terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O BARRIL DE TRÓIA, OU COMO O CRUDE SE INFILTRA NAS FENDAS



Rui Peralta, Luanda

I - A morte, no passado mês de Outubro, de Christophe de Margerie, presidente e  Diretor-geral da TOTAL, foi motivo de unânimes e rasgados elogios e pêsames, à pessoa do presidente e à TOTAL. Alias, elogios e manifestações de pesar são os únicos elementos que encontramos, sobre este assunto, no discurso jornalístico, que mais parece integrar uma enorme campanha de marketing e de limpeza da imagem da TOTAL, uma tentativa simultaneamente ideológica (escamoteando a relação entre imperialismo e capital) e de remodelagem da Historia (esquecendo factos e alterando relatos e memorias, como por exemplo as relações com o apartheid, a corrupção, influencia sobre legisladores, negócios lucrativos com o Estado francês à custa dos contribuintes, etc.).

Ouvindo, lendo e vendo os meios de comunicação ficamos com a sensação de que estão a esconder-nos algo, pois deparamos, repentinamente, com "uma boa alma", um "humanista", á frente da TOTAL, assim como descobrimos a "importância da TOTAL para a humanidade". François Hollande refere que o ex-presidente da TOTAL "defendia, com talento, a excelência e o êxito da tecnologia francesa no estrangeiro". Valls, Macron e Chêvênement qualificaram o malogrado de "grande capitão da indústria. Sarkozy afirmou que o falecido tornou a "globalização mais sociável" e a MEDEF, a associação patronal francesa, pela voz de Pierre Gattaz, considera Margerie um "visionário".

A TOTAL (presidida por Margerie desde 2007) é a sucessora da CFP, formada em 1924, com o objectivo de explorar petróleo no Médio Oriente, mas que diversificou as suas actividades aos sectores do gás, refinaria, distribuição e química, implementando-se em mais de 130 países. Em 1985 a CFP transformou-se em TOTAL-CFP e em 1991 assume-se como TOTAL. 8 anos depois transformou-se em TOTAL-FINA (apos a fusão com a PETROFINA) e já no século XXI funde-se com a ELF-AQUITAINE.

O grupo é um das "majors", ou seja, uma das seis maiores  companhias petrolíferas privadas. O seu volume de negócios ascendeu, em 2013, aos 288 mil milhões de USD, ano em que teve um lucro de 11mil e 200  milhões de USD e ocupa a posição 100 da lista das maiores 500, elaborada pela Fortune. Mas a História da companhia não se limita ao mundo dos negócios e dos mercados, encontrando-se ligada a acontecimentos de caracter geopolítico e geoestratégico. Vejamos alguns factos que constituem esta actividade camuflada da TOTAL.

A CFP implantou-se na Africa do Sul em 1956, nos sectores mineiro, carvão, energia, caminho-de-ferro e na distribuição de combustível (detendo mais de 700 estações de abastecimento de combustíveis). Foi o principal fornecedor das Forças Armadas e da Policia do apartheid, iludindo o embargo imposto pela ONU em 1977.

Os "oleodutos secretos" da TOTAL na África do Sul durante o regime do apartheid transportaram petróleo para o país e no retorno levaram, para França, uranio, via Marselha. Desta forma o apartheid contornava o embargo petrolífero internacional, trocando, através da TOTAL-CFP, uranio por petróleo. Para o apartheid o negócio constituiu uma tábua de salvação e para a TOTAL foi uma lucrativa actividade, que permitiu-lhe uma importante posição no sector mineiro.

II - Os Camarões na década de 70 são submetidos a um dos mais repressivos regimes neocoloniais, sob direcção de Paris. O presidente Hamadou Ahidjo (um títere da França) tem na ELF um parceiro omnipresente em toda a vida económica e financeira do país. A ELF controlava o sector petrolífero camaronês e financiava o regime de Ahidjo, assim como o do seu sucessor, Paul Biya, que ampliou as benesses dos seus parceiros (ou patrões?), concedendo-lhes isenções fiscais e abrindo-lhes as portas a novas áreas de negócios no país.

