segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Portugal: CRÓNICA DE AGOSTO


O quarteto da "choldra torpe", mas há mais...
Tomás Vasques – jornal i, opinião

Nestas férias não precisam de ler Marx. Regressem a Eça de Queirós. Descobrem lá quase tudo: este país é uma "choldra torpe"

Agosto, o último mês do ano no meu calendário, evoca o murmurejar das ondas a desfazerem-se em espuma no extenso areal da ilha de Tavira, a mais bela praia de todas as infâncias e adolescências, por onde passei e que me remete para tempos esquecidos, coisas insignificantes, intimidades. Rememorei agora esse tempo distante que aos poucos se desfizera no interior da memória, tal como os barcos se desfaziam no fio do horizonte quando, ainda criança, me sentava na areia a observar o movimento das ondas e a inquietar-me com o seu murmurejar.

Aconselhado pelo escritor José Marmelo e Silva, meu professor, autor de "O Adolescente Agrilhoado", livro que me emprestou para ler, aos 11, 12 anos, li tudo o que havia para ler de Eça de Queirós, em livros requisitados na biblioteca da Gulbenkian, situada na Rua da Galeria, em Tavira. Aí comecei a aprender, com João da Ega, que o país que me calhara em destino era uma "choldra torpe", observação que ainda hoje não destoa, passado mais de um século sobre o que escreveu o autor de "Os Maias" e meio século sobre essas minhas primeiras leituras.

Só mesmo numa choldra torpe o senhor Presidente da República, o senhor primeiro-ministro, a senhora ministra das Finanças e o senhor governador do Banco de Portugal - ou seja, todo o poder que nos pastoreia - podiam jurar, como juraram, a pés juntos, com a mão no peito e ar solene, durante quase um mês, por estas ou outras palavras, que "os portugueses podem confiar no BES, dado que as folgas de capital são mais que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem na parte não financeira, mesmo na situação mais adversa" E, depois, quando se percebeu que afinal o que disseram era falso, um engodo para enganar papalvos, a fina flor de um poder à deriva, sem credibilidade nem mérito, partiu para o mar, ali para a Manta Rota ou para a praia da Coelha, ouvir o murmurejar das ondas a desfazerem-se em espuma no areal, como se nada disto lhes dissesse respeito. Sem uma palavra. Sem uma justificação nem um acto de contrição.

Só mesmo numa choldra torpe um governo aprova à socapa, na quinta- -feira 31 de Julho, um diploma que testemunha que a expropriação do BES já estava decidida, pelo menos nesse dia mas certamente antes, omitindo-o no comunicado do Conselho de Ministros, como se o governo estivesse na clandestinidade e este assunto fosse dos "deuses" e não dos portugueses.

Só mesmo numa choldra torpe a decisão do governo, com a conivência do senhor Presidente da República, é conhecida antecipadamente apenas por "gente de bem", próxima do governo, o que provavelmente permitiu atempadamente a venda de acções do BES pela Goldman Sachs e outros "amigos", o que levou à monumental queda em bolsa a 31 de Julho e 1 de Agosto, ou à retirada do dinheiro das contas da PT por esses dias.

Só mesmo numa choldra torpe se permite a promiscuidade de comentadores habitual de canais de televisão, ex-presidentes do principal partido do governo, um deles conhecido como a "bruxa de Carnaxide", que anunciam a solução para o "caso BES" antes de o governador do Banco de Portugal a ter apresentado, supostamente em "primeira mão".

Só mesmo numa choldra torpe um governo, por razões ideológicas, trata com eufemismo a inevitável nacionalização de um banco, para evitar males maiores, através de uma "engenharia" pirotécnica, em que os contribuintes entram com 90% do capital e a propriedade é entregue às "instituições financeiras a operar em Portugal", sendo todos os riscos, como bem sabem, de quem paga impostos.

Volto ao começo: nestas férias não precisam de ler Marx. Regressem a Eça de Queirós. Descobrem lá quase tudo. E descubram também o escritor José Marmelo e Silva.

Jurista - Escreve à segunda-feira

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