domingo, 5 de janeiro de 2014

Portugal: CAVACO E A ESTRATÉGIA DO RELÓGIO

 

Pedro Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião
 
1-Segundo o Presidente da República, para que possamos ter acesso a dinheiro emprestado a juros razoáveis é essencial que a conclusão do programa de ajustamento seja feita com sucesso. Deixemos agora de lado os sucessos que foram o desemprego, a emigração em massa, a deterioração de serviços essenciais, as falências, a inexistência de reformas estruturais, o reforço do papel do Estado nos principais sectores de atividade, o aumento da dívida, o confisco fiscal, o assalto aos reformados, para que não fosse cumprido um único objectivo orçamental. Se chegarmos a Maio sem sermos sujeitos a um segundo resgate e o Governo, o Presidente da República e a troika desatarem a gritar que a conclusão do programa foi um sucesso, quer dizer que foi um sucesso. Tudo o resto não interessa, mesmo que o programa cautelar nos imponha ainda mais austeridade, mesmo que as contrapartidas para esse seguro forem maiores do que as dum segundo resgate, mesmo que o País esteja de rastos, mesmo que o ajustamento dure décadas, temos de ir todos dançar em redor do relógio de Paulo Portas: eis a estratégia do relógio.
 
Com a declaração de falhanço da estratégia de Gaspar, feita pelo próprio, era preciso outra. Chegou há pouco tempo, foi inventada pelo irrevogável ministro, e o Presidente da República aderiu entusiasticamente.
 
Ora, para que esta estratégia resulte num fantástico sucesso, leia--se chegarmos a Maio sem segundo resgate, é preciso, segundo Cavaco Silva, salvaguardar o Orçamento do Estado, esse documento da "maior relevância". Esqueçamos também que a probabilidade de Paulo Portas respeitar a sua palavra é maior do que chegarmos ao fim de 2014 com 4% de défice, ou seja, estamos perante um orçamento ficcional. Finjamos que não sabemos que não haverá segundo resgate em nenhuma circunstância, não por obra e graça do Governo ou do genial programa de ajustamento, mas porque pura e simplesmente a Europa jamais assumiria o seu próprio fracasso.
 
Exige-se, porém, a "máxima ponderação e bom senso, um sentido patriótico de responsabilidade", a todos os agentes.
 
Que o Presidente ache que eu ou qualquer outro agente, cidadão ou instituição, é um irresponsável, um destituído de bom senso e sem amor à pátria, se pensar que este orçamento é péssimo para o País e que nem sequer vai atingir os objectivos a que se propõe, vá que não vá. Não é muito simpático ser insultado pelo nosso máximo representante, mas, francamente, Cavaco não nos tem feito outra coisa e à nossa inteligência nos últimos anos.
 
E se, por hipótese, o Tribunal Constitucional declarar inconstitucionais partes do orçamento, devemos entender que são os juízes que nos estão a atirar para a "continuação da política de austeridade e a deterioração da credibilidade e da imagem de Portugal" inerentes, segundo o Presidente, a um segundo resgate? Será que os juízes irão agir com ponderação, bom senso e amor à pátria? Cuidado juízes, segundo o Presidente pode haver um Miguel Vasconcelos em cada um de vós. Quererá o Presidente da República dizer que a Constituição se deve sujeitar à definição de bom senso feita por ele próprio?
 
O Presidente acha que quem não comprar a estratégia do relógio não é patriota. Que quem não pensar como ele não está "à altura do momento crucial" que vivemos. Não falta gente que acha que é ele que não está à altura do momento, que é ele que não mostra bom senso, ponderação e sentido patriótico de responsabilidade. Eu sou um deles.
 
2-É muito difícil perceber como é que o Presidente da República Portuguesa não fala da Europa e dos problemas europeus, quando fala aos portugueses. E logo numa ocasião em que (enfim...) define metas, aborda assuntos que define como essenciais e fala em compromissos e consensos.
 
A decisão de não falar da Europa pode ter uma das seguintes razões: ou Cavaco Silva pensa que podemos resolver todos os nossos problemas sem que os decisores europeus sejam tidos ou achados, ou pura e simplesmente não sabe o que há-de dizer ou acha que está tudo certo na política europeia e, logo, não há nada a acrescentar. Convenhamos, nenhuma das opções é de modo a deixar o cidadão descansado. Mas, o que mais assusta é sabermos que o nosso representante pode não perceber que não há solução para a nossa situação sem que a Europa mude de políticas e que, se não as mudar, iremos regredir economicamente e sobretudo socialmente várias décadas. Ou então sairmos do euro e da Europa que ainda nos faria regredir mais.
 
O Presidente que em Florença, em Outubro de 2011, tinha uma ideia para a Europa, o Presidente que ainda o ano passado dizia que tínhamos argumentos para exigir o apoio dos nossos parceiros europeus, foi tomado pelo provinciano Cavaco Silva. É preciso ter azar.
 

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