Na Republica do Congo (o "Petit Congo") em 1997 a ELF apoia Sassou-Nguesso, apos 4 meses de guerra civil, financiando as milícias de Sassou e utilizando as estruturas logísticas da empresa no fornecimento de armas, munições e equipamentos a estas milícias. Aliás o tráfico de armas è uma prática em que a multinacional francesa, sob o nome de CFP, ELF ou TOTAL, parece ser experiente, se levarmos em conta as operações efectuadas pelo grupo empresarial durante a guerra do Biafra. Know-how que foi, também, aproveitado no Gabão, com a ELF a apoiar financeiramente Omar Bongo.

Em 1992 o grupo francês inicia a sua actividade na Birmânia, num período em que o regime militar birmanês era acusado da prática de trabalho forçado pela Organização Internacional do Trabalho. Em 2001, perante a continuidade das acusações, o presidente do "Comité de Ética" da ELF declarou que quando a empresa "tomava conhecimento de algum caso esforça-se por compensar o trabalhador". Hoje a TOTAL é o principal investidor estrangeiro no país, detendo 32% da massa de investimento estrangeiro, posição que foi reforçada pela administração de Margerie que, em 2012, adquiriu 40% de um bloco de exploração.

Na Nigéria, país onde o grupo já tinha um historial de actividades diversas (explorando as dinâmicas que conduziram á guerra do Biafra), a TOTAL, no início deste ano, foi acusada de expulsar milhares de camponeses no Estado de Rivers (Rivers State) e um colectivo de ONG's concedeu o prémio Pinóquio á empresa, com o seguinte comentário: "Na Nigéria a TOTAL impôs o seu império dividindo as comunidades locais e multiplicando os programas de sustentabilidade e de responsabilidade social empresarial para melhor esconder o desastre ambiental e a apropriação de terras (...) ". Este não foi o primeiro prémio que a TOTAL recebeu. Em 2008, grupos ambientalistas concederam á ELF o prémio "Mãos sujas, bolsos cheios" e em 2009 a ELF foi "agraciada" com o prémio "Um para todos, todos para mim".

Na Líbia, em Março de 2011, um representante da TOTAL foi enviado para Bengasi, com o objectivo de "animar" os bandos armados, enquanto no Eliseu enviados do grupo apelavam para uma intervenção militar francesa no país e exigiam que o governo francês  reconhecesse o Conselho Nacional de Transição da Líbia (CNT). Alguns meses depois o ministro francês dos negócios estrangeiros declarou: "(...) esta operação na Líbia é cara, mas é um investimento para o futuro". Em Setembro o CNT anunciava que 35% do crude líbio passaria a ter a França como destino. Um país desintegrado, um conflito que causou mais de 60 mil mortos, eis o custo dos interesses da TOTAL na Líbia.

Existem ainda os negócios do grupo no Mali, que abrangem as mais importantes reservas de crude e de gás no país, na região de Taoudenni. O bolo foi partilhado com a Argélia, a Mauritânia e o governo maliano. Também com a China foi efectuado um consórcio para exploração de petróleo e gás maliano. A presença militar francesa levou o governo maliano a conceder á França licenças de exploração, que acabaram nas mãos da TOTAL, beneficiando a empresa de uma vasta área de exploração cujas licenças foram gratuitas.

III - A TOTAL é um império assente na sua actividade principal - o sector petrolífero - com extensões robustas nos sectores mineiro e energia e uma forte componente de sectores financeiros. As fusões sucessivas (ELF, AQUITAINE, PETROFINA) foram efectuadas em conluio e sob protecção do Estado francês, reforçando o carácter monopolístico do grupo. Em 2013 a ELF detinha um capital de 204 mil milhões de euros, um volume de negócios de 190 mil milhões de euros e lucros de 8mil 440 milhões de euros. Os felizes acionistas do grupo contam com nomes como o PNB-PARIBAS (que em 1924, quando surgiu a CFP, denominava-se Banco de Paris e dos Países Baixos), um dos líderes mundiais no negócio de matérias-primas, em particular de petróleo e gás, para além de ser o banco de serviço da TOTAL, em todas as operações financeiras e bancárias do grupo.

Os lucros fabulosos da TOTAL (13mil e 900 biliões de euros em 2008; 7,8 milhões em 2009; 10 mil 280 milhões em 2010; 12 mil e 300 milhões em 2011 e 10 mil e 700 milhões em 2012) permitiram que pagasse aos seus acionistas cerca de 34 mil milhões de euros entre 2005 e 2010, cerca de 45% dos seus lucros. A estes dados devem-se acrescentar as benesses fiscais: em 2010 a TOTAL não pagou qualquer imposto sobre as suas sociedades em França.

Sem dúvida! São totalmente felizes os acionistas da TOTAL...mesmo que á custa dos contribuintes franceses e dos povos cujos países são "mercados promissores"...

IV - Em Angola a produção petrolífera iniciou-se em 1955, na concessão terrestre do Kwanza. Nos anos 60 começa a exploração na concessão offshore de Cabinda, cuja produção teve início em 1968. Cinco anos depois, o petróleo assume a primeira posição como fonte de receitas de exportação, ultrapassando o café.

Após a independência o governo constituiu, em 1976, a Sociedade Nacional de Combustíveis (SONANGOL) e em 1978 o Estado assumiu o monopólio da propriedade dos recursos petrolíferos nacionais, por força da Lei 13/78, que regula as actividades petrolíferas no país. Neste quadro a SONANGOL torna-se a concessionária exclusiva para a pesquisa e exploração, com a capacidade, concedida pela lei, de associar-se a parceiros estrangeiros para obter os recursos necessários á pesquisa, desenvolvimento e produção. A SONANGOL cria joint-ventures com as empresas petrolíferas estabelecidas no território desde a época colonial: Cabinda Gulf Oil Company (CABGOC, que após 1984 torna-se subsidiária da CHEVRON) PETROFINA (mais tarde fundiu-se com a ELF-AQUITAINE, na TOTAL) e TEXACO (estas duas ultimas produziam em concessões terrestres nas bacias do Kwanza e do rio Congo).

Nos anos 80 e 90 a CHEVRON, a ELF e a TEXACO realizam novos investimentos em águas rasas e, no início da década de 90, iniciam a prospeção em águas profundas, após o governo ter atribuído 17 novos blocos demarcados a profundidades entre os 200 e os 1500 metros de profundidade (blocos 14 a 30). Em 2001 a CHEVRON-TEXACO, a EXXON-MOBIL, a BP e a TOTAL-FINA-ELF já tinham descoberto 35 campos petrolíferos nos blocos 14, 15, 17 e 18 (águas profundas).

Esta bem-sucedida exploração e os relativamente baixos custos de produção da indústria petrolífera nacional constituíram dois factores que, associados à definição dos três primeiros blocos (31, 32 e 33) de águas ultra-profundas (mais de 1500 metros de profundidade) conduziram à intensificação da concorrência entre as petrolíferas, que ofereceram ao governo angolano elevados "prémios de assinatura" (prémios pagos de uma só vez e à cabeça, pela obtenção de contratos de prospeção e produção). BP, ELF e EXXON (que lideravam os consórcios vencedores dos concursos) pagaram, ao todo, 935 milhões de USD em prémios, o que permitiu ao governo colmatar a crise de 1998/1999, causada pela queda dos preços do barril.

O desenvolvimento dos novos campos em águas profundas permite um novo impulso na produção petrolífera em território nacional. O primeiro desses campos foi o do Kuito, no Bloco 14, explorado pela CHEVRON, cuja produção iniciou-se em 2001, seguindo-se o Girassol, no Bloco 17, da TOTAL-FINA-ELF, em finais de 2001. Em 2002 a produção de Angola ultrapassava os 900 mil barris por dia (bpd), sete vezes mais do que na década de 80. A CHEVRON tornou-se a maior operadora em Angola, seguida da TOTAL.

V - No período pós-independência o petróleo assumiu o comando da macroeconomia angolana, afectando o aparelho de Estado ao nível político-militar e económico. Relações internacionais, governação, quadro institucional, superestrutura cultural e ideológica, nada escapa ao domínio do sector petrolífero (submetido á lógica dos monopólios globalizadores), que transformou o país num "mercado promissor" (apesar da guerra - embora tudo se tenha passado em função desta - que, na segunda metade dos anos 80, é condicionada aos interesses do sector a curto e medio-prazo, na dinâmica interna através das elites beneficiadas pela expansão do sector e nas dinâmicas externas, com as alterações de procedimentos dos USA, da França e do Reino Unido).

