.

Nesta proposta, um dos perigos mais graves é a aparição gradual de um novo consenso internacional, e também regional, que poderia restringir ainda mais e obstruir a capacidade dos palestinos para conseguir seus direitos, sobretudo se esse consenso estiver apoiado em novas resoluções das Nações Unidas e respaldado por outros organismos regionais e internacionais. Os que baseiam sua atividade política, ao menos de uma maneira substancial, no direito internacional, independente da solução que defendam, devem considerar as consequências de um acordo ratificado por uma liderança palestina reconhecida, apoiado pela comunidade internacional e legitimado por novas resoluções das Nações Unidas, que reinterprete o entendimento existente de quais são os direitos e as reivindicações palestinas e reformule o conflito como uma disputa de fronteiras.

Um coisa é se mobilizar contra o Muro na Cisjordânia, considerado ilegal pela Corte Internacional de Justiça, e é outra bem distinta quando se trata de uma fronteira internacional reconhecida. Seria absurdo não se preparar para este tipo de cenário.

(*) Norman Finkelstein é um destacado ativista e estudioso do conflito entre Israel e Palestina. Mouin Rabbani é um jornalista independente palestino, co-editor da revista eletrônica Jadaliyya. Estão trabalhando em um livro conjunto, “Como resolver o conflito entre Israel e Palestina (OR Books, a ser publicado brevemente)

Jon Elmer

Nos últimos anos surgiram duas tendências importantes que vale a pena ressaltar dado o impacto que terão na trajetória estratégica do conflito: i) o desenvolvimento da capacidade militar da Faixa de Gaza; ii) as implicações do Muro de separação israelense na política e na dinâmica de resistência na Cisjordânia.

Durante o período principal de construção do muro israelense na Cisjordânia (de 2003 a 2009, aproximadamente), prestou-se uma atenção razoável a sua imposição física e às consequências para a segurança de Israel. Prestou-se menos atenção às implicações políticas do isolamento das comunidades palestinas e ao seu impacto nas formas de resistência na Cisjordânia. Embora as manifestações sempre presentes da oposição palestina sejam caracterizadas frequentemente como presságio de uma “terceira intifada”, a realidade é que a criação de guetos na Cisjordânia contribuiu de maneira significativa para uma paralisia estratégica do movimento palestino.

Um pilar fundamental da estratégia de criação de guetos por Israel foi o desenvolvimento de uma força de segurança palestina sob os auspícios dos Estados Unidos, encarregada de proporcionar um elemento amortecedor para o exército israelense (IDF), ao operar dentro dos guetos. Isso colocou em marcha uma dinâmica que situa a Autoridade Palestina na primeira linha da próxima intifada, o que aumenta consideravelmente os desafios para os palestinos devido ao componente interno à comunidade. Como os palestinos vão lidar com esta realidade estratégica será uma característica definidora do conflito em um futuro previsível.

Em Gaza, onde o projeto de “guetização” israelense precedeu ao da Cisjordânia em uma década, a guerra dos oito dias de novembro de 2012 anunciou brevemente o próximo capitulo do conflito militar. Os palestinos demonstraram avanços significativos em sua capacidade militar e material, entre os quais cabe destacar sua capacidade de atacar Tel Aviv e grandes extensões no coração de Israel. Isso ocorreu em parte por causa da expansão da rede de túneis no sul de Gaza e às variáveis dinâmicas regionais dos dois anos anteriores à guerra (os distúrbios no Egito, saques de depósitos de armas na Líbia), mas a produção local também foi importante. Embora a recente ofensiva egípcia sobre os túneis tenha sido devastadora no âmbito comercial, a rede de túneis segue aí e sua importância militar continua sendo importante.

No primeiro aniversário da guerra, Netanyahu fez um grande esforço para destacar o efeito de “dissuasão” do ataque de Israel, mas da mesma maneira pode-se argumentar que a guerra teve um efeito similar em Israel. Por uma ampla margem, 2013 foi o ano menos mortífero na Faixa de Gaza desde antes da primeira intifada, em 1987. Uma dissuasão militar crível em Gaza é uma mudança fundamental no panorama estratégico e aumentará nos próximos anos.

(*) Jon Elmer é um jornalista canadense residente na Cisjordânia e Gaza desde 2003.

