Alimentação
retal, simulação de afogamento e dias seguidos de privação do sono foram alguns
dos métodos de interrogatório utilizados pela CIA para obter informações a
partir de suspeitos associados a Osama bin Laden, após os ataques do 11 de
Setembro. Um relatório do Senado norte-americano, divulgado esta semana,
concluiu que estes métodos foram ineficazes para a captura do ex-líder da
al-Qaeda. As 6.000 páginas do documento relatam acontecimentos imprevisíveis e
impressionantes, como o que envolveu Abu Zubaydah: esteve fechado 266
horas numa espécie de caixão - e depois mais 29 horas num espaço ainda pior.
Maria
João Bourbon - Expresso
Agosto de 2002: durante 11 dias e duas horas, Abu Zubaydah esteve dentro de uma caixa de confinamento do tamanho de um caixão. Depois disso, e como se não bastasse, passou 29 horas dentro de uma caixa ainda menor -
O
objetivo, segundo a CIA, era saber mais informações sobre aquele que
acreditavam ser uma peça-chave na captura de Osama bin Laden: Abu Ahmad
al-Kuwaiti, um xeque do Kuwait que nascera no Paquistão, membro da al-Qaeda e
suspeito de ser bastante próximo de bin Laden. O recurso à tortura como método
de interrogatório, no entanto, precedeu as perguntas da CIA sobre al-Kuwaiti:
até 17 de julho de 2005, a
agência não terá questionado Zubaydah sobre esse assunto e estas "técnicas
reforçadas de interrogatório" - eufemismo utilizado pela CIA - tinham já
começado a ser utilizadas anteriormente. Só nesse julho de 2005 é que Zubaydah
descreveria um indivíduo - que a CIA suspeitava tratar-se de al-Kuwaiti -, mas
afirmaria, mentindo, que este não era próximo de bin Laden.
Ao
contrário do que alegava a CIA, a informação mais relevante sobre al-Kuwaiti
não seria obtida através do recurso à força ou à tortura. Já tinha sido
adquirida pela agência anteriormente, em 2002, não a partir de prisioneiros sob
sua custódia, mas de informação recolhida a partir de detidos sob custódia de
outros países. Quando Zubaydah foi capturado a 28 de março de 2002 pelas
autoridades paquistanesas, levava consigo uma agenda telefónica, na qual se
encontrava o contacto de "Abu Ahmad K.", que seria identificado como
sendo Abu Ahmad al-Kuwaiti. Seria a partir daqui que esta informação chegaria aos
ouvidos da CIA.
O
que é que esta história nos diz? É apenas um exemplo de que a CIA mentiu à Casa
Branca e ao Congresso sobre a eficácia do seu programa de
contraterrorismo, aplicado com o intuito de descobrir o paradeiro de Osama bin
Laden após os atentados do 11 de Setembro. É isto que afirma, ao longo de mais
6.000 páginas, um relatório da Comissão de Serviços Secretos do Senado dos EUA
divulgado esta semana, onde são revelados métodos de interrogatório
"brutais e muito piores" do que a agência de informações antes
admitira.
Utilizados
sob a justificação da sua relevância para obter informação importante sobre o
paradeiro de Osama bin Laden, estes "métodos reforçados de
interrogatório" (leia-se "tortura") são agora contestados pela
Comissão. Na verdade, o relatório revela que a informação mais importante,
obtida em 2002, sobre a relação de al-Kuwaiti com bin Laden não foi adquirida
através de prisioneiros sob custódia da CIA, mas sob detenção estrangeira e
antes dos interrogatórios brutais realizados pela agência. Entre estes dados
estavam o número de telefone de al-Kuweiti, o seu endereço de email, a idade,
descrição física, dados sobre a família e a relação de proximidade que mantinha
com Osama bin Laden - sendo, provavelmente, o seu mensageiro.
"Let's
roll with the new guy"
Khalid Shaykh Muhammad, o principal arquiteto dos ataques do 11 de Setembro, foi um dos prisioneiros que acabou por ir parar às mãos da CIA. Capturado a 1 de março de 2003 pelas autoridades paquistanesas, Khalid levava com ele um computador portátil no qual se encontrava um endereço de email associado a al-Kuwaiti. Só posteriormente seria interrogado pela CIA.
Pouco
tempo antes da agência norte-americana terminar o interrogatório, e antecipando
a sua transferência para um dos centros de detenção, o chefe do interrogatório
enviou um email para a sede da CIA com o título "let's roll with the new
guy" (numa tradução livre, "vamos a ele").
Já
sob custódia da CIA, Khalid foi submetido a novos interrogatórios, mais negros
e brutais. Ao final de um dia de pancada, de ser colocado em posições de stress
durante muitas horas seguidas, de ser privado do sono e de levar com baldes de
água gelada, entre outros, um psicólogo do centro concluiu que o interrogatório
seria melhor sucedido se "se evitassem confrontos que permitissem [a
Muhammad] transformar o interrogatório numa luta de vontades com o
interrogador". A CIA, no entanto, descreveria o interrogatório que se
seguiu como "a melhor sessão até ao momento", com um Khalid
"mais cooperante". Já o relatório da Comissão revela o contrário: é
verdade que Khalid colaborou, mas forneceu informação inventada que levaria à
detenção de dois inocentes. E as referências a al-Kuweit foram esquivas e
erróneas, diminuindo a sua importância dentro da al-Qaeda.
Alimentação
e reidratação retal forçada, "waterboarding", privação do sono até
180 horas, banhos de água gelada, "walling", humilhações ou ameaças
psicológicas foram algumas das técnicas de interrogatório mais polémicas,
utilizadas durante dias ou semanas seguidas, em pelo menos 39 dos 119
prisioneiros que se sabe terem estado sob custódia da CIA. Destes, 26 terão
sido detidos indevidamente.
Como
se costuma dizer, o diabo está nos detalhes. E a habilidade da CIA para
justificar esta metodologia revela-se nos pormenores. De acordo com a agência
norte-americana, 12 prisioneiros forneceram informação prioritária sobre a
relação entre Abu Ahmad e bin Laden. No entanto, a agência 'esqueceu-se' de
mencionar que cinco deles disponibilizaram essa informação antes de ficarem sob
sua custódia. A CIA acrescentava ainda que nove dos 12 detidos foram submetidos
a "métodos reforçados de interrogatório". Mas não disse que cinco
destes forneceram informações sobre Abu Ahmad al-Kuwaiti antes de terem
sido submetidos a este tipo de métodos.
É
o caso de Ammar al-Baluchi e Hassan Ghul, apontados como aqueles que
disponibilizaram a informação mais crucial para a investigação da CIA. Os dois
afirmaram com clareza que al-Kuwaiti era mensageiro de bin Laden e uma das
pessoas mais próximas do então líder da al-Qaeda - e, por isso, fundamental
para encontrar o seu esconderijo. Esses dados, no entanto, foram obtidos antes
da utilização de métodos de tortura como forma de interrogatório.
É
certo que a CIA acabaria por descobrir o paradeiro de Osama bin Laden em 2011,
através do seu mensageiro Abu Ahmad al-Kuwaiti, numa mansão na província
paquistanesa de Abbottabad. O relatório da Comissão de Serviços Secretos do
Senado dos EUA não nega esse facto. Mas questiona a eficácia desta missão que
levou à morte do ex-líder da al-Qaeda: grande parte das informações essenciais
para esta operação não foi obtida através de detidos sob custódia da CIA, nem com
recurso a métodos brutais de interrogatório.
Sem comentários:
Enviar um comentário