O Estado controla receitas petrolíferas volumosas e sem paralelo na História económica de Angola (pré-colonial, colonial e pós-colonial) e este facto está na origem da extrema dependência do país em relação ao recurso petrolífero (o sector diamantífero e/ou mineiro estão muito distantes de assumirem uma posição comparável à do petróleo e a agricultura ou a agropecuária, devido á inexistência de uma reforma agrária e á guerra, é um sector completamente destroçado e esquecido, embora eternamente relembrado no discurso oficial). Esta dependência em relação ao petróleo é nefasta e pode originar períodos indefinidos de crise, que em caso de maior diversificação da actividade económica poderiam não ter um impacto significativo, mas que na actual situação revelam-se preocupantes, pelo menos em dois sentidos: obstaculizam o desenvolvimento e incapacitam o aparelho produtivo.

As crises de 1985/1986 e de 1998/1999, tal como a actual, foram provocadas pela debilidade provocada pela dependência. Tudo vacila, no espaço económico nacional, com a queda do preço do barril e isso é, no mínimo, gerador de instabilidade, não no adormecido corpo económico e social, mas nas galáxias da elite e nas orbitas em que decorre o seu aparente movimento. 

A economia nacional habituou-se a viver das receitas petrolíferas, ou seja, das mais-valias geradas por um recurso não renovável, que no momento actual sofre o efeito da queda da procura (o arrefecimento do crescimento chinês e da industria indiana) e da concorrência dos sectores energéticos alternativos. Por outro lado, os mecanismos de redistribuição das receitas favoreceram os sectores ligados ao aparelho de Estado e as "famílias" historicamente formadas na economia colonial (uma espécie de burguesia comercial autóctone, que em alguns casos não se expandia devido ao colonialismo) que infiltraram o aparelho político e militar e que terminaram por ter um papel de domínio no aparelho económico, que não correspondia ao seu real peso e importância social.

VI - As alterações provocadas pela Paz e os elevados investimentos efectuados continuam a padecer de uma lógica que é inerente às elites parasitárias e predatórias, alimentadas pelo desperdício das receitas petrolíferas num país mergulhado no esforço de guerra. A diversificação das actividades económicas produtivas nacionais irão demorar a surtir efeito até porque a lógica dominante ainda não se enquadrou nessa perspectiva. Muita água passará sobre o moinho e muita farinha será moída na sua mó até que as reformas necessárias sejam implementadas.

A realidade da economia angolana encontra-se distorcida e em muitos casos é um truque de ilusionismo. As multinacionais globalizadoras que introduziram-se no país através do sector petrolífero geraram grande parte  destas distorções, que assumem visibilidade na especulação imobiliária ou nos valores fabulosos dos alugueres das casas e apartamentos, por exemplo. O auge da distorção é o facto de viver em Luanda (uma cidade com infraestruturas deficientes, sem transportes colectivos urbanos, rede de água e electricidade extremamente precárias e péssimas condições de comunicação, parando por aqui para não tornar a lista extensa) ser tão caro como viver em Tóquio.

A conquista da Paz, a nova realidade constitucional, o esforço realizado no fortalecimento das instituições democráticas foram passos importantes na definição do rumo para um futuro melhor e para um presente mais digno. Mas torna-se necessário alargar e apurar os mecanismos participativos e urge democratizar a vida económica e social, sob pena de perdurar a lógica neocolonial do Capital.

Da opção entre lógica do Capital e lógica da Solidariedade dependerá o futuro de Angola. A sua posição na economia-mundo como "mercado promissor" (logo circo de ilusões) ou como espaço de Liberdade e de Justiça Social no continente africano, depende da opção entre as duas lógicas, ou seja, a subordinação aos interesses dos monopólios globalizadores ou a  afirmação da soberania popular.

Ao Povo Heróico e Generoso só  resta um caminho: estarmos juntos na continuidade da Luta e na certeza da Vitória...

Fontes
Bouamama S. TOTAL y de Margerie: Petroleos y gas del color da la sangre http://www.rebelion.org 11/2014
AFP 21/10/2014
Koula Y. Petrole et violences au Congo-Brazzaville: Les suites de l'affaire ELF Ed. L'Harmattan, Paris, 2006
Bureau International du Travail Informes 2002-2003 OIT, Geneve, 2004
Pean, P. Nouvelles affaires africaines: Mensonges et pillages au Gabon Ed. Fayard, Paris, 2014
Hodges, T. Angola: Do Afro-estalinismo ao Capitalismo selvagem Ed. Principia, Cascais, 2002
IMF 2002, Angola: Recent Economic Developments IMF, Washington D.C., 2003

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