Adam Hanieh

A “Iniciativa de Paz” do Secretário de Estado, John Kerry, coincide com o vigésimo aniversário da assinatura dos Acordos de Oslo. O processo diplomático que esses acordos iniciaram tiveram um efeito desastroso na luta palestina, o que permitiu a Israel (juntamente com seus partidários em Washington e na Europa) aparecer como um sócio e não como o principal obstáculo para satisfazer os direitos palestinos. Oslo foi e segue sendo uma peça de propaganda de grande êxito, por meio da qual Israel consolidou e aprofundou seu controle sobre a vida palestina.
Um palestino pode agora presidir a administração do dia a dia dos assuntos palestinos, mas o poder definitivo ainda está em Israel.

O que é notável na iniciativa “nova-velha” de Kerry é sua aparente ênfase nas questões econômicas. O próprio Kerry enfatizou esse ponto em seu discurso no Fórum Econômico Mundial, em maio de 2013, onde declarou que “sempre e quando as perspectivas de progresso econômico sigam sendo fracas, também o serão as perspectivas de paz e estabilidade”. Essas declarações foram seguidas pelo anúncio da Iniciativa Econômica Palestina (PEI), aprovada pelo Quarteto para o Oriente Médio, em setembro de 2013. O PEI se baseia no marco das estratégias anteriores de desenvolvimento da Palestina, como o Plano de Reforma e Desenvolvimento da Palestina, de 2007.

Os princípios orientadores dessas estratégias são essencialmente neoliberais: defendem a criação de um “ambiente propício” para que o setor privado seja o motor do crescimento, zonas econômicas especiais para atrair investidores israelenses e árabes na exploração da mão de obra barata palestina, parcerias público-privadas e redução do gasto público. Essas estratégias buscam afiançar ainda mais a dependência palestina da economia israelense e, com isso, aprofundar a normalização das relações com Israel. Por outro lado, como a última década confirmou sem dúvida, ampliam as desigualdades já massivas dentro da sociedade palestina.

Um dos principais objetivos de Oslo foi reduzir a questão da Palestina a uma permuta de pequenas parcelas de terra na Cisjordânia, omitindo-se em relação aos direitos de todo o povo palestino, incluindo aí os cidadãos palestinos de Israel e, o mais importante, dos refugiados palestinos, que sendo o maior segmento da população palestina, continuarão exigindo o direito de retorno aos seus lares. A iniciativa Kerry perpetua essa fragmentação, alimentando a ilusão de que Israel, como potência ocupante, pode ser um “sócio para a paz” sem abordar seu caráter fundamentalmente racista e colonialista. O pragmatismo da Autoridade Palestina, ilustrado por sua adoção dos planos de Kerry, coincide com esta lógica.

A situação é insustentável e as negociações não levam a parte alguma. A política europeia se limita a seguir os Estados Unidos, sem ter interesse na construção de uma solução autenticamente justa para os palestinos. Mas as recentes mobilizações populares contra o Plano Prawer demonstram que há esperança na ação coletiva popular, em toda a Palestina histórica, apesar da fragmentação imposta por Oslo. Neste contexto, é necessário reafirmar a unidade e os direitos fundamentais de todos os segmentos da população palestina. Isso implica rechaçar as medidas para normalizar as relações com Israel. A força dessa estratégia se reflete nos contínuos êxitos da campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS).

(*) Adam Hanieh é catedráticos de estudos sobre desenvolvimento na SOAS e autor de “As linhagens da rebelião: Problemas do capitalismo contemporâneo no Oriente Médio” (Haymarket Books, 2013).

Alain Gresh

Oslo está morto, mas sobrevive de uma maneira estranha. Por um lado, a ideia de um período de transição que conduza a uma solução estável do conflito entre Israel e Palestina com a criação de um Estado palestino independente ao lado de Israel parece cada vez mais utópica: ela foi enterrada sob o peso de 550 mil colonos. Por outra parte, as instituições de Oslo ainda estão em seu lugar e a comunidade internacional, incluindo o governo de Israel, as apoiam.

Como avançar? Não é uma pergunta fácil de responder para os palestinos. O caminho para uma nova estratégia será longo e exigirá dos palestinos uma nova visão, não só de sua luta, como também do mundo no começo do século XXI. Quando os palestinos começaram sua luta na década de 1960 com a OLP, o mundo estava dividido entre os Estados Unidos e a União Soviética; a luta de libertação nacional foi apoiada pelas Nações Unidas, e a luta armada era considerada um meio legítimo de resistência. Hoje em dia, a maioria das lutas de libertação nacional terminou e a insurgência armada é considerada terrorismo.

Estamos entrando em um mundo multilateral, mesmo pós-americano, mas não podemos dizer, até agora, que a política da China ou Brasil, da Índia ou Rússia, tenha modificado o equilíbrio de forças, sobretudo quando se trata do problema palestino. O ponto de partida de qualquer estratégia palestina deve ser o fato indiscutível de que duas comunidades nacionais de tamanho muito similar vivem atualmente dentro das fronteiras da Palestina histórica. A partição já não é possível, mas o que significa a solução de um só estado concretamente?

Se realmente acreditamos que o estabelecimento de um único estado binacional é a solução, os palestinos terão que responder a perguntas difíceis. Quero lembrar duas delas: não só o nome do futuro estado, como também sua natureza. Será um Estado árabe? Construir a solução de um só estado também significa que os palestinos terão que construí-la com ao menos uma parte da comunidade judaica israelense. Como desenvolver uma luta comum pela mudança se os palestinos se negam a negociar inclusive com aqueles israelenses que lutam contra a ocupação, como “Rompendo o silêncio”, sob o pretexto de que são sionistas e hostis à solução de um só estado? Se estamos de acordo com essa lógica, os palestinos deveriam se negar a negociar não só com os estados europeus, mas com a maioria dos estados do mundo que reconhecem Israel.

(*) Alain Gresh é jornalista especializado em Oriente Médio e diretor do Le Monde Diplomatique.

Sam Bahour

Ao envolver o Secretário de Estado, John Kerry, como se “seus” esforços de negociação de paz representassem uma espécie de agenda pessoal que deseja a paz entre Palestina e Israel, a direção palestina está brincando com fogo. A essa altura, deveria saber melhor o que faz. Nenhum Secretário de Estado é maior que os próprios Estados Unidos, nem tampouco o é o presidente dos EUA. Durante mais de três décadas, os líderes da OLP jogaram o mesmo jogo perdedor: tratar de convencer os EUA de agir corretamente e exercer pressão sobre Israel, sem aproveitar plenamente as poucas ferramentas que os palestinos têm a sua disposição.

Mahmoud Abbas, que está apoiado em uma plataforma de legitimidade tão sólida como as areias movediças, é um veterano deste enfoque e não mostra sinais de que pretenda se afastar dele. Como resultado, os líderes palestinos agora, como já ocorreu muitas vezes, enfrentam a possibilidade de um colapso do processo diplomático. A principal diferença desta vez é que para seguir sendo politicamente relevantes e evitar um colapso em queda livre, é possível que assinem uma página de acordo, cujo conteúdo se desconhece, o que fará com que seja muito mais difícil para as futuras gerações de palestinos garantir seu direito à verdadeira liberdade e à independência.

O que é preciso com urgência é de uma reestruturação da mediação internacional no conflito entre Israel e Palestina. A diplomacia itinerante das potências mundiais, que não podem ou não querem se comprometer com o direito internacional e humanitário como base para uma reconciliação histórica entre palestinos e israelenses, é uma perda de tempo, dinheiro e vidas dos dois lados. A ocupação militar deve terminar como condição para que possam começar negociações de boa fé sobre o “status final”. Para isso, os palestinos devem utilizar todas as ferramentas à sua disposição, em particular as recentemente adquiridas em sua campanha para ser membro de pleno direito da ONU.

Se os Estados Unidos se negam a relaxar seu controle absoluto sobre o processo de paz, a comunidade internacional deveria agir de modo independente. Em virtude de um procedimento bem conhecido e provado das Nações Unidas denominado “Unidos para a Paz”, a Assembleia Geral pode exigir a retirada de Israel do território palestino ocupado. A Assembleia Geral também poderia solicitar que fosse enviada uma força de paz das Nações Unidas para a Palestina para proteger os palestinos da potência ocupante. O procedimento “Unidos para a Paz” foi utilizado antes, nada menos que pelos Estados Unidos.

(*) Sam Bahour é um consultor de negócios que vive em Ramallah. Realiza análises independentes sobre a Palestina e atua como assessor político da Al-Shabaka, a Rede de Políticas da Palestina.

Tradução para SinPermiso: Enrique Garcia. Tradução para Carta Maior (a partir do texto em espanhol): Marco Aurélio Weissheimer


Créditos da foto: Departamento de Estado/EUA
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana